(386) O elogio da preguiça
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Os donos do mundo foram sempre estúpidos, Bertrand Russell.
O caminho para a felicidade e prosperidade reside na diminuição organizada do trabalho.
É mesmo melhor nada fazer do que contribuir para a reprodução da ordem existente.
Ser preguiçoso pode até ser uma estratégia evolucionária que adia a extinção das espécies.
O visconde Bertrand Russell (1872-1970) não era um génio da matemática e, no entanto, escreveu juntamente com Alfred Whitehead (1861-1947) uma das obras fundamentais da lógica matemática, Principia Mathematica (1910-13), sendo um dos principais impulsionadores, juntamente com Gottlob Frege, do Logicismo. Não foi um filósofo genial, e, no entanto, escreveu uma das obras fundamentais sobre o conhecimento humano, Human Kowledge, its Scope and Limits (1948). Não foi um escritor genial, não tem nenhuma obra considerada impar, e, no entanto, ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1950, cuja oração de sapiência, “What Desires Are Politically Important?”, continua a ser tida como um hino à inteligência que possibilita o viver em paz.
O prémio foi-lhe concedido “em reconhecimento pelos variados e significativos escritos através dos quais promoveu os ideais humanitários e de liberdade de pensamento”.
Sempre atento ao que se passava no mundo, acreditava firmemente no poder da razão para resolver os problemas que sentia terem sido originados pela estupidez que em primeiro lugar os criara. Segundo ele, “os donos do mundo foram sempre estúpidos”.
Em 1930, ao analisar os principais problemas sociais que se punham ao mundo, Russell escreveu quinze ensaios que acabaram reunidos e publicados conjuntamente em 1935 debaixo do título “In Praise of Idleness”, (O Elogio da Preguiça), o primeiro dos ensaios.
Começa por observar que o trabalho que tem sido realizado no mundo, foi e é imenso. E que esse trabalho foi feito tendo sempre por base a crença que o trabalho é virtuoso. No entanto, para que o homem seja feliz, o que deve de ser pregado nos países industriais modernos é exatamente o contrário: o caminho para a felicidade e prosperidade reside na diminuição organizada do trabalho.
E passa a definir:
“Mas o que é ‘trabalho’? Há dois tipos de trabalho: o primeiro, consiste em alterar a posição da matéria à superfície da terra (ou próximo) relativamente a outra matéria; o segundo, consiste em dizer às outras pessoas para o fazer. O primeiro tipo é desagradável e mal pago; o segundo é agradável e muito bem pago. Este segundo tipo é capaz de uma extensão infinita: não são só os que dão ordens, mas ainda aqueles que aconselham aos que dão as ordens as ordens que vão dar. Vulgarmente são dados simultaneamente dois conselhos opostos por dois corpos organizados de homens: isto é o que se chama ‘política’. A qualificação para este tipo de trabalho não é o conhecimento dos assuntos sobre os quais se vai aconselhar, mas antes o conhecimento da arte de falar e escrever persuasivamente, i.e., de propagandear.”
“Mas na Europa, e não na América, há uma terceira classe de homens, mais respeitada que todas as outras classes de trabalhadores. São os homens que, por possuírem terra, são capazes de fazerem os outros pagarem pelo privilégio de lhes ser permitido existirem e trabalharem. Estes terratenentes nada fazem, e só por isso estaria disposto a louvá-los. Infelizmente, essa sua inação só se torna possível devido ao trabalho dos outros; aliás, esse seu desejo pela inação confortável é historicamente a fonte primária do evangelho do trabalho. A última coisa que desejam é que os outros lhe sigam o exemplo.”
[…] “O tempo sem fazer nada é essencial para a civilização, e nos tempos passados isso só foi possível de satisfazer para muito poucos pelo muito trabalho dos outros. […] Com a técnica moderna é possível diminuir enormemente a quantidade de trabalho necessário para garantir as necessárias horas livres para todos. Tudo isto se tornou óbvio com a guerra. Nessa altura em que todos os homens estavam nas forças armadas, todos os homens e mulheres estavam a produzir munições, todos os homens e mulheres espiavam, propagandeavam a guerra, ou estavam nos gabinetes governamentais ligados à guerra, todos eles tinham sido retirados de ocupações produtivas. Mas apesar disso, o nível geral de bem-estar físico entre os salariados não-qualificados dos Aliados era mais elevado do que antes fora.”
[…] “A guerra mostrou conclusivamente que através da organização científica da produção, é possível manter uma população moderna dentro de um bom padrão de conforto apenas com uma pequena parte da capacidade de trabalho do mundo moderno.”
[…] “Com uma sensata organização, quatro horas por dia do trabalho de um trabalhador salariado seriam suficientes para todos, e sem desemprego. Esta ideia choca os ‘bons-trabalhadores’, porque estão convencidos que os pobres não sabem o que fazer com o tempo livre.”
