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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(369) Intolerância

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Os fundamentos teóricos do Mein Kampf podem refutar-se com uma série de argumentos bastante simples, mas se as ideias que propunha sobreviveram e sobreviverão a qualquer objeção, é porque se apoiam numa intolerância selvagem, impermeável a qualquer crítica, Umberto Eco.

 

Os intelectuais não se podem bater contra a intolerância selvagem, porque, ante a pura animalidade sem pensamento, o pensamento encontra-se desarmado, Umberto Eco.

 

O fundamentalismo, integrismo e racismo, partem de uma base comum que é a intolerância.

 

A maior intolerância é a dos pobres, que são as primeiras vítimas da diferença.

 

 

 

 

 

Como foi possível que países considerados como sendo culturalmente dos mais desenvolvidos, com reconhecidas figuras de relevo mundial nos vários campos da intelectualidade, das Humanidades à Ciência, permitissem (e em alguns casos até encorajassem) o seu envolvimento com a barbárie mais que animalesca que foi o Holocausto programado e sistemático dos judeus e a consequente (por inscrita na mesma raiz) destruição de outras populações, ou segmentos de população, consideradas como sub-humanas?

 

Em termos históricos o “fundamentalismo” é um princípio hermenêutico vinculado à interpretação de um livro sagrado. O fundamentalismo ocidental moderno nasce em ambientes protestantes dos Estados Unidos no século XIX, caraterizando-se pela decisão de interpretar literalmente as Escrituras, sobretudo no que dizia respeito às noções de cosmologia que pareciam por em dúvida a ciência da época.

Este fundamentalismo estrito que tem por base que a verdade resulta da interpretação da Bíblia, só poderia originar-se no protestantismo, porquanto, como para o catolicismo apenas a autoridade da Igreja é que é o garante da interpretação, faz deste fundamentalismo católico, um “tradicionalismo”.

 

Significa isto que o fundamentalismo é necessariamente intolerante? Sim, no plano hermenêutico, e não necessariamente no plano político. Pode-se perfeitamente imaginar uma seita fundamentalista que acredita que os seus próprios eleitos têm direito a correta interpretação da Bíblia, sem com isso obrigar os demais ou a compartir as suas crenças, ou a lutar para criar uma sociedade política com base nelas.

 

Já por “integrismo” se entende a posição religiosa e política pelo qual os princípios religiosos devem converter-se em modelo da vida política e fonte das leis do Estado. E curiosamente, se o fundamentalismo e o tradicionalismo são, por princípio, conservadores, já o integrismo pode ser progressista e revolucionário. Há movimentos católicos integristas que não são fundamentalistas, que lutam por uma sociedade inspirada nos princípios religiosos, sem com isso imporem uma interpretação literal das Escrituras.

Todos estes vários matizes que nos aparecem podem levar-nos a fazer crer do seu relacionamento com o elemento religioso. Mas foi nos Estados Unidos que, sem qualquer motivação religiosa, apareceu o politicamente correto, para promover tolerância e reconhecimento de qualquer diferença, fosse religiosa, racial, sexual. Rapidamente se transformou numa nova forma de fundamentalismo ao espartilhar de uma forma quase ritual a linguagem do dia-a-dia. É assim que, sem retirar qualquer discriminação efetiva ao assunto ou agente, se pode agora falar dele sem pudor. Por exemplo, pode-se falar sobre cegos bastando chamar-lhes de “invisuais”. Mas quem não seguir estas regras de correção política, será discriminado!

E o mesmo se passa com os matizes do racismo: ao passo que o racismo nazi era totalitário e se pretendia científico, embora não havendo nada fundamentalista na doutrina da raça, o racismo vulgar não tem essas mesmas pretensas raízes culturais do racismo nazi. Na realidade não têm qualquer raiz cultural, mas continua a ser racismo.

 

Não é difícil concluir-se que fundamentalismo, integrismo e racismo, partem de uma base comum que é a intolerância. Acontece que existem formas de intolerância que não são racistas, como a intolerância para com os hereges e a intolerância das ditaduras para com os seus opositores. É isto que faz com que a intolerância seja algo muito mais profundo que está na raiz de todos estes fenómenos.

Fundamentalismo, integrismo, racismo pseudocientífico, são posições teóricas que pressupõem uma doutrina. A intolerância aparece antes de qualquer doutrina, o que faz com que a intolerância tenha raízes biológicas, que se manifesta pela territorialidade nos animais e por reações emotivas, a maior parte das vezes superficiais, entre nós: não suportamos os que nos são diferentes, ou por causa da cor da pele, ou porque falam outra língua que não entendemos, ou porque comem rãs, cães, macacos, porco, alho, ou porque fazem tatuagens …

 

A intolerância pelo diferente ou pelo desconhecido é natural na criança, bem como o instinto de se apoderar de tudo o que deseja. Tem assim de aos poucos ser educado na tolerância, bem como no relativo à propriedade alheia. Como consequência, vamos ser expostos ao longo de toda a vida, na vida quotidiana, à diferença para com o outro.

