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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(372) Quais são os desejos que importam?

Tempo estimado de leitura: 12 minutos.

 

Se um homem lhe oferecer democracia e outro lhe oferecer um saco de grãos, em que fase da fome se prefere o grão ao voto?

 

Eu nunca ouvi falar de uma guerra que procedesse de salões de dança.

 

Qualquer pessoa encontrada a defender uma guerra preventiva devia ser condenada a duas horas por dia com esses monstros engenhosos.

 

As escolas estão lá para ensinar o patriotismo; os jornais, para provocarem a excitação; e os políticos para serem reeleitos.

 

Há, é claro, várias razões para odiar os comunistas […] nós os odiamos porque eles não permitem a liberdade; isso sentimos tão fortemente que decidimos imitá-los.

 

 

 

 

 A noção de que vivemos num mundo de sombras projetadas ou entrevistas de uma realidade exterior que se mantém eterna e imutável, deve-se a Platão. Em algures exterior reside um círculo perfeito; todos os outros círculos que conseguimos ver não são mais que simples e pálidas cópias desse único Círculo, poeiras e cinza dessa unidade etérea.

Talvez tenham sido os matemáticos os primeiros a lidarem com esta noção de uma verdade imutável existente desde o princípio dos tempos quando nos seus estudos provavam para sempre que os números primos eram infinitos ou que a raiz quadrada de dois era um número irracional. Verdades incontestáveis.

Acontece que com o passar dos tempos esses cálculos tidos como irrefutáveis começaram a parecer mais como argumentos que assentavam em axiomas autoevidentes que, embora aparentemente verdadeiros, se baseavam em pouco mais do que o consenso tido entre os matemáticos.

Quando Bertrand Russell descobriu que os axiomas da geometria de Euclides, como “duas retas paralelas não se intercetam”, não passavam de presunções, e que o mesmo se passava com o sistema de números que se baseava em verdades autoevidentes, propõe-se a dedicar a sua vida a tentar resolver a incerteza existente nas matemáticas.

É assim que nos seus Principia Mathematica (1910-13), Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, uns densos três volumes que levaram três anos a escrever e foram publicados às expensas deles, se propuseram a provar racionalmente que 1 + 1 = 2, esperando provavelmente que tal proposição viesse a ser “ocasionalmente útil”.

Os ‘estragos’ provocados no edifício das matemáticas conduziram ao aparecimento do princípio da inconsistência e da incompletude.

 

Mas Russel não foi só matemático. Também foi filósofo, lógico, historiador, crítico social e ativista político. Em 1950 vai ganhar o Nobel da Literatura, que lhe é atribuído como “reconhecimento dos seus variados e significativos escritos nos quais se destacou como campeão dos ideais humanitários e liberdade de pensamento”.

No seu discurso de aceitação (palestra), a 11 de dezembro de 1950 em Estocolmo, subordinado ao título “Que desejos são politicamente importantes”, começa por dizer:

 

“Escolhi este assunto para a minha palestra esta noite porque acho que a maior parte das discussões atuais sobre política e teoria política levam em pouca conta a psicologia. Factos económicos, estatísticas populacionais, organização constitucional e outros, são minuciosamente apresentados. Não se tem dificuldade em se saber quantos sul-coreanos e quantos norte-coreanos existiam quando a Guerra da Coreia começou. Se procurarem nos livros certos, pode-se saber qual era a renda média per capita deles e quais eram os tamanhos dos seus respetivos exércitos. Mas se se quiser saber que tipo de pessoa é um coreano, e se existe alguma diferença apreciável entre um norte-coreano e um sul-coreano; se se desejar saber o que é que eles, respetivamente, querem da vida, quais são os seus descontentamentos, quais são as suas esperanças e quais os seus medos; numa palavra, o que é que, como eles dizem, «faz com que eles funcionem», procurar-se-á em vão nos livros de referência. E por isso não se pode dizer se os sul-coreanos estão entusiasmados com a ONU, ou se preferem a união com seus primos do Norte. Nem se pode adivinhar se eles estão dispostos a abrir mão da reforma agrária pelo privilégio de votar em algum político de quem nunca ouviram falar. É a negligência por tais questões por parte dos homens eminentes que se sentam em capitais remotas, que tão frequentemente causa deceção. Para que a política se torne científica, e para que o acontecimento não surpreenda constantemente, é imperativo que o nosso pensamento político penetre mais profundamente nas fontes da ação humana. Qual é a influência da fome sobre os slogans? Como é que a sua eficácia flutua com o número de calorias da nossa dieta? Se um homem lhe oferecer democracia e outro lhe oferecer um saco de grãos, em que fase da fome se prefere o grão ao voto? Tais questões são muito pouco consideradas. Mas vamos, por enquanto, esquecer os coreanos e considerar a raça humana.”

