(371) Por quem dobram os sinos?
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Se antes as guerras acabavam com o rei derrotado a abraçar o seu primo vencedor, na Segunda Guerra enforcaram-se os derrotados. Alguns.
Diante comportamentos intoleráveis há que ter a coragem de mudar as regras e as leis, Umberto Eco.
Reconhecer o intolerável quer dizer que em Nuremberga todos deviam de ser condenados à forca.
Todos lavam as mãos: existem leis, deixemos que os tribunais julguem esta canalha.
Sob o ponto de vista estritamente legal ou de costumes internacionais, o processo de Nuremberga foi uma arbitrariedade. Se até aí as guerras acabavam com o rei derrotado a abraçar o seu primo vencedor, nesta enforcaram-se os derrotados. Alguns.
E esta alteração das regras aconteceu porque os vencedores consideraram que nessa guerra aconteceram coisas que iam para além do tolerável. Mas a consideração deste intolerável era feita de acordo com os valores dos vencedores ou com os valores dos derrotados?
Como ganhámos, e como entre os vossos valores estava a celebração da força, aplicamos a força: enforcámo-los. Mas, ‘vocês também cometeram atrocidades!’, dizem os derrotados. Pois sim, isso é o que dizem vocês que foram derrotados, mas nós que ganhámos, somos nós que vos enforcamos! “E assumimos a responsabilidade!”
Este raciocínio de Nuremberga é impecável: diante comportamentos intoleráveis há que ter a coragem de mudar as regras e as leis. É assim que segundo as novas regras um tribunal na Holanda pode julgar as condutas de alguém que está na Sérvia ou na Bósnia.
Foi em finais de 1982 que se celebrou em Paris um congresso sobre o tema da intervenção: Com que direito e com que critérios de prudência se pode intervir em assuntos de outro país quando se considera que nele algo de intolerável acontece para a comunidade internacional? Quem me pede para intervir? Uma parte dos cidadãos? Em que medida é representativa do país, em que medida é que uma intervenção não encobre debaixo dos propósitos mais nobres uma ingerência, uma vontade imperialista? Intervém-se quando o que sucede noutro país vai contra os nossos princípios éticos? Mas os nossos princípios são os princípios deles? Intervém-se porque um país há milhares de anos pratica o canibalismo ritual, o que para nós é um horror, mas que para eles é um ritual religioso? Não foi assim que o homem branco carregou o seu virtuoso fardo e submeteu povos de civilizações mais antigas, embora diferentes da nossa?
A única resposta que parece ser aceitável é que uma intervenção é como uma revolução: não há uma lei prévia que nos diga que se a deve fazer, e mais, faz-se contra as leis e os costumes.
A intervenção internacional noutro país só é justificada mediante algo que nos pareça intolerável. Há que assumir a responsabilidade e decidir que é intolerável e depois atuar, dispostos a pagar o preço do erro.
O que se passou com o nazismo e o Holocausto levou a um novo umbral de intolerabilidade. Muitos genocídios existiram, ao longo dos séculos, e sempre os fomos tolerando. Éramos fracos, éramos bárbaros, não sabíamos o que se passava a dez léguas do nosso povoado.
Mas este foi sancionado (e realizado) em termos ditos “científicos”, com petição explícita de consenso, incluso filosófico, e venderam-nos como modelo planetário a implantar. Golpeou não só a nossa consciência moral, pôs em jogo a nossa filosofia e a nossa ciência, a nossa cultura, as nossas crenças no bem e no mal. Quis anulá-las. Era uma chamada a que não se podia deixar de responder.
É com respeito a esse intolerável que resulta purulenta a sórdida contabilidade dos negacionistas que começam por calcular se os números de mortos foram na verdade seis milhões, ou terão sido cinco, quatro, três, dois, um, como se tratasse de uma mera transação. E se não tivessem sido gaseados e tivessem antes morrido porque se tivessem posto nas câmaras sem demasiado cuidado? E se só tivessem morrido por alergia às tatuagens?
Reconhecer o intolerável quer dizer que em Nuremberga todos deviam de ser condenados à forca, mesmo que só uma pessoa tivesse sido morta e pela simples omissão de socorro. O intolerável não é só o genocídio, mas a sua teorização. E esta implica e responsabiliza também aos peões da matança. Ante o intolerável caem as distinções sobre as intenções, a boa fé, o erro: existe só responsabilidade objetiva. Mas a única coisa que fazia era empurrar as pessoas para dentro da câmara de gás porque me mandavam, na realidade até pensava que os estava a mandar desinfetar.
Não me interessa, sinto muito, mas aqui estamos numa epifania do intolerável, onde não valem as leis antigas com as suas circunstâncias atenuantes: pelo que te condenaremos também à forca.
Para adotar esta regra de conduta (que também vale para o futuro intolerável, que nos obriga a decidir todos os dias onde está o intolerável), uma sociedade deve de estar preparada para tomar muitas decisões, mesmo as duras, e de ser solidária em assumir todas as responsabilidades.
Mas verificamos que ainda estamos muito longe dessa decisão. Quer jovens quer velhos. Todos lavam as mãos: existem leis, deixemos que os tribunais julguem esta canalha.
Naturalmente hoje poderíamos dizer que, depois da sentença de Roma (1), esta capacidade solidária de definir o intolerável está ainda mais longe. Mas também antes estava demasiado longe. E é isto que nos consome. Descobrir-nos (mas sem nos confessarmos) corresponsáveis.
E depois não nos perguntemos por quem os sinos dobram.
Foi isto o que escreveu Umberto Eco no La Republica, “Non chiediamoci per chi suona la campana”, após a sentença quase libratória do tribunal militar de Roma do nazi Erik Priebke.
- O Massacre de Ardeatine foi o assassinato de 335 civis e presos políticos italianos feito em Roma a 24 de março de 1944 por tropas da Alemanha nazi, chefiadas pelos oficiais das SS, EriK Priebke e Karl Hass. Após a guerra, em 1946, Priebke escapou de um campo inglês de prisioneiros na Itália, fugindo primeiro para o Tirol, regressando depois a Roma, onde com papéis falsos fornecidos pelo Vaticano conseguiu emigrar para a Argentina. Em 1994 conta num programa de televisão da ABC do jornalista Sam Donaldson como tinha feito o massacre. Extraditado para Itália, o tribunal de Roma em 1996 considera-o “não culpado” porque “tinha obedecido a ordens”. Talvez devido à onda de protestos que se lhe seguiu, é de novo preso e julgado, desta vez condenado a 15 anos de prisão, reduzidos devido à idade para 10 anos de “prisão domiciliária” em casa do seu advogado, Paolo Giachini. Morreu com 100 anos de causas naturais em 2013. Apesar de proibido pelo Vaticano, o funeral religioso efetuou-se pela Sociedade do Santo Pio X na cidade de Albano Laziale, oficiado pelo ex-capelão das SS, D. Florian Abrahamowicz: “Priebke era um meu amigo, um Cristão e um soldado leal”.
Adenda:
Sugiro a leitura do blog de 26 de dezembro de 2018, “O barro dos artistas”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/195-o-barro-dos-artistas-51486), onde consta a frase de Steiner, “Como é possível ler-se Rilke à noite, ouvir-se Schubert de manhã e torturar ao meio-dia?”