Mas há uma outra intolerância mais profunda, mais difusa, que se crê preexistente: a intolerância selvagem. O exemplo mais vulgar, o da caça ás bruxas.

Como diz Umberto Eco, a doutrina da caça ás bruxas, embora já referida na antiguidade clássica, só aparece na idade moderna. O Malleus Maleficarum é escrito pouco antes do descobrimento da América, sendo contemporâneo do humanismo florentino; La Démonomanie des sorciers é de um homem do Renascimento que escreve depois de Copérnico, Jean Bodin. Esta doutrina só se conseguiu impor porque já antes existia um receio popular para com as bruxas. Sem essas crenças populares não se poderia ter difundido uma doutrina da bruxaria e uma prática sistemática da perseguição.

O antissemitismo pseudocientífico surge no decorrer do século XIX e só se converte em antropologia totalitária e prática industrial de genocídio no século XX. Mas ele não poderia nascer se já há séculos não tivesse existido, vindo desde os padres da Igreja, com a polémica anti-judia e um antissemitismo instalado entre o povo em lugares onde existiam guetos.

As teorias anti-jacobinas da conspiração judia do início do século XIX não criaram o antissemitismo popular, explorara apenas o ódio para com os diferentes que já existia antes.

A intolerância mais perigosa é precisamente aquela que surge na ausência de qualquer doutrina, como resultado de pulsões elementares. Daí que não possa ser criticada ou contida com argumentos racionais.

Os fundamentos teóricos do Mein Kampf podem refutar-se com uma série de argumentos bastante simples, mas se as ideias que propunha sobreviveram e sobreviverão a qualquer objeção, é porque se apoiam numa intolerância selvagem, impermeável a qualquer crítica.

A intolerância selvagem baseia-se num curto-circuito categórico que acaba por ser um campo para qualquer teoria racista futura: alguns ciganos são ladrões (é verdade), portanto, todos os ciganos são ladrões.

Este curto-circuito é uma tentação para todos nós: em Roma roubaram-me a carteira no aeroporto. Logo dizemos aos nossos conhecidos, Atenção às carteiras nos aeroportos italianos. Cambada de ladrões.

Eco, vai tirar duas conclusões:

 

A maior intolerância é a dos pobres, que são as primeiras vítimas da diferença. Não há racismo entre os ricos. Quando muito, os ricos produziram as doutrinas do racismo, mas os pobres produzem a sua prática, que é muito mais perigosa. (Dito popular português: “não há pior fascista que o criado do fascista”).

 

Os intelectuais não se podem bater contra a intolerância selvagem, porque, ante a pura animalidade sem pensamento, o pensamento encontra-se desarmado. Mas, quando se batem contra a intolerância doutrinal, é demasiado tarde, porque quando a intolerância se faz doutrina já é demasiado tarde para a combater, e os que deveriam tê-lo feito convertem-se nas suas primeiras vítimas.

 

 

E é exatamente por não termos conseguido responder aquela interrogação inicial (Como foi possível …?) que não conseguimos erradicar os seus efeitos, cada vez hoje mais ás vistas. Pode até dar-se o caso de não se ter querido responder ou de apesar de se terem obtido respostas parciais não se tenha querido erradicar os seus efeitos, pelo menos na totalidade. Lembremos que na época havia que lutar contra o comunismo internacional e contra o imperialismo capitalista (se não fosse isso seria contra outras coisas), pelo que alguns daqueles génios deveriam ser aproveitados. Como foram.

Pode mesmo dar-se o caso de esta humanidade não ter capacidade para responder à pergunta formulada, e assim sendo, teremos de ir vivendo com o que temos: autocracias e/ou fascismos.

 

Os seres e as sociedades humanas até poderiam ser entidades com alguma graça se não estivessem sempre prontos para matarem os outros. Eis o que Marcel Proust diz no parágrafo final do Em busca do tempo perdido:

 

“[…] se tais forças me fossem concedidas pelo tempo suficiente para realizar a minha obra, não deixaria acima de tudo de descrever nela os homens, ainda que tal os fizesse parecerem-se com uns seres monstruosos, uns seres que ocupam um lugar tão considerável comparado com o tão restrito lugar que lhes está reservado no espaço, um lugar de facto desmedidamente prolongado […]”

 

 

Sugestões de leitura:

              Sugiro a leitura do blog de 30 de novembro de 2016, “ A captura da democracia pelas falsas notícias institucionalizadas …”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-captura-da-democracia-pelas-falsas-24001)

 

e do blog de 18 de novembro de 2015, “A cartilha do fundamentalismo”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-cartilha-do-fundamentalismo-8885).

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