Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(370) “O narcisismo das pequenas diferenças”

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Certamente aquele que tem o poder para vos fazer acreditar em coisas absurdas, tem o poder para vos levar a cometer injustiças, Voltaire.

 

Um dos paradigmas base da nossa civilização ocidental é o da existência de um paraíso terrestre.

 

“Mas tu és circuncisado, acrescentou o quacker? Não tenho a honra de sê-lo, digo eu. Bem, amigo, continua o quacker, tu és um cristão sem ser circuncisado, e eu sou um cristão sem ser batizado,'” Voltaire.

 

Se vocês acreditam que são cidadãos do mundo, são cidadãos de nenhuma parte. Não sabem o que cidadania quer dizer, Theresa May.

 

 

 

 

 

A ideia de que o desenvolvimento das sociedades reproduz o desenvolvimento do indivíduo é muito apelativa, embora dificilmente demonstrável. Na sua versão mais simples, recordemos a “evidência” tida que as civilizações, tal como os indivíduos, nascem, crescem, desenvolvem-se, atingem um apogeu, declinam e acabam por desaparecer.

 A um nível mais erudito, eis o que, por exemplo, nos diz Freud no Totem e Tabu:

 

O primeiro resultado do que estabelecemos é muito digno de nota. Se o animal totémico é o pai, então, as duas principais proibições do totemismo, as duas prescrições-tabu que constituem o seu cerne – a saber: não matar e não utilizar nenhuma mulher que pertence ao totem para fins sexuais – coincidem com os dois crimes de Édipo, que matou o seu pai e tomou por mulher a sua mãe; e com os dois desejos originários da criança, cujo recalcamento insuficiente ou cujo renascer constitui, talvez, o núcleo de todas as psiconeuroses. Se esta analogia for mais do que uma brincadeira desorientadora do acaso, ela deverá permitir-nos lançar luz sobre a origem do totemismo em tempos imemoriais. Por outras palavras, deverá permitir-nos tornar plausível o fato de o sistema totémico ter resultado das condições do complexo de Édipo …”

 

Freud sabe que está a entrar num campo pouco científico quando estabelece o paralelismo entre as perspetivas ontogenética (relativa ao desenvolvimento do indivíduo) e filogenética (relativa ao desenvolvimento da espécie). Daí, o seu “Se esta analogia for mais que uma brincadeira desorientadora do acaso […]”.

 

Mas a tentação é muito forte. Friedrich Engels, após a morte de Karl Marx (1883) propõe-se passar o resto da pouca vida que lhe sobrou (1895) a organizar e a publicar as notas e os inéditos de Marx.

Logo em 1884 publica A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, a que se seguiram em 1885 e 1894 o segundo e terceiro volumes de O Capital.

A Origem talvez tenha sido a obra que mais contribuiu para a aceitação e expansão do imaginário marxista, ao abordar o aparecimento da propriedade, do patriarcado, da monogamia e do materialismo, bem como a progressão ascendente (evolução) da própria sociedade a partir de um estado selvagem inicial, sua passagem para a barbárie e finalmente para a civilização.

E a ideia do comunismo primitivo segundo a qual nas primeiras sociedades a propriedade privada era desconhecida, a alimentação era repartida por todos conforme as suas necessidades e em que todos eram cuidados, e que encontra acolhimento e respaldo na imagem Edénica que se tinha da humanidade, segundo a qual a modernidade foi corrompendo a bondade natural.

 

É bom lembrar que um dos paradigmas base da nossa civilização ocidental é o da existência de um paraíso terrestre (1) como jardim plantado por Deus no Éden, único lugar na Terra onde toda a felicidade era possível. Mas, atenção, ele é também o lugar de onde a natureza humana foi expulsa para sempre.

Pelo que ao longo dos tempos se tem assistido, por um lado às tentativas de um regresso ao Éden contidas nos sonhos revolucionários dirigidos contra os guardiões que lhe impedem o acesso, e por outro lado condicionando ao falhanço todas as tentativas de alcançar a felicidade terrestre.

