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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(376) Claude Eatherly Dreifus Assange

Tempo estimado de leitura: 12 minutos.

 

Quem com certas coisas não perde a cabeça, é porque não tem nada a perder, Lessing.

 

Na verdade, a sociedade não pode aceitar a realidade da minha culpa sem reconhecer ao mesmo tempo que a sua culpa é muito mais profunda, Claude Eatherly.

 

Bem-aventurada a época em que os loucos falam assim, desventurada a época em que só os loucos falam assim.

 

 Uma vez que adquirimos a capacidade para por fim ao tempo, já não há marcha atrás; poderemos ser capazes de aprender coisas novas, mas o que nunca poderemos fazer é desaprender o que aprendemos, G. Anders.

 

 

 

 

A 6 de agosto de 1945, o major aviador Claude Eatherly (1918–78) descolou de Tinian, uma ilha no Pacífico, para, com o seu avião B-29 Straight Flush sobrevoar Hiroxima, verificar as condições do tempo (a bomba teria de atingir um determinado alvo que teria de estar visível) e o nível da oposição armada inimiga presente, e mediante as condições encontradas informar por rádio o chefe da missão, o tenente coronel Paul Tibbets, indicando que podia prosseguir para o objetivo.

Tibbets, pilotando o B-29 Enola Gay, assim fez, e largou a histórica primeira bomba atómica sobre Hiroxima, matando instantaneamente mais de 92.000 pessoas (japoneses) e pulverizando a cidade. Três dias depois seguiu-se Nagasáqui e mais 40.000 mortos.

Dois anos depois, em 1947, Eatherly é dispensado pela Força Aérea (terminada a Guerra, havia que reduzir os efetivos, e no seu caso porque o comportamento deixava dúvidas - ele copiara num exame escrito). Os próximos 17 anos passa-os a entrar e a sair de prisões (por crimes estranhos, como o de assaltar uma loja de conveniência com uma pistola partida, exigir que as vítimas pusessem todo o dinheiro numa mala, e depois sair deixando a mala em cima do balcão da loja), hospitais (duas tentativas de suicídio) e do Hospital dos Veteranos em Waco, Texas, acabando em 1961 por, apesar do pedido do irmão e com a conivência do hospital para ser declarado o seu internamento definitivo como doente mental (o que implicaria que o internamento não seria voluntário e do qual não poderia sair por sua vontade) ser declarado pelo tribunal como suficientemente competente para poder gerir a sua vida.

Tentando assim sair legalmente do hospital, viu-se impedido de o fazer por a Força Aérea ter solicitado o seu internamento definitivo, o que veio invalidar a sentença do tribunal. Segundo o seu médico, ele deveria de deixar de escrever artigos contra as armas nucleares e de os enviar para publicação.

Decidiu-se então por fugir do hospital, e viveu livre durante dois meses, até que foi mandado parar por um polícia que lhe disse que tinha passado um semáforo vermelho (o que não era verdade, porquanto não era ele que estava a conduzir), sendo de novo internado no hospital.

É na sequência deste episódio que Günther Anders vai escrever ao presidente Kennedy, a seguinte carta:

 

 

De Günther Anders para o Presidente John F. Kennedy

13 de janeiro de 1961.

 

Prezado senhor Presidente,

 

O motivo porque lhe escrevo esta carta, e que simultaneamente a revelo à imprensa internacional, é o seguinte: dado o grande número de assuntos que tem tido de despachar  durante estes últimos meses, é possível que lhe possa  ter escapado um determinado caso, mais corretamente um escândalo moral que herdou ao assumir as rédeas do governo; um escândalo moral que ameaça passar para a história como o Caso Dreyfus do século XX -ou melhor, como um caso talvez ainda mais grave, pois devido à rapidez das comunicações atuais, faz com que aqueles que provocam ou mesmo que apenas toleram um escândalo como este, possam perder o seu bom nome e respeitabilidade mais rapidamente e mais profundamente do que a França perdeu o seu bom nome com o Caso Dreyfus. Estou a falar-lhe do caso de Claude Eatherly, o piloto de Hiroxima que, como naturalmente sabe, foi quem deu o sinal de «Prossigam» nas duas «missões» atómicas.

Provavelmente, perguntar-se-á que direito tenho eu, um filósofo vienense que vive longe de Waco, o local de residência de Eatherly, e longe de Hiroxima, o lugar da sua ruína, para emitir um juízo sobre este caso. Resposta: há ano e meio que mantenho correspondência com Eatherly, e tenho em meu poder um sem número de cartas que não só transmitem uma imagem completa deste homem, mas que o retratam como uma pessoa digna de respeito.

Pode também perguntar como o conheci. Resposta: não o conheço pessoalmente. Mas como desde 1945 tenho tentado dilucidar os problemas morais que a era atómica nos coloca – as minhas publicações sobre este assunto não são inteiramente desconhecidas – sigo com interesse os destinos e as manifestações das figuras principais que abriram a porta que nos conduziu a esta nova era; numa palavra: num certo dia caiu nas minhas mãos um artigo da Newsweek sobre Eatherly, artigo esse que me comoveu tanto que me decidi escrever-lhe. A minha carta e a resposta de Eatherly acabaram publicadas em todo o mundo. E foi assim que nasceu a correspondência a que acima referi.

Mas o verdadeiro motivo desta carta é a notícia que hoje, 13 de janeiro, chega vinda de Waco (Texas), segundo a qual um informe forense declara que Eatherly é considerado como doente mental.

Falando o mais claramente possível: este veredicto não se ajusta à realidade dos factos. E não duvido nem por um momento que também o senhor presidente, após dar uma vista de olhos nos extratos das cartas de Eatherly que aqui junto como apêndice, considerará estranho o diagnóstico dos médicos forenses.

A um homem como este só se pode qualificá-lo como «anormal» se, como se costuma fazer nestes tempos de conformismo, se identificar 'comportamento normal' como 'comportamento médio'; certamente, se por conduta «anormal» se entende aquela conduta que não se ajusta à norma, então a inflexibilidade e a permanente vigilância da consciência de Eatherly tem de considerar-se algo «anormal». Mas, se assim o fizermos, deveríamos também incluir as obras de santo Agostinho ou de Kierkegaard (só para mencionar dois homens espiritualmente muito distintos de Eatherly) nas prateleiras da secção de psiquiatria da nossa biblioteca, em vez de as colocar na secção de teologia ou de filosofia moral.  

Pode-se objetar que Eatherly, através de seu comportamento estranho (os seus repetidos assaltos simulados e outras coisas similares) na verdade provaram a sua anormalidade (no sentido médico do termo). Naturalmente, enquanto tais, estes atos são indiscutíveis, mas quando se os interpreta, adquirem outro sentido, ou melhor dito, adquirem sentido.

Qualquer médico sensato o sabe: não é normal atuar com normalidade durante ou depois de uma situação anormal. Não é normal que alguém, depois de sofrer um choque terrível, se comporte como se nada se tivesse passado. Assim sendo, desde um ponto de vista médico é ainda menos normal que uma pessoa continue a comportar-se de uma forma «normal» quando o espoletar desse choque exceder tudo aquilo que uma pessoa é capaz de imaginar, assimilar e lamentar – e este é o caso de que falamos, pois Eatherly deixou atrás de si centenas de milhar de mortos e uma cidade arrasada. Reagindo de forma «anormal», ele reagiu da forma adequada. Para nomear aqueles casos em que se produz uma reação inadequada por defeito, a psicologia académica tem um termo técnico, o conceito de «agnosia» (cegueira da alma), cujo exemplo paradigmático é o das declarações célebres e infames do seu predecessor, o presidente Truman que, por ocasião do seu aniversário aos 75 anos, ao lhe ser perguntado se ao longo da sua vida tinha existido qualquer coisa que lhe tivesse causado  dor ou arrependimento, respondeu que sim, que lamentava profundamente não se ter casado antes. Hiroxima nem lhe veio à mente; aparentemente esse acontecimento fora muito grande para entrar numa mente tão pequena. Ou, nas palavras de Lessing: «Quem com certas coisas não perde a cabeça, é porque não tem nada a perder».

Por outro lado, considerar fenómenos isolados de Eatherly como «ações criminosas», em vez de interpretá-las como reações, é muito pouco científico e impróprio da profissão médica. Isto é o mesmo que nós, frente a um homem espancado até a morte, nos limitássemos a constatar a extraordinária altura dos seus gritos e os interpretássemos como prova da sua anormalidade, passando por alto a anormalidade da situação em si.

Infelizmente, existem muitas razões para pensar que os médicos de Eatherly tenham considerado as suas reações de forma isolada, desligando-as das ações às quais eram resposta: efetivamente (veja-se a Newsweek de 25 de maio de 1959), estes médicos falaram de «complexo de culpa», tratando assim de fazerem crer, inclusivamente a quem tivesse algum conhecimento de psicologia, que, na realidade, Eatherly tinha um sentimento de culpabilidade injustificado e absurdo, algo que só se podia entender como uma doença. Vulgarizando vergonhosamente um termo psicanalítico, tiveram até o atrevimento de dizer que padecia de um «complexo de Édipo», como se por detrás do seu comportamento houvesse um desejo de incesto, e não a imagem inapagável de centenas de milhar de mortos. Permita-me, senhor presidente, que à margem lhe diga que este uso absurdo e inapropriado de linguagem científica, cuja autêntica finalidade é de ataviar de cientificidade o que não passam de meias verdades, tem vindo há vários anos a prejudicar o prestígio dos Estados Unidos perante os intelectuais do mundo inteiro.

Se Eatherly cometeu aparentes atos ilícitos, transgrediu a lei, fê-lo por um motivo muito plausível. Enquanto tentava desesperadamente assumir os efeitos de uma ação em que tinha ficado incorporado como mais uma peça entre os milhares de peças desenhadas para cumprirem perfeitamente a sua função; enquanto que, em virtude da inutilidade do seu intento, conseguia compreender que o que ali tinha acontecido excedia a capacidade de todo o ser humano para se responsabilizar pelos seus atos; enquanto chegava à conclusão que era dever de todos intentar conceber a enormidade  do sucedido e a horrível facilidade técnica com que tal monstruosidade tinha podido acontecer, com o fim de que algo assim não voltasse jamais a acontecer; enquanto que nele amadurecia lentamente a determinação de consagrar a sua vida a esta causa; enquanto tudo isto ocorria no seu interior, Eatherly era celebrado como um herói nacional, e nem uma só revista deixou de oferecer este patriótico must: a formosa fotografia do dito rapaz do Texas. Para Eatherly, esta fama era-lhe simplesmente insuportável. E os seus atos ilícitos têm de ser vistos como o resultado desta insofrível incongruência entre culpa e glamour. Como a sua participação na missão de Hiroxima não era reconhecida como um crime, teve de arquitetar e fazer uso de outros métodos para conseguir eu lhe dessem o castigo. Existe também um direito ao castigo – expressão introduzida por Hegel – e se há algo que carateriza a quem não é um criminoso, é precisamente a insistência no seu direito a ser castigado. Foi exatamente isto que fez Heatherly: com os seus aparentes atos ilícitos, procurou que se lhe desse o castigo que não se lhe queria conceder.