[…] “Para o presente, tudo parece correr bem. Um país grande, cheio de recursos naturais, espera o desenvolvimento, e espera fazê-lo recorrendo o menos possível ao crédito. Nessas circunstâncias, o trabalho esforçado vai permitir-lhe uma grande recompensa. Mas o que acontece quando alcançar esse ponto em que todos se sentem confortáveis sem necessidade de trabalharem longas horas?
No Ocidente, tentámos vários caminhos para lidar com o problema. Mas não tentámos a justiça económica, pelo que uma larga fatia do produto total vai para uma pequena minoria da população, muitos dos quais não trabalham. Devido a não existir qualquer controle centralizado da produção, produzimos uma enorme quantidade de coisas que não são necessárias. Mantemos uma grande percentagem da população trabalhadora sem fazer nada, por forma a que os outros trabalhem em excesso. E quando estes métodos provam ser inadequados, criamos uma guerra: pomos uma quantidade de pessoas a fabricarem explosivos, e um grande número de outros a explodirem-nos, como se fôssemos crianças a brincar com fogo de artifício. Pela combinação destes artifícios conseguimos gerir e manter viva a noção de que o trabalho manual árduo tem um grande significado para o homem mediano.”
[…] “Todas estas coisas são o resultado de considerarmos o trabalho árduo como virtude, como fim em si mesmo, em vez de o considerarmos como um estado de coisas que já não são necessárias. O facto é que movimentar a matéria, embora em certa quantidade seja necessário para a nossa existência, não constitui enfaticamente uma das finalidades da vida humana. […] Temos sido enganados por duas ordens de razões. Ume, é a de manter os pobres contentes, o que tem levado os ricos, ao longo de milhares de anos, a pregarem a dignidade o trabalho, enquanto evidentemente se têm mantido indignos a este respeito. A outra é o novo prazer do mecanismo que nos faz deliciar com as extraordinárias mudanças inteligentes que conseguimos produzir na superfície da terra.”
[…] “O homem moderno pensa que tudo deve ser feito para o bem de alguma coisa, e nunca para o seu próprio bem. Pensadores bem-intencionados, por exemplo, condenam continuamente o hábito de se ir ao cinema, dizendo que tal conduz os jovens ao crime. Contudo, todo o trabalho dedicado à produção do cinema é respeitável porque é trabalho, e porque produz lucro em dinheiro. A noção que as atividades desejáveis são as que dão lucro tornou tudo isto incompreensivelmente estranho. O talhante que nos fornece a carne e o padeiro que nos fornece o pão, são louváveis porque estão a fazer dinheiro; mas quando saboreamos a comida que eles nos providenciaram, estamos a ser frívolos, a não ser que só comamos o suficiente para termos energia para o trabalho.
Ou seja, fazer dinheiro é bom, mas gastar dinheiro é mau. Ver que há dois lados de uma transação é absurdo; pode-se dizer que as chaves são boas, mas que os buracos das fechaduras são maus. Qualquer que seja o mérito proveniente da produção de bens deve ser totalmente derivativo da vantagem obtida pelo consumo desses bens. Na nossa sociedade o indivíduo trabalha para o lucro; mas a finalidade social do seu trabalho reside no consumo daquilo que produz. É o divórcio entre a finalidade social do indivíduo e a da produção que faz com que os homens não consigam pensar com clareza num mundo em que o fazer lucro é o incentivo para a indústria. Pensa-se muito em produção e muito pouco em consumo. Como resultado atribuímos pouca importância ao divertimento e à simples felicidade, e não julgamos a produção pelo prazer que dá ao consumidor.
Nota que:
[…] “Os prazeres das populações urbanas tornaram-se meramente passivos: ir ao cinema, ver futebol, ouvir rádio, etc. Isto resulta do facto das suas energias ativas serem todas tomadas pelo trabalho; se tivessem mais tempo livre, poderiam disfrutar de mais prazeres em que fossem mais parte ativa.”
E conclui:
[…] “Num mundo onde ninguém fosse compelido a trabalhar mais de quatro horas por dia, qualquer pessoa que possuísse curiosidade científica poderia exercitá-la, qualquer pintor poderia ser capaz de pintar sem passar fome, independentemente da excelência ou não dos seus quadros […] Acima de tudo, haveria felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em franja, desgaste e dispepsia. […] Os homens e as mulheres comuns, ao terem a oportunidade de viverem uma vida feliz, tornar-se-ão mais amistosos, menos persecutórios e menos inclinados a olharem os outros com suspeição. O gosto pela guerra irá desaparecendo, em parte por essa razão, e em parte porque tal envolveria trabalho extenuante e severo para todos. Uma boa natureza é, entre todas as qualidades morais, aquela que o mundo mais necessita, e a boa natureza é o resultado de uma vida fácil e em segurança, não de uma vida de luta árdua.
Os métodos modernos de produção deram-nos a possibilidade de uma vida fácil e segura para todos; contudo, em vez disso, nós escolhemos o trabalho extenuante para alguns e a fome para os outros. E continuámos a ser tão enérgicos como éramos antes de termos máquinas; escolhemos mal, fomos parvos, mas não há razão para o continuarmos a ser para sempre- “
Neste seu escrito de 1930, Russell poderá não ter sido profeta, mas o facto, é que hoje faz cada vez mais todo o sentido. Segundo os estatísticos, a quantidade de tempo gasto a trabalhar diminuiu enormemente ao longo de todo o século XX. Entre 1870 e 1998, o número de horas de trabalho por pessoa empregada caiu para metade (Reino Unido). Desde 1950 caiu 24 por cento. Em 1998, na Europa Ocidental, os trabalhadores produziram em tempo real, cerca de 18 vezes o que produziam em 1870, ao passo que o número de horas por trabalhador caiu para cerca de metade (de 1.295 horas por ano para 657 horas).
É hoje claro que um maior número de horas de trabalho não significa automaticamente maior produtividade. Por exemplo, quando a França introduziu em 2000 a semana de trabalho de 35 horas, o desemprego caiu e o crescimento económico não se ressentiu. Estatisticas que se mantêm convenientemente guardadas, ocultas, esquecidas.
Relembro
O escrito no blog de30 de setembro de 2015, “Fazer ou não fazer é sempre fazer”, onde se pode ler:
[…] “Filosoficamente, a frase irredutível de Bartleby não significa que ele não quisesse copiar ou escriturar, ou que não quisesse deixar o escritório – simplesmente ele preferiria não o fazer. Esta formulação que não é nem afirmativa nem negativa, em que não aceita, mas também não recusa, abre uma zona de indefinição entre o sim e o não, o preferido e o não-preferido.”
Concluindo, […] “O desenvolver uma atividade frenética para impedir que uma coisa real aconteça, não passa de uma falsa atividade: pensamos estar ativos, mas estamos a ser passivos relativamente à realidade.
Quando nos desdobramos em manifestações, petições, grandes oratórias, etc., mas simultaneamente entregamos o verdadeiro trabalho de assistência, educação, ajuda, acompanhamento, às inócuas Misericórdias do poder político instituído, não estamos certamente a criar condições que não sejam as da perpetuação de um poder político daltónico.
Perante uma situação em que “só as moscas mudam”, nada nos obriga a escolher. É mesmo melhor nada fazer do que contribuir para a reprodução da ordem existente.
Lembremos Kafka nos “Mensageiros”:
“Deram-lhes a escolher ser reis ou mensageiros dos reis. À maneira das crianças, todos quiseram ser mensageiros – o resultado foi que não existem senão mensageiros. Galopam mundo fora gritando-se mensagens que, uma vez que não existem reis, se tornaram sem sentido. Alegrá-los-ia pôr fim à sua existência miserável, mas não se atrevem a fazê-lo, tendo em conta os deveres do seu serviço”.
E no blog de 17 de fevereiro de 2016, “Em busca do tempo perdido”, onde se encontra:
“Só em 1963 é que o Ocidente se apercebeu que aquilo que considerava ser apenas um queimador de incenso, um incensário, era afinal um medidor de tempo, um relógio, de acordo com uma prática de medida de tempo própria do Extremo Oriente feita através da utilização do fogo e do incenso (S. A. Bedini, “The Scent of Time, A Study of the Use of Fire and Incense for Time Measurement in Oriental Countries”). O que até aí se acreditava ser um incensário era antes um relógio de incenso (hsiang yin). O aroma como forma de medir o tempo, o tempo com a forma de um aroma.
Nestes relógios de incenso, o tempo, que tem aroma, leva imenso tempo a passar, não passa, não se pode esvaziar, contrariamente aos já então conhecidos relógios de água e de areia. O aroma de incenso enche o espaço. E ao dar um espaço ao tempo, está a dar-lhe uma aparência de duração. Fá-lo até duplamente, porque além do aroma de incenso acabar por intensificar o aroma do tempo, as nuvens de fumo que dele se desprendem acabam por dotar o tempo de espaço.”
[…] “Não será de surpreender que, para Proust, a época das pressas com a sua sucessão “cinematográfica” de presentes pontuais, não tenha acesso ao belo. O “gozo imediato” do “desfile cinematográfico das coisas” não dá lugar ao belo, pois a beleza tem que ver, não com uma atração fugaz, mas com uma persistência, “uma fosforescência” das coisas. Tal como com o chá, só quando nos recolhemos na contemplação das coisas é que elas revelam a sua beleza, nos mostram a sua essência aromática.”
E ainda no blog de 26 de setembro de 2018, “Elogio dos preguiçosos”, onde se pode ler:
[…] “Quanto menor for a razão metabólica, maior a probabilidade de sobrevivência”. O que vem dar novo alcance ao postulado Darwiniano de que na realidade a sobrevivência dos mais preparados, não significa a sobrevivência dos melhores, mas dos mais adaptados, e neste caso, a sobrevivência dos mais preguiçosos, dos mais lentos.
Ser preguiçoso pode ser uma estratégia evolucionária que adia a extinção das espécies.”