Em qualquer dos casos, estamos perante a assunção de que o paraíso é um paraíso perdido, e que a natureza humana contém em si qualquer coisa de defeituoso. Pelo que o paraíso terrestre nos aparece sempre como um passado perdido, ou como um futuro a chegar.

 

Atualmente, vários economistas, antropólogos, põem em dúvida não só a existência desse comunismo primitivo como o do aparecimento da propriedade privada. Infelizmente, muitos dos seus argumentos caem exatamente no mesmo processo de não cientificidade que imputam aos marxistas (e não só) ao basearem-se no que se passa com as culturas de povos primitivos atuais (os Aché do Paraguai, os Hiwi da Venezuela, os Kung do Calaári, os Agta das Filipinas, os Deg Hit do Alasca, os Mbuti da África Central, os Ute do Colorado e outros) para presumirem que o povo primitivo primigénio se comportaria de igual modo. Isso é também acreditar (ter fé) não só que a progressão histórica existe, como que ela se produziria exatamente da mesma maneira.

Se presumirmos que as sociedades passaram de pequenas a grandes, ou de igualitárias a despóticas, de um passado angelical a um presente ganancioso, então faz sentido acreditar que elas também tenham transitado de uma harmonia sem propriedade para a competição egoísta. Mesmo que os factos do comunismo primitivo estejam errados, a história parece certa, na medida em que está de acordo (até agora) com as crenças induzidas, ou difundidas, ou naturais, sobre o percurso da história humana.

Contudo, qualquer destas crenças são (podem ser) mutuamente exclusivas, pelo que o seguimento de uma ou outra torna impeditivo o prosseguimento dos seus valores nas sociedades presente e futuras. Daí que a discussão à volta destas bandeiras tenha originado zangas, conflitos, lutas, guerras. Continua a originar. E se o ataque ao marxismo tenha vindo a ficar para trás, assiste-se hoje ao aumento de ataques aos valores religiosos mormente cristãos. (2)

 

Quando da sua estadia em Inglaterra entre 1726 e 1729, Voltaire escreveu vinte e quatro ensaios em forma de cartas sobre as suas vivências na Grã-Bretanha, primeiramente publicadas em Londres (1733) e em inglês, com o título Letters Concerning the English Nation (ou Philosophocal Letters on the English), ainda antes de serem publicadas em francês, em Rouen e Paris em 1734 (Lettres philosophiques sur les Anglais).

As primeiras cartas que se referem a várias das conversas tidas sobre religião, vão dar o tom cordial em que os encontros e as discussões ocorreram. Quando visita um Quaker numa casa de campo nos arredores de Londres, descreve-nos a cena da apresentação inicial: o francês, que faz uma reverência e acena com o chapéu de modo respeitoso, fica totalmente confuso com o Quaker que vestido com simplicidade se recusa a inclinar-se, e que se dirige ao visitante francês com o familiar "tu":

Ele não se descobriu quando eu apareci, e veio na minha direção sem inclinar o corpo uma única vez; mas parecia haver mais polidez no ar aberto e humano do seu semblante do que no costume de pôr uma perna atrás da outra e tirar o chapéu da cabeça, que é feito para cobri-la. E diz-me com ar de amigo: ‘Percebo que tu és estrangeiro’…”

O francês reconhece que tenha tido, ao princípio, dificuldade em desaprender os modos sociais franceses:

 “Continuei a fazer algumas cerimónias muito fora de época, não sendo fácil desvencilhar-me de hábitos aos quais estamos acostumados há muito tempo.”

Depois de comerem juntos, começam a discutir sobre religião. O visitante católico explica ao seu anfitrião quacker que para ser considerado um verdadeiro cristão ele precisaria de ser batizado, ao que o quacker objeta que o batismo é uma cerimónia herdada do judaísmo e que o próprio Cristo nunca batizou os seus seguidores: “Não somos de opinião que o espargir água sobre a cabeça de uma criança faça dela um cristão”.

O narrador francês, que havia começado por declarar a sua razoabilidade, acha que não tem resposta a dar sobre esse ponto de doutrina, mas também não pode admitir que perdeu o argumento: “Tive o juízo suficiente para o não o contestar, pois não há possibilidade de convencer um entusiasta”, declara pomposamente, antes de mudar rapidamente de assunto.