Naturalmente, não é uma casualidade que lhe negassem o castigo e que o seu permanente arrependimento – que só podia resultar ineficaz, uma vez que diante aqueles factos todo o arrependimento é impotente – se apresentasse publicamente como um arrependimento injustificado, pois reconhecer que um arrependimento é justificado equivale a considerar como provado o crime que o provoca. Por outras palavras: o seu arrependimento seria uma acusação, uma acusação contra a missão de Hiroxima e contra quem tinham sido os seus verdadeiros artífices, cuja absoluta falta de imaginação os tinha inclusivamente levado a crer que eram capazes de se responsabilizarem pelo sucedido. Ou para dizer com as palavras do doente mental: «Na verdade, a sociedade não pode aceitar a realidade da minha culpa sem reconhecer ao mesmo tempo que a sua culpa é muito mais profunda». (Carta sem data que Eatherly me escreveu entre 10 e 15 de agosto de 1959). Perante uma frase como esta, só se pode exclamar: Bem-aventurada a época em que os loucos falam assim, desventurada a época em que só os loucos falam assim.

Provavelmente, ao lerem esta carta alguns leitores menearão a cabeça, perguntando-se: «Mas, porquê ele? Porquê ele arrepender-se quando apenas se limitou a dar o sinal que podiam prosseguir; ele, que não se inteirou da descoberta da divisão do átomo a não ser depois de fazer o que fez; ele, cuja única coisa que fez foi cumprir ordens e que foi só um instrumento?»

Senhor presidente, esta é uma objeção que eu nunca poderia aceitar. Não quero aqui entrar na ambiguidade, e isto exprimindo-me eufemisticamente, que se incorre quando se dão ordens a alguém para fazer algo sem lhe permitir que nada saiba sobre o efeito da ação ordenada. Limitar-me-ei a falar sobre o “não saber” como desculpa de um crime. Eu sou judeu, perdi muitos amigos nas câmaras de gás de Hitler. Com estas palavras, «Limitei-me a cumprir ordens», os funcionários do extermínio intentaram lavar as mãos; estas palavras parecem-se demasiado com aquelas que pronunciou Eichmann e que ainda circulam na imprensa internacional: «Na verdade, eu não fui senão uma pequena peça na engrenagem, limitando-me a cumprir as instruções e as ordens do Reich. Não sou um criminoso nem um assassino em série» (Life, 9 de janeiro de 1961).

Não, Eatherly não é o irmão gémeo de Eichmann, mas ainda bem para nosso consolo, ele é justamente o seu polo oposto. Não é o homem que pretende desculpar a sua inconsciência apelando para a engrenagem de que foi parte, mas antes é um homem que reconhece que esta máquina representa uma terrível ameaça para a consciência. E deste modo aponta certeiramente para o que hoje constitui o nosso principal problema moral, alertando-nos para um risco fundamental: quando apelamos para a engrenagem da que acreditamos ser meramente uma peça inconsciente e consideramos totalmente justificada a frase: «Nós só fizemos o que os outros faziam», cancelamos a liberdade da decisão moral e a liberdade da consciência, convertemos a palavra «livre» da expressão «o mundo livre» no termo mais vazio e hipócrita. Temo que não tenhamos sabido evitar este risco. A grandeza de Eatherly consiste precisamente em ter a valentia de dar a volta ao argumento, e assim se ter subtraído à perversão moral dominante. Eatherly proclama: aquilo em que eu só participei é também algo que eu fiz; o objeto da minha responsabilidade não são apenas os meus atos individuais, mas sim todos «os atos em que participei»: a pergunta da nossa consciência não é apenas: «O que devemos de fazer?», mas também: «Em que e até que ponto é que devemos participar ou não participar?» Ou melhor: Eatherly sente-se inclusivamente mais responsável dos atos que realizou com outros que com os seus próprios atos enquanto indivíduo, pois as consequências destes últimos, comparados com os efeitos catastróficos dos primeiros, acabam por serem totalmente insignificantes. Comportar-se de forma irrepreensível na vida privada não é grande coisa, pois nesta esfera o costume costuma substituir a consciência. É para se enfrentar com o terror subtil da participação que se requer uma autêntica autonomia moral e um verdadeiro valor cívico; e quando este enfrentamento, como acontece no caso de Eatherly, consiste num questionamento da acumulação de armas nucleares por parte de um país, o círculo infernal da mera participação rompe-se, a ação converte-se verdadeiramente em ação individual no sentido clássico do termo. Eatherly foi constantemente celebrado como herói. Mas o seu feito não foi que, após a sua célebre missão, Hiroxima não exista, mas antes o ter ousado gritar «Nunca mais Hiroxima» depois de fazer o que fez.

