(366) “O Fascismo Eterno”
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Por detrás de um regime e da sua ideologia há sempre uma maneira de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e pulsões insondáveis, Umberto Eco.
O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diferentes ideias políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições.
“Deus devia estar distraído, evidentemente”.
Se retirarmos ao fascismo o imperialismo, teremos Franco ou Salazar; se retirarmos o colonialismo, teremos o fascismo balcânico; se lhe adicionarmos um anticapitalismo radical, teremos Erza Pound…
Seria muito cómodo para nós que se identificassem dizendo: “Quero voltar a abrir Auschwitz, quero que os camisas negras voltem a desfilar pelas praças italianas!”
A Columbia University organizou em 25 de abril de 1995 um congresso para comemorar o aniversário da insurreição geral da Itália do Norte contra o nazismo e pela libertação da Europa. Foi orador Umberto Eco com o “Eternal Fascism”, publicado na The New York Review of Books (22 de junho de 1995).
Na sua dissertação começou por expor a seguinte tese:
“Partindo do princípio que mesmo que se pudessem deitar abaixo os regimes políticos, e se criticassem e retirassem legitimidade às ideologias, o facto é que por detrás de um regime e da sua ideologia há sempre uma maneira de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e pulsões insondáveis.”
E prosseguiu, explicando:
No caso do nazismo, de que o Mein Kampf é o manifesto completo do seu programa político, vemos que ele tem uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa do que é a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e do Super-homem (Ubermensch).
O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, com a mesma clareza que o Diamat de Stalin (o materialismo dialético como versão oficial do marxismo soviético) se entende como um regime que subordina todos os atos individuais ao estado e à sua ideologia, sendo, por isso ambos, o nazismo e o estalinismo, regimes totalitários.
O fascismo, foi sem qualquer dúvida, uma ditadura, mas não era cabalmente totalitário, não tanto pela sua tibieza, mas pela debilidade filosófica da sua ideologia: o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. Mussolini não tinha nenhuma filosofia, tinha apenas uma retórica.
Tendo começado como ateu militante, assinou depois a Concordata com a Igreja, simpatizando com os bispos que lhe benziam as bandeiras fascistas. Nos seus primeiros anos anticlericais diz-se que uma vez pediu a Deus para que o fulminasse logo ali naquele lugar, isto para provar que Deus não existia. Comenta Eco: “Deus devia estar distraído, evidentemente”. Posteriormente, nos seus discursos Mussolini citava sempre o nome de Deus e não desdenhava intitular-se como “o homem da Providência”.
O fascismo italiano foi a primeira ditadura das direitas que dominou um país europeu, e em que todos os movimentos análogos encontraram nele como que um arquétipo. O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e, inclusivamente, uma forma de vestir. Só nos anos trinta apareceram movimentos fascistas na Inglaterra, Letónia, Estónia, Lituânia, Polónia, Hungria, Roménia, Bulgária, Grécia, Jugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega, e na América do Sul e Alemanha.
Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus que o novo regime estava a levar a cabo interessantes reformas sociais, capazes de oferecerem uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista. Mas, o que explica que se passassem a chamar de fascistas todos os outros regimes nas várias nações? A simples prioridade histórica não o justifica. Será que o fascismo continha em si todos os elementos dos totalitarismos que o sucederam, uma “quinta essência do estado”?
Muito pelo contrário, o fascismo não possuía nenhuma quinta essência, nem sequer mesmo uma só essência. Não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diferentes ideias políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições.
Pode-se por acaso conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência, o controle absoluto da economia e o mercado livre?
O partido fascista nasceu proclamando a sua nova ordem revolucionária e, contudo, eram os latifundiários mais conservadores que o financiavam. O fascismo dos primeiros tempos era republicano e sobreviveu vinte anos a proclamar a sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” andasse de braço dado com um “rei”, a quem inclusivamente ofereceu o título de “imperador”.
Mas quando em 1943 o rei destituiu Mussolini, o partido voltou a aparecer dois meses mais tarde, com a ajuda dos alemães, debaixo da bandeira de uma república “social”, reciclando a sua velha partitura revolucionária.
