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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(373) Os pobres que não se veem

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

“Empreende, empreende”, é o que dizem. Reinventa-te. Estou farta desse discurso. Para a merda com a resiliência. No fim, culpam-te a ti por não te darem trabalho, Marisol Galdón.

 

Nos últimos dois anos, criou-se um novo bilionário a cada 30 horas e um milhão de pessoas empurradas para a extrema pobreza a cada 33 horas, relatório da Oxfam.

 

No sistema de dominação atual, o poder estabilizador já não é repressor, mas antes sedutor, cativante, e muito pouco visível. A repressão visível foi substituída pela motivação, pela iniciativa, pelo projeto.

 

O empresário de si próprio é amo e escravo à vez. Continuamos amos do escravo e escravos do amo, mas não somos homens livres, o que deveria ter acontecido.

 

 

 

 

Marisol Galdón, 59 anos, natural de Barcelona, foi uma presença regular e muito popular na televisão nos anos noventa e os primeiros dois mil (com os programas Plastic e Peligrosamente juntas, e outros), escritora e atriz na série Sentimos las moléstias, encontra-se na situação de desempregada, pelo que em setembro de 2021 resolveu colocar um vídeo no Twitter focando o seu vasto currículo, pedindo trabalho.

A 8 de maio de 2022 deu uma entrevista ao El País, da qual retiro alguns excertos:

 

MG: “[…] A ruína chegou com a crise de 2008, em que baixaram brutalmente os vencimentos, e, sobretudo, com a pandemia. Parou tudo. Tive de vender a minha casa, pagar as dívidas. Até que chegou o momento em que não tive outra saída que gravar e por no ar o tal vídeo.

 

P: Custou-te muito publicá-lo?

 

MG: Muitíssimo. É muito duro sair do armário da pobreza, ainda para mais numa época e numa profissão onde abunda a pose e a impostura. Ficarias doida com a quantidade de colegas que estão tão lixados como eu e só mostram o seu lado ideal.

 

P: Mas também há pessoas que passam bastante pior …

 

MG: Claro, eu não estou numa guerra na Ucrânia fechada num sótão nem me mutilaram o clitóris nem passo fome. Mas necessito de trabalhar e ninguém me contrata. E depois vem essa ditadura da autoajuda e do autoemprego. “Empreende, empreende”, é o que dizem. “Empreende, empreende”, é o que dizem. Reinventa-te. Eu escrevo livros, tenho um blog, acabo de rodar uma curta, invento mil coisas, mas de isso não vivo. Estou farta desse discurso. Para a merda com a resiliência. No fim, culpam-te a ti por não te darem trabalho.

 

P: Como é ser pobre quando antes se vivia confortavelmente?

 

MG: Muito uro. Modestamente, eu tive tudo. Vais-te empobrecendo, vais ter que ir deixando de fazer coisas. Parecerá frívolo, mas é uma derrota intima, por exemplo, ter de deixar de usar cremes bons por marcas brancas do super, e mesmo assim racionando-a. E o pedir aos amigos …. É tudo não, não, não. […]

 

P: No vídeo, oferece-se como jornalista, DJ, apresentadora de eventos, guionista. Está em dia em todos esses campos?

 

MG: Sou muito boa a fazer tudo isso. Já o fiz, e agora com a minha idade, fá-lo-ia muito melhor. Tenho experiência, pose, aprumo. Mas não me querem. Esse é o drama. […]

 

P: Chegou mesmo a pensar em suicidar-se?

 

MG: Sim, sem dramas, até porque a vida pertence a cada um e ninguém se importa que o faças. Desde pequena que nos ensinam coisas maravilhosas como a bondade e quando entras no mundo vês que tudo isso são patranhas, que tudo é mentira. E se fores boa pessoa, passas mal. […] Então, e este mundo não está interessado em mim, dizes como Fernán Gómez: “Vão todos à merda”. […]

 

P: E as rugas?