Normalmente, a engrenagem desculpa a todos – incluindo os que a dirigem e aos seus proprietários – de toda a responsabilidade, de modo que no final ninguém assuma qualquer responsabilidade, e o único que fica é a terra carbonizada das vítimas e a radiante boa consciência dos néscios. Quando Eatherly se responsabiliza por aquilo em que participou, faz justamente o contrário: intenta manter viva a consciência na época em que a engrenagem prevalece sobre o indivíduo; e é isto que não se lhe consente, pois, a consciência implica sempre crítica, e, portanto, é sempre inconformista.

Não, isto não se lhe consente. Da informação que tenho sobre o que aconteceu em Waco, parece-me indubitável que as Forças Aéreas como as autoridades do Veterans Administration Hospital, fizeram todo o possível para que os médicos retivessem indefinidamente Eatherly no centro hospitalar. Infelizmente, não conheço em profundidade o Direito norte-americano. Por isso não sei e que lei se podem basear as forças Aéreas para disporem de um civil (Eatherly foi afastado do serviço em 1947) nem em que disposições jurídicas se baseiam para atrasar as audiências a pedido dos médicos, nem que cláusula permite que um cidadão considerado oficialmente como um «doente voluntário» possa ficar detido contra a sua vontade, sendo preso após abandonar o hospital por vontade própria, voltando a ser internado. Como digo, como leigo no respeitante à Federal Law e ao Direito público do Estado do Texas, todas estas medidas, cuja correção não ponho em dúvida, excedem o meu conhecimento, e não creio que seja pertinente continuar a aborrecê-lo com o meu desconhecimento destes temas.

Sem dúvida, que pelo tom desta carta, o senhor presidente, terá dado conta que não é minha intenção solicitar o indulto de Eatherly. A concessão de indulto, mas também o simples facto de o solicitar, equivaleriam a reconhecer implicitamente a culpa da pessoa para quem se solicita o indulto. Ora bem, o facto que Eatherly tenha a consciência e valor suficientes para se sentir culpado de um crime urdido por outros, não pode considerar-se como algo punível, mas antes um comportamento digno de respeito e de gratidão. E, segundo o meu entendimento, para aqueles que se sentem orgulhosos de ser norte-americanos seria não só lamentável, mesmo vergonhoso, que Eatherly seja considerado como um estorvo ou uma vergonha no seu país; e que, pelo contrário, justamente ali onde o ódio para com a sua pessoa fosse mais compreensível, em Hiroxima e Nagasaki, seja alguém respeitado e inclusivamente querido. Sei que é assim tanto pelo que as próprias vítimas dizem – uma vez que falei com algumas delas sobre a sorte dos pilotos de Hiroxima, e que consideram Eatherly como mais uma vítima daquela catástrofe -, como pelas demonstrações de afeto que ele próprio tem recebido daquele país e que me deu a conhecer. «Esta carta – escreveu em 29 de julho de 1959 um grupo de trinta raparigas de Hiroxima contaminadas pela radioatividade – foi escrita para lhe expressar a nossa mais profunda simpatia e para lhe assegurar que não sentimos nenhum ódio para consigo. Tal como nós, você é mais outra vítima de Hiroxima». Sem dúvida, estas palavras só nos podem deixar mudos a todos os que por um instante tenham nascido iguais, pois saem da boca dessas pessoas que nos permitem sentir orgulhosos de pertencer ao género humano.