 

Concentra-se depois nos vários desejos dos seres humanos, dissecando-os um a um. Eis alguns excertos:

 

“A ganância – o desejo de possuir o máximo possível de bens, ou o título de bens – é um motivo que, suponho, tem a sua origem numa combinação de medo com desejo de necessidades […] Mas seja qual for a psicanálise da ganância, ninguém pode negar que ela é um dos grandes motivos – especialmente entre os mais poderosos, pois, como disse antes, é um dos motivos infinitos. Por mais que você possa possuir, sempre desejará possuir mais; a saciedade é um sonho que sempre lhe escapará.”

 

“[…] Um dos problemas da vaidade é que ela cresce com aquilo de que se alimenta. Quanto mais se é conhecido, mais se vai querer ser conhecido. O assassino condenado que tem permissão para ver o relato de seu julgamento na imprensa fica indignado se encontra um jornal que o noticiou de forma inadequada. E quanto mais descobrir sobre si mesmo noutros jornais, mais indignado ficará com aquele cujas reportagens são escassas. Políticos e literatos estão no mesmo caso. E quanto mais famosos eles se tornam, mais difícil é para a agência de recortes da imprensa satisfazê-los. Dificilmente é possível exagerar a influência da vaidade em toda a extensão da vida humana, desde a criança de três anos até ao poderoso que todo o mundo estremece só de ver a cara. A humanidade cometeu até mesmo a impiedade de atribuir desejos semelhantes à Divindade, ao imaginarem-na ávida por elogios continuados.”

 

Sobre o apego ao poder:

 

“A procura do conhecimento é, penso eu, principalmente acionada pelo apego ao poder. Bem como todos os avanços na técnica científica. Por mais que você possa possuir, sempre desejará possuir mais; a saciedade é um sonho que sempre lhe escapará. Seria um completo erro condenar completamente o amor ao poder como motivo. O ser-se levado por esse motivo a praticar ações que são úteis ou ações que são nefastas, depende do sistema social e das nossas capacidades. Se as nossas capacidades são teóricas ou técnicas, contribuiremos para o conhecimento ou técnica e, via de regra, a nossa atividade será útil. Se formos um político, podemos ser movidos pelo apego ao poder, mas via de regra esse motivo se unirá ao desejo de ver realizado algum estado de coisas que, por alguma razão, preferimos ao status quo. Um grande general pode, como Alcibíades, ser bastante indiferente quanto ao lado em que luta, mas a maioria dos generais preferiu lutar pelo seu próprio país e, portanto, teve outros motivos além do apego ao poder. O político pode mudar de lado com tanta frequência que se encontra sempre na maioria, mas a maioria dos políticos prefere um partido ao outro e subordina o seu apego ao poder a essa preferência. O apego ao poder tão puro quanto possível pode ser visto em vários tipos diferentes de homens. Um tipo é o soldado da fortuna, de que Napoleão é o exemplo supremo. Napoleão não tinha, creio eu, nenhuma preferência ideológica pela França sobre a Córsega, mas se se tivesse tornado imperador da Córsega não teria sido um homem tão grande como se tornou fingindo ser francês. Tais homens, porém, não são exemplos puros, pois também obtêm imensa satisfação da vaidade. O tipo mais puro é o da eminência parda – o poder por trás do trono que nunca aparece em público, e apenas se abraça com o pensamento secreto: “Quão pouco estes bonecos sabem quem está a puxar as cordas”. O Barão Holstein, que controlou a política externa do Império Alemão de 1890 a 1906, ilustra esse tipo com perfeição. Ele morava numa favela; nunca apareceu na sociedade; evitou encontrar o imperador, exceto numa única ocasião em que a imposição do imperador não pode ser ignorada; ele recusou todos os convites para funções na corte, alegando que não possuía trajes de corte. Ele tinha conquistado segredos que lhe permitiram chantagear o chanceler e muitos dos íntimos do Kaiser. Ele usou o poder da chantagem, não para adquirir riqueza, fama ou qualquer outra vantagem óbvia, mas apenas para obrigar a adoção da política externa que preferia. No Oriente, personagens semelhantes não eram muito incomuns entre os eunucos.”