Sugere que diferentes tradições cristãs escolhem entre diferentes partes da Bíblia, e que a superioridade de uma forma deísta de crença transcende as cerimónias particulares de qualquer seita:

 “Mas tu és circuncisado, acrescentou o quacker? Não tenho a honra de sê-lo, digo eu. Bem, amigo, continua o quacker, tu és um cristão sem ser circuncisado, e eu sou um cristão sem ser batizado.'”

“E não têm padres?” “Não, não, amigo (replica o quacker) para nossa grande felicidade”.

 

Ao longo de todos estes ensaios, Voltaire vai-nos dando uma lição objetiva sobre a diferença cultural, demonstrando como essas diferenças podem ser superadas por uma compreensão tolerante. Aconselho a leitura da carta XI, “Sur l’insertion de la petite vérole”, tão atual sobre a vacinação.

Consideram os entendidos que esta obra, escrita para a elite europeia, constitui o primeiro clássico cosmopolita do Iluminismo. Apesar do termo ter como origem o grego Diógenes quando há dois mil e quinhentos anos o usou, kosmou polites, um cidadão do mundo, posteriormente quase que desapareceu, voltando a emergir no século XVI na língua francesa, passando no século XVIII a ser referida conotada aos homens e mulheres educados desse período que experienciavam um sentimento de companheirismo para com uma humanidade alargada.

Sentimento bem expresso por Voltaire numa missiva de 1742 dirigida a César de Missy, residente em Londres:

Não sei se o país que é o vosso é o inimigo deste que por sorte do nascimento se tornou o meu, mas sei bem que os espíritos que pensam como vós são do meu país, e são os meus verdadeiros amigos”.

Hoje, ser cosmopolita pouco mais quer dizer que ser alguém que tenha viajado bastante. Não é de admirar que a Primeira Ministra inglesa Theresa May, ao dirigir-se ao seu partido em 2016, tenha dito que:

Se vocês acreditam que são cidadãos do mundo, são cidadãos de nenhuma parte. Não sabem o que cidadania quer dizer.”

 

O próprio Voltaire se encarrega de lhe responder na Collection des lettres sur les miracles:

 

Há pessoas que outrora vos tenham dito: ‘Vocês acreditam em coisas incompreensíveis, contraditórias e impossíveis, porque nós vos ordenámos; ou seja, cometeram coisas injustas porque nós vos ordenámos para as praticarem. Nada pode ser mais convincente. Certamente aquele que tem o poder para vos fazer acreditar em coisas absurdas, tem o poder para vos levar a cometer injustiças. Se não usarem a inteligência com que Deus dotou os vossos espíritos para resistirem à ordem que vos leve a creditarem em impossibilidades, vocês não serão capazes de usar o senso de injustiça que Deus plantou nos vossos corações para resistirem às ordens do diabo. Uma vez que uma simples faculdade da vossa alma seja tiranizada, todas as outras faculdades seguirão pelo mesmo caminho. E tem sido isso a causa de todos os crimes de religião que têm inundado a terra.”

 

Como diz Cristina Cordeiro da faculdade de Letras de Coimbra:

 

O diálogo inter-religioso só pode existir entre mulheres e homens de boa-fé e de boa vontade, mas também conhecedores da história da sua própria crença e da dos outros, dito de outra maneira, capazes de relativizar, senão o Absoluto, pelo menos o valor das suas expressões e manifestações […] E não esqueçamos … o pomo de discórdia que constitui o que Freud denomina, em Malaise dans la Culture, ‘O narcisismo das pequenas diferenças’, de onde surgiram as terríveis guerras de religião no século XVI.”

 

 

Notas

1: Blog de 17 de março de 2021, “Pecado no Paraíso”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/311-pecado-no-paraiso-90452).

2:  Blog de 28 de junho de 2015, “Cristianismo como resistência à barbárie”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/cristianismo-como-barreira-a-barbarie-2202).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 comentário

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub