(381) Quando a mesa do centro da sala foi substituída pelo televisor
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A família restruturou-se num público em miniatura, a sala da casa converteu-se num espaço de espectadores em miniatura e o cinema em modelo do lar.
São milhões os eremita-massa, cada um separado dos demais e, contudo, iguais, sentados nas suas casas como eremitas, não para renunciarem ao mundo, mas para não perderem uma migalha do mundo que lhes aparece plasmado numa efigie.
O aparecimento de sociedades controladoras são sintoma da degenerescência das faculdades físicas e psicológicas que nos fazem humanos.
É numa das Histórias Infantis que se pode ler:
“Porque o rei não gostava que o filho – evitando utilizar as estradas que estavam sob controle do rei – calcorreasse os campos para assim formar a sua imagem do mundo, deu-lhe um cavalo e uma carruagem. ‘Assim já não necessitas de ir a pé’, foram estas as palavras do rei; ‘agora já não te está permitido fazê-lo’, foi esse o significado; ‘agora já não o podes voltar a fazer’, foi esse o resultado.” (1)
Ou seja, o rei controlava o filho, não através de imposições ou proibições, mas antes ao tornar-lhe a vida mais fácil e mais conveniente. Ao aceitar o presente do pai, o filho participava ativamente por vontade própria na sua própria subjugação, pois quanto mais confiava na carruagem, menos sabia como viver sem ela e, querendo ou não querendo, mais se iria conformando, com as regras do pai.
Na pequena história, podemos ainda ver a representação do aumento de potencial que os objetos tecnológicos têm para nos fazerem perder o controle das nossa vidas ao torná-las mais fáceis, ao provocarem a degenerescência das faculdades físicas e psicológicas que nos fazem humanos, o que foi permitindo o aparecimento de sociedades controladoras.
Quanto mais entregamos a máquinas a responsabilidade e as interações para com os outros, mais a capacidade para deliberarmos sobre os nossos atos e ações, sejam eles a alegria, o medo, a vergonha, o ódio, a malícia e os egoísmos, vai diminuindo, degenerando a nossa humanidade.
- De “O Mundo como Fantasma e Matriz, considerações filosóficas sobre rádio e televisão”, Günther Anders.
Subjacente encontra-se o pensamento que a tecnologia (os dispositivos com que se rodeia, mais do que meros meios para se alcançarem fins que poderão ser bons ou maus) é em si mesma importante pelas alterações e marcas que deixa em nós.
Exemplo 1:
A televisão pode ser usada para se participar num serviço religioso. Contudo, para além do próprio serviço religioso transmitido, o que nos vai marcar ou transformar (quer queiramos ou não) é o facto de efetivamente não participarmos dele, de estarmos apenas a consumir a sua imagem.
O que nos vai marcar não é só o que nos é transmitido, mas também os aparelhos em si (que não são apenas objetos de uso) que com isso determinam também o estilo da nossa vida, do que estamos a fazer, ou seja, determinam-nos a nós.
Quando apareceu o cinema, parecia ser o meio ideal que os grandes produtores aguardavam: uma situação privilegiada de consumo em que vários ou numerosos consumidores disfrutavam ao mesmo tempo de um mesmo exemplar (ou de uma mesma reprodução) de uma mercadoria.
Acontece que rapidamente os grandes produtores descobriram que o que lhes interessava não era uma massa massificada, mas uma massa fragmentada numa grande quantidade de compradores; não era a possibilidade de que todos consumissem o mesmo, mas que cada um comprasse o mesmo por uma mesma necessidade cuja implantação se lhes sugerira do mesmo modo.
A rádio e a televisão representavam esse novo ideal, pois, além do produto em si que era consumido, vendiam ainda os aparelhos próprios para esse consumo a quase a cada um dos consumidores, com a vantagem acrescida de o produto (o conteúdo) ser entregue ao domicílio através dos aparelhos.
Esses produtos de massa passaram a ser consumidos em família ou sozinhos; quanto mais sozinhos mais produtivos. Assistiu-se assim ao aparecimento do chamado eremita-massa: são milhões deles, cada um separado dos demais e, contudo, iguais, sentados nas suas casas como eremitas, não para renunciarem ao mundo, mas para não perderem uma migalha do mundo que lhes aparecia plasmado numa efigie.
A despersonalização da individualidade e a uniformização da racionalidade passaram assim a serem feitos em casa, pelo que já não havia necessidade daquela direção de massas tipicamente hitlerianas nem da sua inscrição em enormes construções de cimento armado.
Para cúmulo, essa despersonalização vai ser apresentada como uma redescoberta da família e da privacidade: “[…] a televisão é um meio excelente para afastar os jovens de passatempos caros, para manter as crianças em casa […] e para dar um novo estímulo às reuniões familiares”.