 

Chama à liça outros motivos que embora num certo sentido sejam menos fundamentais, têm, contudo, uma considerável importância:

 

“O primeiro deles é o amor pela emoção. Os seres humanos mostram a sua superioridade sobre os brutos pela sua capacidade de tédio, embora algumas vezes eu tenha pensado, ao examinar os macacos no zoológico, que eles, talvez, tenham os rudimentos dessa emoção cansativa. Seja como for, a experiência mostra que escapar do tédio é um dos desejos realmente poderosos de quase todos os seres humanos. Quando os homens brancos contatam pela primeira vez com alguma raça intocada de selvagens, oferecem-lhes todos os tipos de benefícios, desde a luz do evangelho até à torta de abóbora. Estes, no entanto, por mais que nos arrependamos, a maioria dos selvagens recebe-os com indiferença. O que eles realmente valorizam entre os presentes que lhes trazemos é a bebida inebriante que lhes permite, pela primeira vez nas suas vidas, ter a ilusão por alguns breves momentos de que é melhor estar vivo do que morto. Os índios, quando ainda não tinham sido afetados pelos homens brancos, fumavam os seus cachimbos, não calmamente como nós, mas orgiasticamente, inalando tão profundamente que desmaiavam. E quando a excitação pela nicotina falhava, um orador patriótico incitava-os a atacarem uma tribo vizinha, o que lhes daria todo o prazer que nós (segundo o nosso temperamento) tiramos de uma corrida de cavalos ou de uma eleição geral. O prazer do jogo consiste quase inteiramente na excitação. Monsieur Huc descreve os comerciantes chineses na Grande Muralha no inverno, jogando até perder todo o seu dinheiro, depois perdendo todas as suas mercadorias e, finalmente, jogando fora as suas roupas e saindo nus para morrerem de frio. Com os homens civilizados, como com as tribos primitivas dos índios, é, penso eu, principalmente o amor à excitação que faz a população aplaudir quando a guerra rebenta; a emoção é exatamente a mesma de um jogo de futebol, embora os resultados às vezes sejam um pouco mais sérios.”

 

E continua:

 

