(382) Quando o Sultão se vestia de amarelo
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Onde o olhar do Sultão pousava, as cabeças rolavam, Contos das Arábias.
Opor-nos-emos a qualquer potência estrangeira que queira estender o seu poder ao Hemisfério Ocidental, John F. Kennedy.
Os povos germânicos constituíam uma identidade nacional com direito histórico às terras que anteriormente já tinham ocupado, G. Kossinna.
Mapa da distribuição das duas linguagens mais faladas pelos ucranianos.
Os jacarés matam-se enquanto são pequenos, provérbio moçambicano.
É nos Contos das Arábias que podemos encontrar esta pequena história tida como verdadeira. Ela é sobre um Sultão que todos os dias, carregado aos ombros na sua liteira e escoltado pela sua guarda pessoal armada, passeava pelas ruas do povoado para se assegurar dos seus domínios e para que os súbditos o pudessem ver no esplendor das suas vestes. Acontece que quando escolhia trajar de amarelo, nesses dias todos se tentavam esconder porque quando o seu olhar ao longo do percurso se fixasse num qualquer súbdito, logo os seus guardas se dirigiam ao infeliz e lhe cortavam a cabeça. Olho vê, cabeça rola. À sua volta, tudo o que o seu olhar pudesse abarcar, estava condenado.
Coisas de muçulmanos, contos de antigos, incivilizados.
A Doutrina Monroe
Para se opor ao persistente colonialismo europeu nas Américas, o Presidente James Monroe explanou ao Congresso, no seu discurso sobre o Estado da União em 1823, aquilo que considerou ser a esfera de influência dos EUA e as esferas de influência das diversas potências europeias, alertando que essas esferas de influência entre o Novo Mundo e o Velho Mundo tinham de se manter claramente separadas.
E avisando que quaisquer esforços feitos por potências europeias para controlarem ou influenciarem estados soberanos na zona de influência americana seriam considerados como uma ameaça à segurança dos EUA. Em contrapartida, os EUA reconheceriam e não interfeririam em qualquer das existentes colónias europeias, nem se imiscuiriam nas políticas internas dos países europeus.
Esta proclamação passou, mais tarde, a ser conhecida como a Doutrina Monroe, base de toda a política externa dos EUA, válida até hoje e utilizada por vários presidentes americanos sempre que entendiam que os interesses americanos podiam estar a serem atacados.
Desde que o Presidente John Tyler aplicando a Doutrina Monroe deu em 1842 o “chega para lá” aos britânicos no Havaí (iniciando assim o processo de anexação do Havaí aos EUA), a intervenção dos EUA contra as potências europeias passou a verificar-se (sempre que possível, como por exemplo durante os anos 1861-1865 da Guerra Civil americana, ou quando a Grã-Bretanha reocupou as Ilhas malvinas em 1833) em todo o continente americano.
A partir de 1912, é adicionado pelo Senado um corolário (Lodge Corollary) à Doutrina Monroe, passando a estarem englobadas para além das potências europeias, as ações das corporações e associações privadas controladas por estados estrangeiros, que poderiam assim ficarem impossibilitadas de adquirirem empresas americanas.
Após a Segunda Guerra Mundial, a maioria dos americanos entendia que o Ocidente deveria ser defendido contra qualquer invasão estrangeira. A ameaça do aparecimento de regimes comunistas na América Latina, levam o presidente John F. Kennedy a dizer em 1962:
“A Doutrina Monroe significa o que significa desde a altura em que o Presidente Monroe e John Adams Quincy a enunciaram, e é que nós nos oporemos a qualquer potência estrangeira que queira estender o seu poder ao Hemisfério Ocidental, e é por isso que nos opomos ao que está hoje a suceder em Cuba. É por isso que cortámos os nossos laços comerciais. É por isso que trabalhamos com a OEA e de outras formas para isolarmos a ameaça Comunista a Cuba.”
Ou seja, a Doutrina Monroe, inicialmente limitada geograficamente ao continente americano, passa a ser Global, expandindo a supremacia dos EUA a todo o mundo, sempre que entendam que os seus interesses possam estar a ser ameaçados.
As áreas culturais arqueológicas e o direito histórico à sua anexação
A contribuição do conhecido e respeitado professor alemão de filologia e arqueologia da Universidade de Berlim, Gustaf Kossinna (1858-1931), influenciou profundamente aspectos da ideologia nazi com as suas teorias nacionalistas sobre as origens dos povos germânicos e indo-europeus (As Origens Pré-históricas dos Teutões na Alemanha, 1896).
É dele a “lei arqueológica” que ficou como conhecida como a “lei Kossina” que, subtilmente dizia: “Áreas culturais arqueológicas bem definidas correspondem inquestionavelmente a áreas de povos ou tribos particulares”.
Com isto queria dizer que “um conjunto unificado de artefactos arqueológicos, uma ‘cultura’, são o sinal de uma etnicidade unificada”. O que no caso vertente significava que os povos germânicos constituíam uma identidade nacional com direito histórico às terras que anteriormente já tinham ocupado.
Segundo Kossinna, as terras em que se viessem a encontrar artefactos considerados serem germânicos eram parte do antigo território germânico. Pelo que não se coibia de afirmar que a Polónia deveria fazer parte do império alemão.