 

MG: Porque o patriarcado nos vendeu que para um homem maduro, é igual que tenha rugas, barriga, brancas, e que o importante é a sua sabedoria e a sua experiência. E que as mulheres podemos ser sábias, mas que passada certa idade mal nos veem. Esse é o problema em que nos meteram e caímos que nem idiotas. Como permitimos que nos magoem assim?

 

P: Sente-se culpada por não encontrar trabalho?

 

MG: A culpa a única coisa que faz é pôr-nos veneno e ter-nos controlados. Mas sim. Quando és autocrítica, o primeiro que fazes é culpabilizar-te. Penso sempre que terei feito qualquer coisa mal, em que fiz merda. Mas isso é perverso. Este mundo não me merece. Têm uma tipa como eu, superválida, que pode fazer mil coisas num montão de frentes, e não lhes interessa. Essa é a realidade.”

 

 

No último relatório apresentado pela Oxfam, lê-se que nos últimos dois anos, devido ao escalar dos preços da energia e das matérias primas por causa da pandemia e da invasão da Ucrânia, as fortunas dos bilionários ligados a esses ramos cresceram 453 biliões de dólares.

Aponta para a criação nos últimos dois anos (março 2020 a março 2022) de um novo bilionário a cada 30 horas. Ao mesmo tempo, mais de 260 milhões de pessoas foram empurradas para a extrema pobreza (viver com menos de um dólar e noventa por dia), o que dá uma média de um milhão de pessoas por cada 33 horas.

As dez pessoas mais ricas do mundo, mais que duplicaram a sua fortuna, passando de 700 biliões de dólares para 1,5 triliões de dólares, ou seja, ficam com uma riqueza superior ao que têm os 40% do escalão mais baixo da humanidade que são 3,1 biliões de pessoas.

Eis o que diz Abb Maxman, o presidente da Oxfam America:

 

Não é um acidente que estejamos a assistir a estes espantosos níveis de desigualdade quer nos EUA quer no resto do mundo. É por intenção deliberada. Durante décadas, os ultra ricos e as corporações, utilizaram o seu poder económico para pressionarem aqueles que estão no poder para escreverem as regras para que eles pudessem fugir aos impostos, pagarem salários de pobreza e eximirem-se às suas responsabilidades. Ao mesmo tempo, as famílias trabalhadoras têm sentido a faca da insegurança económica e a perca de esperança no futuro”.

 

 

O poder estabilizador da anterior sociedade industrial era repressivo e visível. Mas os trabalhadores industriais explorados de forma brutal sabiam então perfeitamente quem eram os seus opressores. Sabiam perfeitamente contra quem tinham de resistir.

No sistema de dominação atual, o poder estabilizador já não é repressor, mas antes sedutor, cativante, e muito pouco visível. A repressão visível foi substituída pela motivação, pela iniciativa, pelo projeto.


Uma das formas de sedução é a utilizada pelas Googles, Microsofts, Face Books, Intels, e outras similares, que fazem parte dum conjunto de grandes empresas onde se contratam e trabalham os hackers e programadores modernos, para que continuem a praticar os seus passatempos num ambiente legal e informal, sem restrições de maior, tudo isto em espaços arquitetonicamente envolventes que nos comunicam sensações de bem-estar e liberdade e onde todos nós gostaríamos de trabalhar.

 Podem continuar a ir para o emprego como se estivessem em casa, não há normas sociais de trajo e comportamento. Ténis, havaianas, skates, jeans, fato completo ou meio fato, camisa ou t-shirt, calções e sapatos, e tudo o mais que a imaginação à venda ditar, tudo serve para a realização dessa espécie de utopia proto socialista em que se pretende anular a oposição entre a atividade comercial alienada, mas pela qual se ganha dinheiro, e o passatempo privado que se leva a cabo por prazer.

A finalidade é fazer com que o trabalho apareça transformado em passatempo, levando assim que se passem longas horas no local de trabalho, sábados e domingos, à frente do computador: é que quando alguém é pago para desenvolver e finalizar o seu passatempo, fica exposto por ele próprio a uma maior pressão do que se estivesse a trabalhar segundo a ‘boa velha ética de trabalho protestante’.