“Eu costumava, quando era mais jovem, gozar as minhas férias caminhando. Eu percorria vinte e cinco milhas por dia e, quando a noite chegava, não precisava de nada para me afastar do tédio, já que o prazer de estar sentado era suficiente. Mas a vida moderna não pode ser conduzida com base nesses princípios fisicamente extenuantes. Grande parte do trabalho é sedentário, e a maioria dos trabalhos manuais exercita apenas alguns músculos especializados. Quando multidões se reúnem em Trafalgar Square para aplaudir o eco de um anúncio de que o governo decidiu mandá-los matar, eles não o fariam se todos tivessem caminhado vinte e cinco milhas naquele dia. Essa cura para a belicosidade é, no entanto, impraticável, e para que a raça humana sobreviva – algo que talvez seja indesejável – outros meios devem ser encontrados para garantir uma saída inocente para a energia física não utilizada que produz o amor pela excitação. Este é um assunto que tem sido muito pouco considerado, tanto pelos moralistas quanto pelos reformadores sociais. Os reformadores sociais são da opinião de que têm coisas mais sérias para considerar. Os moralistas, por outro lado, ficam imensamente impressionados com a seriedade de todas as saídas possíveis permitidas do amor pela excitação; no entanto, nas suas mentes, a seriedade é a do Pecado. Salões de dança, cinemas, esta era do jazz, são todos, se podemos acreditar nos nossos ouvidos, portas de entrada para o inferno, e estaríamos melhor se ficássemos sentados em casa a contemplar os nossos pecados. Acho-me incapaz de estar inteiramente de acordo com os homens sérios que proferem estas advertências. O diabo tem muitas formas, algumas destinadas a enganar os jovens, outras destinadas a enganar os velhos e os sérios. Se é o diabo que tenta os jovens a divertirem-se, não é, talvez, o mesmo personagem que convence os velhos a condenarem essa diversão? E a condenação não é talvez apenas uma forma de excitação própria da velhice? E não é, talvez, uma droga que – como o ópio – deve ser tomada em doses cada vez mais fortes para produzir o efeito desejado? Não se deve temer que, começando pela maldade do cinema, sejamos levados passo a passo a condenar o partido político oposto, asiáticos e, em suma, todos, exceto os companheiros de nosso clube? E é exatamente dessas condenações, quando generalizadas, que as guerras procedem. Eu nunca ouvi falar de uma guerra que procedesse de salões de dança.”

 

E preconiza:

 

“Acho que toda a cidade grande deveria conter quedas de água artificiais que as pessoas pudessem descer em canoas muito frágeis, e deveriam conter piscinas cheias de tubarões mecânicos. Qualquer pessoa encontrada a defender uma guerra preventiva devia ser condenada a duas horas por dia com esses monstros engenhosos. Mais a sério, o esforço deve ser feito para fornecer saídas construtivas para o amor pela excitação. Nada no mundo é mais emocionante do que um momento de descoberta ou invenção repentina, e muito mais pessoas são capazes de experimentar esses momentos do que às vezes se pensa.”

 

Sobre o ódio:

 

[…] É normal odiar o que tememos, e acontece com frequência, embora nem sempre, que tenhamos medo do que odiamos. Acho que pode ser tomado como regra entre os homens primitivos que eles tanto temem quanto odeiam o que não é familiar. Eles têm o seu próprio rebanho, originalmente muito pequeno. E dentro de um rebanho, todos são amigos, a menos que haja algum motivo especial de inimizade. Outros rebanhos são inimigos potenciais ou reais; um único membro de um deles que se perder por acidente será morto. Um rebanho alienígena como um todo será evitado ou combatido de acordo com as circunstâncias. É esse mecanismo primitivo que ainda controla a nossa reação instintiva às nações estrangeiras. A pessoa completamente não viajada verá todos os estrangeiros como o selvagem considera um membro de outro rebanho. Mas o homem que viajou, ou que estudou política internacional, terá descoberto que, para que o seu rebanho prospere, ele deve, até certo ponto, fundir-se com outros rebanhos. Se você é inglês e alguém lhe diz: «Os franceses são seus irmãos», o seu primeiro sentimento instintivo será: «Parvoíce. Eles encolhem os ombros e falam francês. E até me dizem que comem rãs.» Se ele lhe explicar que talvez tenhamos de lutar contra os russos, que, nesse caso, será desejável defender a linha do Reno, e que, para defender a linha do Reno, a ajuda dos franceses é essencial, você começará a ver o que ele quer dizer quando diz que os franceses são seus irmãos. Mas se algum companheiro de viagem dissesse que os russos também são seus irmãos, ele não seria capaz de persuadi-lo, a menos que pudesse mostrar que estamos em perigo por causa dos marcianos. Amamos aqueles que odeiam os nossos inimigos e, se não tivéssemos inimigos, haveria muito poucas pessoas a quem deveríamos amar.

Tudo isso, no entanto, só é verdade enquanto estivermos preocupados apenas com atitudes em relação a outros seres humanos. Você pode considerar o solo como seu inimigo porque ele produz com relutância uma subsistência mesquinha. Você pode considerar a Mãe Natureza em geral como sua inimiga e encarar a vida humana como uma luta para obter o melhor da Mãe Natureza. Se os homens encarassem a vida dessa maneira, a cooperação de toda a raça humana se tornaria fácil. E os homens poderiam facilmente ser levados a ver a vida dessa maneira se escolas, jornais e políticos se dedicassem a esse fim. Mas as escolas estão lá para ensinar o patriotismo; os jornais, para provocarem a excitação; e os políticos para serem reeleitos. Nenhum dos três pode, portanto, fazer alguma coisa para salvar a raça humana do suicídio recíproco.”

 

 

Sobre o medo:

 

“Existem duas maneiras de lidar com o medo: uma é diminuir o perigo externo e a outra é cultivar a resistência estoica [..] Se pudesse ser estabelecido um sistema internacional que eliminasse o medo da guerra, a melhoria na mentalidade cotidiana das pessoas comuns seria enorme e muito rápida. O medo, atualmente, ofusca o mundo. A bomba atômica e a bomba bacteriana, manejadas pelo perverso comunista ou perverso capitalista, conforme o caso, fazem Washington e o Kremlin tremerem, e empurram os homens mais adiante na estrada em direção ao abismo. Para que as coisas melhorem, o primeiro e essencial passo é encontrar uma maneira de diminuir o medo. O mundo atual está obcecado pelo conflito de ideologias rivais, e uma das causas aparentes do conflito é o desejo pela vitória de nossa própria ideologia e a derrota da outra. Não acho que o motivo fundamental aqui tenha muito a ver com ideologias. Acho que as ideologias são apenas uma forma de agrupar as pessoas, e que as paixões envolvidas são apenas aquelas que sempre surgem entre grupos rivais. Há, é claro, várias razões para odiar os comunistas. Em primeiro lugar, acreditamos que eles desejam tirar a nossa propriedade. Mas os ladrões também, e embora desaprovemos os ladrões, a nossa atitude em relação a eles é muito diferente de nossa atitude em relação aos comunistas – principalmente porque eles não inspiram o mesmo grau de medo. Em segundo lugar, odiamos os comunistas porque são irreligiosos. Mas os chineses são irreligiosos desde o século XI, e só começamos a odiá-los quando deram origem a Chiang Kai-shek. Em terceiro lugar, odiamos os comunistas porque eles não acreditam na democracia, mas não consideramos isso motivo para odiar Franco. Em quarto lugar, nós os odiamos porque eles não permitem a liberdade; isso sentimos tão fortemente que decidimos imitá-los. É óbvio que nada disso é o verdadeiro fundamento do nosso ódio. Nós odiamo-los porque os tememos e eles nos ameaçam. Se os russos ainda aderissem à religião ortodoxa grega, se tivessem instituído um governo parlamentar e se tivessem uma imprensa completamente livre que diariamente nos vituperasse, então – desde que ainda tivessem forças armadas tão poderosas quanto agora – ainda deveríamos odiar se eles nos dessem motivos para considerá-los hostis. Existe, é claro, o odium theologicum, e pode ser causa de inimizade. Mas acho que isso é um desdobramento do sentimento de manada: o homem que tem uma teologia diferente sente-se estranho, e tudo o que é estranho deve ser perigoso. As ideologias, de facto, são um dos métodos pelos quais os rebanhos são criados, e a psicologia é praticamente a mesma, independentemente de como o rebanho possa ter sido gerado.”