Em 1902, vai identificar os protoindo-europeus (uma população hipotética da Eurásia que falaria o protoindo-europeu, um antepassado da chamada linguagem indo-europeia de acordo com uma reconstrução linguística) com a cultura de cerâmica cordada (2900-2350 a.C.) que se estendia pela maior parte do norte da Europa, do Reno ao Volga, prevalecente nas regiões mais a norte da Alemanha (ducados de Holstein e Schleswig).
Para ele, o modelo de difusão da cultura através do qual se verificava a evolução cultural ocorria por “um processo em que as influências, ideias e modelos passavam dos povos mais avançados para os menos avançados com os quais entrassem em contacto”, e que essa superioridade era uma caraterística racial. Daí o considerar a história dos povos germânicos como sendo superior à do império romano. E quando comparados com os povos germânicos, romanos e franceses eram simples destruidores de culturas.
Um dos seus livros mais conhecidos, publicado em 1914, A Pré-história Alemã: uma Disciplina Nacional Preeminente, é dedicado “Ao povo alemão, como alicerce para a reconstrução quer externa quer interna da desintegrada mãe-pátria”.
Não é de admirar que após a sua morte os seus discípulos tenham vindo a ocupar cargos de destaque no regime nazi, sendo as suas ideias incorporadas nos currículos das escolas alemãs.
As áreas culturais russas na Ucrânia
O jornalista ucraniano Denys Gorbach escreveu um artigo “Ukrainian identity map in wartime: Thesis-antithesis-synthesis?” (Mapa da identidade ucraniana em tempo de guerra: Tese-antítese-síntese?), publicado no Commons a 11 de julho de 2022, onde além de traçar uma panorâmica histórica sobre a formação da Ucrânia, figura um mapa da distribuição das duas linguagens mais faladas pelos seus povos ao longo dos tempos.
Como me pareceu ser útil para a compreensão de algumas justificações sobre as ações de guerra empreendidas e em curso, provavelmente até premonitório sobre o território a ocupar, aqui o insiro.
Imperialismo
Vulgarmente, quando nos referimos a “imperialismo”, estamos a pensar nas ações de qualquer país que visem aumentar a sua influência política, económica, cultural e comunicacional, para além das suas fronteiras, desde que tais ações sejam realizadas através de conquista militar, diplomacia de canhoneio, tratados desiguais, atribuição de subsídios a grupos ou fações preferidas, penetração económica através de empresas privadas ou do estado seguida de intervenção diplomática inflexível obrigatória quando esses interesses estiverem ameaçados ou por alteração de regime.
Definições mais contemporâneas e sucintas dão-no como sendo qualquer sistema de dominação e subordinação organizado em torno de um corpo central imperial e uma periferia.
Arendt e Schumpeter vão mais longe na sua análise, ao tentarem defini-lo como um sistema que procura a expansão pela expansão. Ou seja, que querem sempre mais porque querem mais. A apropriação pela apropriação. Visam, portanto, o domínio total do mundo, a hegemonia não partilhada para continuarem a ser hegemónicos para todo o sempre.
Convém também não esquecer a etimologia da palavra: do latim imperium, que significa força suprema, soberania, governo.
Não se sabe se o sistema é reflexo do comportamento individual ou se o comportamento individual é reflexo do sistema. Quer o próprio sistema quer as derivas possíveis têm sido tentadas, conduzindo sempre quer à desaparição do sistema quer à das derivas.
O provérbio
Na sua ingenuidade (quer mesmo por ingenuidade ou por engenho), o povo (neste caso o moçambicano) tem um provérbio em que diz:
“Os jacarés matam-se enquanto são pequenos”.
Esqueceram-se que se vive atualmente numa sociedade em que o único valor é o económico, onde é bem visto que eles (os jacarés) cresçam por causa do valor da pele. Fazem-nos o mesmo a nós (os abat-jours de candeeiros mais requisitados eram os de pele de judeu, de preferência com tatuagens artísticas). Agora já não nos tiram a pele para abat-jours.
Nota:
A ler no blog de 17 de maio de 2017, “Madof, a ganância sistémica”:
“Casos como este, são resultantes da enorme tentação de transformar dissimuladamente uma atividade de negócios lícita num esquema ilícito, sobrepondo-se e adiantando-se assim a todos os outros. A enorme pressão e a pulsão interna para continuar a fazer expandir a tal esfera da circulação para que o sistema continuasse a funcionar, fez com que, em certo ponto, se ultrapassasse aquela ténue linha de separação entre o lícito e o ilícito. A compulsão expansionista inscrita no próprio sistema.
É bom lembrar que o investimento capitalista é sempre uma aposta arriscada nas oportunidades de lucro de um expediente, um empréstimo contraído em termos de futuro. Por isto, a própria dinâmica do sistema esbate a fronteira entre o investimento legítimo e a especulação selvagem.”
Convido também para a leitura do artigo de Soromenho-Marques no Diário de Notícias de 23 de julho de 2022, “O sonho americano de Portugal. O Abade Correia da Serra em Washington (1816-1820)”.