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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(387) História das Grandes Histórias

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

As novas roupagens dos Quintos Impérios.

 

Trata-se sempre da previsão de um fio condutor para a história capaz de manter viva a esperança na existência de um plano redentor.

 

A Big History aparece como um “mito moderno da criação” ou como “história da origem”, mas com base na ciência em vez das escrituras antigas.

 

Impérios, mesmo os sonhados ou os bem-intencionados, são sempre Impérios.

 

 

 

 

Quinto Império, Sebastianismo, Trovas de Bandarra, Mensagem de Pessoa, foram noções, sentires, que por muito tempo fizeram parte do nosso viver. E não só dos portugueses. Comuns também a outros povos, a outras épocas, que pelo simples facto de agora ao não se falar sobre eles, parece terem ficado convenientemente esquecidos no passado. Mas, eis que surgem com nova roupagem.

 

Foi o padre António Vieira que no Sermão de acção de graças pelo nascimento do príncipe D. João, pregado em 1688 na Baía e impresso em Portugal em 1690, disse que Portugal seria o Quinto Império, que finalmente levaria a fé cristã a todo o mundo, promoveria a paz e a felicidade por um período de mil anos de abastança (a Idade do Ouro) que resultaria no fim dos tempos.

Vieira baseou-se na sua interpretação do sonho bíblico do profeta Daniel, que concluíra sobre a existência até então de quatro impérios, o Assírio, o Persa, o Grego e o Romano, a que Vieira vai juntar o Império Português como sendo o quinto e último, e isto porque para além da crença milenarista e messiânica argumentava que os impérios anteriores, ao contrário do Português, não tinham na altura o conhecimento sobre a extensão do mundo, o que lhes impedia de se expandirem e consagrarem por toda a Terra.

Ao que dizem estudiosos do assunto, Vieira inspirou-se no conhecido abade cisterciense italiano Joaquim de Fiore (1135-1202), que na sua interpretação do texto do Apocalipse via três Idades: a Primeira Idade, que  correspondia ao governo de Deus Pai, poder absoluto e temor sagrado que perpassava pelo Velho Testamento, ou seja, todo o tempo anterior à revelação de Jesus Cristo; a Segunda Idade, que se iniciava com a revelação do Novo Testamento e a fundação da Igreja de Cristo, onde através de Deus Filho se revela a sabedoria divina que tinha permanecido escondida; a Terceira Idade, que ainda há-de vir (de Fiore acreditava que se encontrava a viver na Segunda Idade, que certamente estaria a chegar ao fim, pela desordem reinante, e que acabaria por termina por um cataclismo), corresponderia ao domínio da Terceira Pessoa, ao advento do Império do Divino Espírito Santo, onde finalmente todas as leis evangélicas seriam compreendidas e aceites pela humanidade.

 

Esta ideia sobre a definição das várias idades para a previsão do fio condutor para a história capaz de manter viva a esperança na existência de um plano redentor, era, com certas variações, recorrente entre os pensadores cristãos.

Talvez o mais importante entre todos eles a conseguir apresentar uma visão integrada do futuro, tenha sido o já aqui referido, Paulo Orósio. Nascido provavelmente no ano 390 em Braga (Bracara Augusta), escreveu de 416 a 418, a primeira história universal feita por um autor cristão, Historiarum Adversus Paganos libri VII (História contra os Pagãos em sete livros), mais conhecida na Idade Média por Moesta mundi (Tristezas do Mundo), por tratar das guerras e dos sofrimentos resultantes da ascensão e queda dos impérios. Esta sua História foi oficialmente aceite por bula papal de 494 para o ensino dos cristãos, permanecendo durante sete séculos como o manual de ensino de História Universal.


Para Orósio, era na história que Deus se revelava e manifestava. Com esta visão vai assim influenciar toda a linha da filosofia da história que se lhe segue, ao atribuir-lhe um teor providencialista e messianista. Providencialista, na medida em que crê que todos os factos temporais se encaminham para um ponto comum, e messiânico, por considerar que a finalidade da história é a instauração do reino de Deus.

 A sua originalidade constituiu em encontrar um princípio unitário absoluto para onde todos os acontecimentos históricos são conduzidos, para a partir daí os explicar.
O relativismo resultante de considerar o ponto de vista humano dos acontecimentos históricos como sendo apenas uma perspetiva sobre o todo, e não o todo, é ultrapassado quando Orósio inscreve os acontecimentos temporais no absoluto, através da interpretação providencialista dos mesmos. A finalidade da história faz-se em função de um sentido final: a vitória do Cristianismo e a redenção da humanidade por Cristo.

 

 O passo seguinte acontece em 1681-89, quando o teólogo inglês Thomas Burnet, escreveu Telluris Theoria Sacra, The Sacred Theory of the Earth (Teoria Sagrada da Terra), em que, baseando-se na cosmologia de Copérnico e na física de Descartes, demonstrou que a Terra, mesmo tendo em consideração os acontecimentos tidos como centrais na Bíblia (a Criação, o Dilúvio, e o Último Julgamento), tinha passado por sete estágios determinados pela lei natural (The theory of the earth: containing an account of the original of the earth, and all general changes wuch it hath already undergone, till the consummation of all things. The two first books concerning the deluge, and concerning pradise).

Ou seja, vai correlacionar os sete dias da criação bíblica com a história da Terra, ao descrevê-la como se tratasse de uma casca gigante da qual jorraria água quando quebrada por Deus a quando do Dilúvio, e em que os fragmentos provenientes da crosta vieram a formar as montanhas. Uma aproximação teológica aos processos geológicos. A ciência correta (a que for certa) como compreensão coerente e total (holística) das fases da história da Terra.

 

Seguiram-se-lhe a partir daí uma série de histórias universais em que as épocas da Bíblia passaram a ser substituídas por fases do desenvolvimento civilizacional, onde se inseria um cunho nacionalista.

 Por exemplo, em 1857, o historiador inglês Thomas Buckle, publica a History of Civilization in England, em que demonstra que através dos seus estudos estatísticos sobre as regularidades do desenvolvimento intelectual da história humana se seria forçado a concluir que o modelo para o progresso civilizacional era a Inglaterra, pelo que todas as outras nações o deveriam seguir.

Para Buckle, a história na sua totalidade podia portanto ser entendida bastando ter por referência alguns princípios científicos e alguns acontecimentos chave.

 

Com o desenvolvimento nos finais do século XIX da ciência do evolucionismo de Darwin, assistimos à sua aplicação à história da humanidade (exemplo claro é o de Winwood Reade e o seu muito apreciado The martyrdom of Man (1872), em que é dado mais um passo para justificar o domínio global anglo-saxónico (de quem mais poderia ser?) como oriundo de uma persistente luta pela existência (raça) vinda já desde o passado.

 

O exponencial avanço da ciência/tecnologia em finais do século XX, voltou a acentuar a oposição entre as letras e as ciências. As especializações que apareciam eram tantas que, por exemplo, para se restringir o campo da história a fim de dar lugar a “novas ciências” se quis passar só a considerar como história apenas aquilo que pudesse ser documentado por fontes escritas.

Sentia-se cada vez mais a necessidade/desejo do aparecimento de uma teoria unificada que fosse capaz de explicar tudo. Tal desejo assentava na assunção da existência da unidade que presidisse e ligasse os vários ramos do saber, unidade que deveria ser expressa por uma simples e elegante lei da natureza, preferentemente através de uma expressão matemática.

David Christian e um grupo de historiadores preferiram seguir outro caminho: para eles, a base em que deveria assentar qualquer esquema científico e evolucionário geral deveria antes ser a história. Foi o aparecimento da Grande História (Big History) em 1991, a ciência que veio combinar a astrofísica, a geologia, a biologia, a arqueologia, a antropologia e a história, e outras subdisciplinas, permitindo colocar a história humana no contexto da história cósmica desde o começo do universo (Big Bang) até à vida hoje na Terra.

Segundo a Grande História tudo acontece devido à interdependência entre as forças da entropia e da complexidade, num acordo entre a segunda lei da termodinâmica e a evolução.

A segunda lei da termodinâmica postula que há uma quantidade finita de energia no universo que se vem dissipando lentamente; já a evolução mostra que há momentos em que um determinado limite é alcançado e em que a entropia é ultrapassada pela criação de novas formas de complexidade.

Para a Grande História há oito ‘momentos limite’, em que no passado apareceram novas formas de complexidade e que estruturam a sua narrativa: (1) o Big Bang; (2) as estrelas e as galáxias; (3) novos elementos químicos; (4) a Terra e o sistema solar; (5) vida na Terra; (6) espécie humana; (7) agricultura; (8) o Antropoceno, a nossa época geológica atual.

O que torna que estes momentos limites possam ser considerados ‘científicos’, é o facto de, em primeiro lugar, todos eles serem derivados de avanços recentes em áreas relevantes da ciência; em segundo lugar, por graças à descoberta de técnicas cronométricas avançadas, como o radiocarbono e a datação genética, ser possível atribuir datas bastante específicas a esses limites e estabelecer uma linha do tempo precisa e contínua.

Para além disto, cada novo limiar não se encontra completamente desligado do anterior, no sentido que as forças concorrentes de entropia e da complexidade permanecem ativas, representadas pela noção de “fluxos de energia”. Os fluxos de energia são um processo que liga todas as coisas, desde a poeira cósmica no espaço até aos vermes no solo. Esta é a arquitetura e linguagem especializadas da Big History.

Contudo, se olharmos mais de perto para a História da Origem (Origin Story: A Big History of Everything, 2018) de David Christian, este discurso científico e especializado encontra-se envolto numa grande quantidade de suposições. Isso ocorre até porque, apesar de tudo o que parecemos saber sobre o passado longínquo com base em avanços científicos, há ainda muito que é desconhecido e muito provavelmente incognoscível, principalmente no respeitante aos próprios momentos dos limites.

De acordo com Christian, esses momentos surgem por causa da combinação certa de “condições limites”, circunstâncias ambientais que se juntam da maneira certa para tornar possíveis novas formas repentinas de complexidade. Por exemplo, o Limiar 2, que se refere ao aparecimento das estrelas e galáxias, aconteceu por causa das condições estabelecidas pela combinação de gravidade e matéria.

Se repararmos bem, cada limiar ocorre quando uma combinação semelhante de circunstâncias ambientais dá origem a uma súbita evolução de complexidade, seja o limiar de natureza cósmica (como no caso do Limiar 2), geológica, biológica ou histórica. Essa ideia ajuda a fornecer uma aparente coerência e unidade à Grande História. O problema é que a ser assim, isso  reduz as complexidades da vida, juntamente com o nosso conhecimento delas, a uma fórmula que parece derivada de um conto de fadas.

 

O que se verifica na abordagem particularmente insatisfatória da Grande História quando se trata dos seres humanos. Quando os humanos entram na história no Limite 6 como uma espécie única cujas capacidades linguísticas levam ao que Christian chama de “aprendizagem coletiva” (a capacidade de compartilhar conhecimento no espaço e no tempo), os humanos são apresentados como veículos amplamente passivos para as incessantes demandas de fluxos de energia.

Por sermos um produto da natureza e também capazes de compreender e moldar os processos da natureza, o ser humano possui um duplo aspecto que não se encaixa facilmente no quadro da Grande História.

Esta perspetiva verifica-se em todos os limites subsequentes. A Grande História descreve a mudança do modo de vida de caçadores-coletores para o de agricultura intensiva, que é representado pelo Limite 7, como o produto de três condições: as “novas tecnologias (e crescente compreensão dos ambientes gerados através da aprendizagem coletiva), o aumento da pressão populacional e os climas mais quentes da época do Holoceno”.

Então, pergunta-se, que papel desempenharam os humanos nessa mudança?

Além das novas tecnologias, parece que o desenvolvimento da agricultura em larga escala foi em grande parte inevitável devido ao aumento da população e ao clima mais quente, uma visão que ignora estudos que mostram que a transição para a vida agrária envolveu um processo longo e muitas vezes violento ao qual alguns resistiram.

Por outras palavras, uma série de fatores contingentes iniciou e moldou o advento da agricultura, baseado em relações humanas e lutas de poder, que são muito mais complexos do que sugere a fórmula determinista da Big History.

 

Mais: alguns dos assuntos tradicionais da análise histórica, como guerras, impérios, comércio e religião, como a escala da Grande História é tão grande, recebem atenção limitada, a menos que se cruzem diretamente com os temas abrangentes de limites e fluxos de energia.

O Limite 8 ou ‘O Antropoceno’, é talvez a popularização mais bem-sucedida ou amplamente conhecida da Grande História, e sobrepõe-se ao presente e ao passado recente.

Como já se sabe, o Antropoceno é uma época geológica proposta que marca uma nova fase na história da Terra que foi moldada principalmente pela atividade humana. Inclui muitos dos acontecimentos e tendências fundamentais dos últimos 200 anos, desde a industrialização e colonização até às guerras totais do século 20 e à ascensão da democracia de massa.

No entanto, na História da Origem, quando se trata dos principais desenvolvimentos do período da história que supostamente estamos a moldar, os seres humanos nunca são realmente apresentados como mais do que observadores passivos. Industrialização, globalização, colonizações e outros, parecem respostas mecânicas na procura por novas fontes de fluxos de energia e complexidade crescente.

A própria natureza da sociedade e do governo foi transformada”, escreve Christian, “pelos novos fluxos de energia e tecnologias do Antropoceno”.

Ou seja, quando a luta pela democracia é reduzida a um subproduto de um regime particular de fluxos de energia, vemos aqui bem refletida a dificuldade da narrativa da Grande História em integrar a apreensão da engenhosidade humana na história.

 

E, no entanto, tal não esmorece a grande atenção mediática, e não só, que a Grande História tem despertado no mundo em que vivemos (o TED Talk de 18 minutos de Christian foi visto 12 milhões de vezes desde 2011). Bill Gates, após ter frequentado o curso on line sobre o livro de Christian, percebeu a sua importância para os fins educativos que entendia faltarem nos programas liceais.

Criou então o Big History Project, um curso online gratuito para todos os professores que quisessem vir a ensinar a Big History no ensino liceal.

De certa maneira, a Big History ao dar uma história global da vida, ia preencher o vácuo deixado pelo processo de secularização que desmontara as narrativas holísticas providenciadas pelos sistemas religiosos tradicionais. Segundo Christian, a secularização deixara as pessoas fragmentadas e na procura de alguma forma de visão grandiloquente e de significado da vida que já não encontravam na religião.

A Big History iria, pois, preencher essa forma de significado holístico que pertencera anteriormente à religião. Aparece, assim, como um “mito moderno da criação” ou como “história da origem”, mas com base na ciência em vez das escrituras antigas. A ciência/tecnologia passa ela própria a providenciar o significado mítico da Big History, mas, evidentemente, sem a transcendência comunicada pela religião. A autoridade da Big History deriva da ciência/tecnologia que providencia a base factual para a narrativa e, finalmente, para o significado da vida.

E quem domina hoje a ciência/tecnologia? Percebe-se o interesse.

 

 

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