 

Finalmente, para resumir a discussão:

 

“A política preocupa-se mais com rebanhos do que com indivíduos, e as paixões que são importantes na política são, portanto, aquelas em que os vários membros de um determinado rebanho podem sentir-se semelhantes. O amplo mecanismo instintivo sobre o qual os edifícios políticos devem ser construídos é de cooperação dentro do rebanho e hostilidade em relação a outros rebanhos. A cooperação dentro do rebanho nunca é perfeita. Há membros que não se conformam, que são, no sentido etimológico, «egrégios», isto é, fora do rebanho. Esses membros são aqueles que caíram abaixo ou subiram acima do nível ordinário. São eles: idiotas, criminosos, profetas e descobridores. Um rebanho sábio aprenderá a tolerar a excentricidade daqueles que se elevam acima da média e a tratar com um mínimo de ferocidade aqueles que estão abaixo dela.

 

No que diz respeito às relações com outros rebanhos, a técnica moderna produziu um conflito entre o interesse próprio e o instinto. Antigamente, quando duas tribos iam à guerra, uma delas exterminava a outra e anexava o seu território. Do ponto de vista do vencedor, toda a operação foi totalmente satisfatória. A matança não era nada cara, e a excitação era agradável. Não é de admirar que, em tais circunstâncias, a guerra persistisse. Infelizmente, ainda temos as emoções apropriadas para essa guerra primitiva, enquanto as operações reais da guerra mudaram completamente. Matar um inimigo numa guerra moderna é uma operação muito cara. Se você considerar quantos alemães foram mortos no final da guerra e quanto os vencedores estão a paga de imposto de renda, você pode, por uma soma em divisão longa, descobrir o custo de um alemão morto, e você o achará considerável. No Oriente, é verdade, os inimigos dos alemães conseguiram as antigas vantagens de expulsar a população derrotada e ocupar as suas terras. Os vencedores ocidentais, no entanto, não obtiveram tais vantagens. É óbvio que a guerra moderna não é um bom negócio do ponto de vista financeiro. Embora tenhamos vencido as duas guerras mundiais, agora seríamos muito mais ricos se elas não tivessem ocorrido. Se os homens fossem movidos pelo interesse próprio, o que eles não são – exceto no caso de alguns santos – toda a raça humana cooperaria. Não haveria mais guerras, exércitos, marinhas, bombas atómicas. Não haveria exércitos de propagandistas empregados em envenenar as mentes da Nação A contra a Nação B, e reciprocamente da Nação B contra a Nação A. Não haveria exércitos de oficiais nas fronteiras para impedir a entrada de livros e ideias estrangeiras, por mais excelentes que fossem. Não haveria barreiras alfandegárias para garantir a existência de muitas pequenas empresas onde uma grande empresa seria mais económica. Tudo isso aconteceria muito rapidamente se os homens desejassem a sua própria felicidade com tanto ardor quanto desejavam a miséria de seus vizinhos. Mas, você vai dizer-me, para que servem esses sonhos utópicos? Os moralistas cuidarão para que não nos tornemos totalmente egoístas, e até que o façamos o milénio será impossível.”

 

E termina:

 

“E entre aquelas ocasiões em que as pessoas ficam abaixo do interesse próprio estão a maioria das ocasiões em que estão convencidas de que estão a agir por motivos idealistas. Muito do que passa como idealismo é ódio disfarçado ou amor disfarçado pelo poder. Quando você vê grandes massas de homens influenciadas pelo que parecem ser motivos nobres, é melhor olhar abaixo da superfície e perguntar-se o que torna esses motivos eficazes. É em parte porque é tão fácil ser enganado por uma fachada de nobreza que vale a pena fazer uma investigação psicológica, como o tenho tentado […]”

 

 

 

Estávamos em 1950 …

 

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