Uma outra forma de sedução passa por converter o trabalhador oprimido em empresário, empreendedor, empregador de si próprio. O que se pretende é que cada um seja um trabalhador que se explore a si mesmo na sua própria empresa. Cada um é ao mesmo tempo explorador e explorado, amo e escravo. Assim, quando alguém fracassar, culpa-se a si próprio e não à sociedade. Se a pessoa fracassar no seu projeto, aparece (assume-se a si própria) como culpada. Contra quem protestar? Contra si próprio? A luta de classes passa a ser uma luta interna consigo mesmo.


Neste sistema os novos empreendedores trabalhadores nem sequer se dão conta da sujeição em que se encontram, e isto porque acreditam que são livres por trabalharem em algo que é “seu”. Assim, esta ‘exploração com liberdade’ não origina qualquer efeito de resistência, o que torna estável o sistema neoliberal.

É por isso que hoje, após um programa violento de restrições impostas pelos Credores (aqueles que sendo ‘científicos’ nos dizem para termos fé no sistema), assistimos a um grande conformismo e consenso, originando depressões, fadiga crónica, ineficácia, aumento no número de suicídios. A violência é empregue contra si mesmo, em vez de se a utilizar para mudar a sociedade.

Ou seja, em vez da agressão dirigida contra o exterior, que poderia ter como resultado uma forte contestação, fica-se pela autoagressão.


É um mundo que se quer de autoempregados isolados, separados, depressivos, que se dedicam com euforia ao trabalho até à exaustão, até à fadiga crónica. É por isso que não há hoje uma multidão cooperante, interligada, capaz de se converter numa massa protestante e globalmente revolucionária. Não vale a pena esperar que tal multidão de pessoas algumas vez esteja disposta a alterar ou instaurar seja qualquer novo tipo de sociedade.


O neoliberalismo é adepto, conduz à despolitização radical da economia. A necessidade de acabar ou reduzir ao mínimo a segurança social, a escola pública, os serviços de saúde públicos, as atividades culturais públicas, etc., (tudo em nome da “sustentabilidade” e da “liberdade”) são exemplos de como se pretende que a economia funcione: como simples manifestação do estado de coisas objetivo.

Ou seja, a aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade, que não exista qualquer forma de limitação radical da liberdade do capital, nem qualquer subordinação do processo de produção ao controle social. O velho sonho de que “À política o que é da política, à economia o que é da economia”. Não é por acaso que apareceu a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.

Na sua alegoria sobre o amo e o escravo, Hegel pretendeu demonstrar como o progresso histórico para a liberdade se tornava possível através do jogo dialético entre o amo e o escravo: só com a libertação do escravo é que o amo se sentiria também libertado. A história só chegaria ao fim quando fossemos na realidade livres de fato, quando não fossemos nem amos nem escravos, nem escravos do amo, nem amos do escravo.

O que acontece hoje é que nos encontramos numa fase histórica em que o amo e o escravo formam uma unidade. O escravo não trabalha para o amo, mas explora-se voluntariamente a si mesmo. Como empresário de si próprio é amo e escravo à vez. Continuamos amos do escravo e escravos do amo, mas não somos homens livres, o que deveria ter acontecido.


Na sua Política, Aristóteles escreve:

Em consequência, algumas pessoas supõem que é uma função da administração doméstica o aumentar a propriedade e vivem continuamente com a ideia que é um dever salvaguardar as suas posses monetárias ou aumentá-las para um patamar ilimitado. A causa desta atitude da mente reside no fato de os seus interesses se concentrarem apenas na vida, e não na vida boa”.

 

Traduzido para a atualidade, tal significará que o capitalismo de hoje, com a sua compulsão para a acumulação e para o crescimento, absolutiza a mera vida. O seu fim não é a “vida boa”. Perdida esta teleologia da vida boa, o processo do capital e da produção acelera-se até ao infinito, perdendo a sua direção, a sua finalidade. Estamos nisto. Estaremos nisso.

 

 

 

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