Acontece que o que predomina em casa através da televisão é o mundo exterior, real ou fictício, transmitido. E fá-lo de tal maneira ilimitadamente que converte a realidade do lar em fantasmagoria, não só as quatro paredes e o mobiliário, mas a própria vida comunitária. O lar vê-se relegado a ser apenas um contentor na medida em que se esgota ao ser um lugar que contém um televisor para o mundo exterior.
Exemplo 2:
Aquilo que era o móvel social caraterístico da família, a mesa maciça que estava no centro da sala, ao redor da qual se reunia toda a família, tornou-se obsoleta. O móvel seu sucessor é agora o televisor.
Só que o televisor não proporciona o ponto central comunitário, sendo antes o ponto comum de fuga de toda a família.
Ao passo que a mesa tinha uma força centrípeta relativamente à família, estimulando quem se sentava ao seu redor para contar as conversas do seu dia a dia e para a troca de olhares, estimulando o espírito de família, o televisor atua por centrifugação.
Os membros da família já não estão sentados uns à frente dos outros, a colocação das cadeiras frente ao televisor é por justaposição em que a possibilidade de se verem uns aos outros ou mesmo de falarem é meramente casual. Já não estão juntos, estão lado a lado, ou até nem isso: são meros espectadores. A família restruturou-se num público em miniatura, a sala da casa converteu-se num espaço de espectadores em miniatura e o cinema em modelo do lar.
É como no conto infantil: o “Agora já não necessitam de falar” transforma-se no “Já não o podem fazer”. Mas, quando os dispositivos nos impedem de falar, com isso tiram-nos também a linguagem, roubam-nos a nossa capacidade de expressão, a nossa ocasião de falar, a nossa gana de falar. Não é de espantar a atrofia da linguagem que se tem verificado.
A manipulação do homem chega ao domicílio como fornecimento, tal como se tratasse de gás, eletricidade ou água. Produtos artísticos, sucessos reais, são escolhidos, limpados quimicamente e preparados para nos serem servidos como “realidade” ou como substitutos dela. Os próprios acontecimentos, as notícias sobre eles, o jogo de futebol, a missa, as explosões, vêm ter connosco. O mundo vem ao homem, e não o contrário. Esta é a armadilha que a rádio e a televisão representam.
Não é, pois, de admirar que não conheçamos o nosso vizinho, com quem nos cruzamos frequentemente no átrio do prédio (desconhecimento que é mútuo), mas que conheçamos aqueles apresentadores, atores, cantores, que nunca encontraremos em pessoa, mas a quem vemos imensas vezes, sabendo até os seus nomes (pelos quais os tratamos) e os seus problemas íntimos.
Perplexidades:
“Se é o mundo que vem a nós em vez de sermos nós que vamos a ele, então já não estamos no mundo, somos apenas seus consumidores. Ou seja, o mundo já não se apresenta como mundo exterior, no qual estamos, mas como nosso.
Se vem a nós, mas apenas em imagem, então está apenas meio presente e meio ausente, é como um fantasma. Ou seja, os acontecimentos emitidos são, ao mesmo tempo, presentes e ausentes, reais e aparentes, estão aí e não estão: por isso, são fantasmas. Pelo que todo o real é fantasmagórico, todo o fictício é real.
Por outro lado, se o mundo vem a nós, não temos necessidade realmente de irmos a ele, pelo que o que até ontem chamávamos de experiência converteu-se em algo supérfluo. E como qualquer supérfluo, atrofia-se.
Se é o mundo que nos interpela sem que nós consigamos interpelá-lo, estamos então condenados a ficar com a boca fechada, portanto a não ser livres.
Se um acontecimento que ocorreu num determinado lugar pode ser transmitido, e enquanto “transmissão” puder aparecer em qualquer outro lugar, então transformou-se num bem móvel quase que omnipresente, perdendo assim a sua posição espacial como principium individuationis.
Se é um bem móvel e se apresenta em exemplares virtualmente inumeráveis, então, pela definição da sua maneira de ser objeto, faz parte dos produtos seriados; e se se paga como emissão de um produto seriado, então o acontecimento é uma mercadoria.
Se é importante socialmente só pela sua forma de reprodução, ou seja, como imagem, desaparece a diferença entre ser e aparência, entre realidade e imagem.
Se a experiência do mundo que predomina se alimenta de semelhantes produtos seriados, o conceito de “mundo” encontra-se abolido (na medida em que por “mundo” se entende aquilo onde estamos), perdeu-se o mundo e a atitude de homem, estabelecida pelas emissões, torna-se “idealista”.”
Notas soltas adicionais:
- Faz hoje parte do conhecimento comum saber que há coisas que a inteligência artificial pode fazer que os humanos não podem. Isto levanta o problema de nenhum especialista poder comprovar se o que a máquina fez esteja correto. O que faz com que, apesar de 95% dos casos resolvidos pelas máquinas estarem certos, os 5% de erros por elas cometidos possam levar muito tempo a serem detetados. Eis dois casos exemplares conhecidos:
O que se passou com a atriz Anne Hathaway e o fundo inversor Berkshire Hathaway de Warren Buffet, em que só após muito tempo é que se percebeu que as ações da Berkshire Hathaway subiam sempre que a atriz aparecia referida na comunicação social. E que tal era devido ao facto de o trader robot confundir os nomes!
O que se passou com o enviesamento do sistema para selecionar os doentes (triagem) que chegam aos hospitais nos EUA: A fim de aferir o grau de gravidade que necessitará o doente, se um cuidado especial ou se pode ser mandado para casa, introduzindo-se a mesma informação sobre duas pessoas diferentes, o sistema atribuía maior gravidade a um doente branco que a um doente negro. Acabou por se concluir que o problema residia na forma como o algoritmo treinava o sistema: para decidir quem estava mais doente, entrava, entre outros, com o custo dos tratamentos que o doente tinha até então recebido.
A lógica era que se estás muito doente tens recebido tratamentos mais caros, e, portanto, serás etiquetado como sendo muito doente. Como por razões socioeconómicas os negros não apareciam como tendo recebido esses tratamentos mais caros que necessitavam, o sistema mandava-os para casa. Isto passou-se ao longo de vários anos.
- Günther Anders defende que nós não nos estamos a tornar obsoletos por as máquinas se estarem a tornar cada vez mais “espertas” e com maiores capacidades. Isso está a acontecer porque cada vez mais nós nos estamos a expressar através da ajuda de dispositivos digitais, e porque cada vez estamos mais dispostos a submetermo-nos e a viver de acordo com as limitações e pedidos das máquinas.
Para fazermos com que a máquina funcione, estamos até dispostos a limitar e alterar o alcance das nossas expressões por forma a garantir que a máquina responda corretamente e execute a fim de tornar a nossa vida mais fácil.
Ou seja, parece que gostamos de nos esforçar para “não funcionarmos como nós próprios”, adaptando o nosso comportamento à máquina por forma a que ela nos venha a servir o melhor possível (efeito ELIZA relativamente à computação, síndroma de Estocolmo se for relativo a raptos).
Ao fazermos isso, amarramo-nos cada vez mais a certas infraestruturas, adaptamos cada vez mais os nossos hábitos a soluções tecnológicas, expomo-nos mais a um cada vez maior número de corporações de poder não democráticas e a aplicações de big data que estão a atualizar a versão de um futuro em que as contribuições do homem deixem de ser requeridas.
É rendermo-nos aos que lucram com isso, e que em última instância são donos dessas máquinas.
É assim que até a própria linguagem deixa de ser uma simples fala, porquanto essas máquinas (ex. telemóvel) passam (vendem) permanentemente a nossa fala a outra entidade: a nossa linguagem deixa de pertencer ao próprio individuo. Ou seja, até a própria linguagem é expropriada às nossas expensas, e com isso todos aqueles códigos, regras de civilidade e valores que fazem parte do ser-se nacional de um país (português, brasileiro, inglês, etc.) e que são parte integrante das nossas experiências e sentimentos exatamente por falarmos português, brasileiro, inglês.
E é assim (com o que nos expropriam que só não é roubo porque somos nós que gostosamente lhes damos) que se tem vindo a instalar aquela falsa sensação que as máquinas sabem mais de nós do que nós próprios, porque sabem coisas sobre nós que se mantêm invisíveis para nós.
E quando nós acreditamos que as máquinas sabem mais sobre nós que nós próprios, pouco nos resta para fazer, pensar, sentir ou decidir.
Pelo que ao tornarem a nossa vida “mais fácil”, mais confortável e conveniente, mais excitante e organizada, o que nos estamos a dizer (o que nos estão a dizer) é que o que se vivia antes disso não era essencial.
Para os que pensam que tudo isto não passa de exagero, Anders deixa a seguinte resposta:
“Os filósofos que refutem o exagero como não sendo sério, fazem-no porque estão habituados a trabalharem apenas com o que os seus olhos veem, e estão a ser tão obsoletos e ridículos como o virologista que recusa trabalhar com microscópios porque quer ver apenas com os seus próprios olhos. São os vírus tão grandes como aparecem apenas aos nossos olhos? Se fosse assim, eles nem sequer apareceriam. Não são eles tão grandes como aparecem amplificados pelo microscópio? Ou não serão eles muito maiores, uma vez que são muito mais perigosos que a imagem do microscópio nos dá? Se víssemos o trabalho devastador dos vírus ampliados um milhão de vezes num filme, será que esta ampliação também exagerava o perigo? Ou será que só assim se veria o perigo pela primeira vez?”
Nota: Sugiro a leitura do artigo sobre telemóveis e a influência que têm na nossa memória, “Is your smartphone ruining your memory? A special report on the rise o ‘digital amnesia’”, publicado no The Observer a 3 de julho de 2022.