 

  1. Poderia o senhor presidente considerar a possibilidade de organizar um grupo de psiquiatras para voltarem a examinar a saúde mental de Eatherly, por forma a que a sorte dependesse do diagnóstico dessa nova comissão? Essa comissão deveria utilizar os mesmos critérios para a sua formação que os seguidos para idênticas comissões das Nações Unidas, ou seja: deveria ter um caráter internacional e os seus membros deveriam de ser científicos de renome de vários países, por exemplo um sueco, um indiano, um polaco e um japonês. Se o senhor presidente der satisfação a este meu pedido, não haveria dúvida que a sua iniciativa confirmaria claramente a respeitabilidade e a estatura moral dos Estados Unidos. Por outro lado, um passo como este no início do seu mandato, poderia ser interpretado como uma declaração de princípios do seu governo, e inspiraria em todos os países do mundo uma absoluta confiança sobre os passos que pudesse vir a tomar enquanto estivesse no poder.
  2. Poderia imaginar perfeitamente, uma vez que o senhor presidente passa por ser um homem moderno e sem preconceitos, vê-lo um dia numa qualquer ocasião que viesse a falar com Eatherly. Mas não como primus inter pares, mas de igual para igual, pois, com efeito, a enorme responsabilidade que agora tem – e que o desenvolvimento da física nuclear converteu praticamente na responsabilidade sobre o «Ser ou não ser» da humanidade – esta responsabilidade, esta carga, não é muito distinta da que Eatherly suporta desde há quinze anos, pois durante todos este tempo ele não a esqueceu nem um só momento. E mesmo no caso de o homem Eatherly, seu possível interlocutor fosse um pobre diabo (que não o é), se visse a ser condenado por realizar inconsciente e involuntariamente aquela ação e a arrastar durante toda a sua vida esta carga, tal convertê-lo-ia numa figura trágica, num símbolo de hoje, num homem da mesma condição que o senhor presidente, e não só enquanto nascido igual.

 

Atenciosamente,

Günther Anders

 

 

Finalmente, no início de 1962, Eatherly é solto. Viverá até 1978, casado, com duas filhas, sem problemas de maior e regressando no fim da vida ao hospital em Waco para morrer de cancro.

Nesse verão, Anders transcreve na Monthly Review, (1) NY, toda a sua correspondência com Eatherly, a que acrescenta um epílogo em que destaco:

 

“[…] É possível que, quando se publiquem estas linhas, a situação tenha voltado a alterar-se. Nenhum intento de compreender a nossa época goza do privilégio dos jornalistas e apresentadores de televisão, que podem permitir-se ao luxo de sincronizar as suas palavras com os factos que estão a informar; diferentemente deles, nós outros não temos outro remédio que ir a reboque da atualidade, e somos disso conscientes. Mas tal não nos deve inquietar, pois não é a nossa tarefa o apresentar os últimos sucessos, mas sim interpretar uma situação permanente. Isto evita-nos o ter que ir a reboque desses sucessos, evidentemente só no melhor e nos casos menos prováveis, porquanto o único que permanece na nossa situação sempre cambiante é a constante ameaça de que nada seja permanente, e o facto de que todas as nossas advertências chegam sempre tarde.

[…] Porque de agora em diante – se ainda tivermos tempo – estamos condenados, e continuaremos estando, a viver numa situação cuja natureza é já imutável; estamos condenados a viver na «última época», uma época que só pode pôr-se fim a si mesma, e que continuará a ser a última ainda que logremos atrasar dia a dia o «fim dos tempos» […] Este rasgo distintivo da nossa época jamais desaparecerá, pois uma vez que adquirimos a capacidade para por fim ao tempo, já não há marcha atrás; poderemos ser capazes de aprender coisas novas, mas o que nunca poderemos fazer é desaprender o que aprendemos”.

 

 

 

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