Contudo, esta imagem incoerente não tem nada que ver com tolerância (basta lembrar que Gramsci foi preso e lá ficou até à sua morte; Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a imprensa livre foi suprimida, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos foram exilados para ilhas remotas; o poder legislativo passou a mera ficção e o executivo – que controlava o judicial, bem como os meios de comunicação - emanava diretamente das novas leis entre as quais a da defesa da raça), mas sim com o exemplo de um desconchavo político e ideológico organizado, uma confusão estruturada.
Aqui chegado, Eco desenvolve o segundo ponto da sua tese:
“Houve um só nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” ao falangismo hipercatólico da Espanha de Franco, uma vez que o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Pelo contrário, há muitas maneiras para se chamar de fascismo, e o seu nome não se altera.”
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível de eliminar de um regime fascista um ou mais aspetos, que sempre o podemos reconhecer como sendo fascista. Se retirarmos ao fascismo o imperialismo, teremos Franco ou Salazar; se retirarmos o colonialismo, teremos o fascismo balcânico; se lhe adicionarmos um anticapitalismo radical, teremos Erza Pound; se lhe adicionarmos o culto da mitologia celta, teremos um dos gurus fascistas mais respeitáveis, Julius Evola.
Apesar desta confusão, Eco acredita ser possível indicar uma lista de caraterísticas típicas do fascismo, do “fascismo eterno”. Estas caraterísticas não constituem um sistema, muitas até se contradizem mutuamente e até são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo, mas basta que uma delas esteja presente para indicar a sua pertença à nebulosa fascista.
- Culto da tradição. O tradicionalismo é mais antigo que o fascismo. E nem é só típico do pensamento contrarrevolucionário católico posterior à Revolução Francesa: ele aparece na idade helenística tardia como reação ao racionalismo grego.
Na orla do Mediterrâneo, povos de religiões diferentes começaram a sonhar com uma revelação recebida do dealbar da história da humanidade. Esta revelação há muito que se encontrava escondida nos hieróglifos egípcios, nas runas dos celtas, nos textos sagrados das religiões asiáticas.
Essa nova cultura seria “sincrética” na medida em que permitiria a combinação de formas diferentes de crenças ou práticas e que devesse tolerar as contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando dizem coisas diferentes, é apenas porque todos aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.
Consequentemente, já não pode haver avanço no saber.
A verdade já foi anunciada de uma vez para sempre, e o único que podemos fazer é ir interpretando a sua mensagem obscura. Basta ver as bases recomendadas de qualquer movimento fascista para encontrarmos os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazi alimenta-se de elementos tradicionalistas, sincretistas, ocultos, numa mistura do Gral com os Protocolos dos Anciães de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano, e até de Santo Agostinho (que não era fascista) com Stonhenge!
- Renegar o modernismo. Apesar dos fascistas e nazistas adorarem a tecnologia e de estarem orgulhosos dos seus feitos industriais, este aplauso estava, contudo, assente numa ideologia baseada no “sangue” e “terra” (Blut und Boden). O renegar do mundo moderno aparecia como uma condenação da forma de vida capitalista, muito embora na verdade ele assentasse na repulsa do espírito do Iluminismo, da idade da Razão, que era visto como o princípio da depravação moderna. O “fascismo eterno” é irracionalista.
- Culto da ação pela ação. A ação é bela por si e, portanto, deve ser sempre prosseguida antes de, e sem, qualquer reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso a cultura é suspeita na medida em que se a identifica com atitudes críticas. Por alguma razão Goebbels declara que “Quando ouço a palavra cultura, levo a mão à pistola”, e se normalizavam expressões como “porcos intelectuais”, “morte à inteligência”, “universidade, albergue de comunistas”. A suspeita do mundo intelectual foi sempre um sintoma do “fascismo eterno”. O maior empenho dos intelectuais fascistas foi sempre o de acusar a cultura moderna e a intelectualidade liberal por terem abandonado os valores tradicionais.
- Não aceitação do pensamento crítico. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica entende o desacordo como um instrumento de progresso dos conhecimentos. Para o “fascismo eterno”, o desacordo é traição.
- Medo à diferença. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O fascismo cresce e procura o consenso explorando e exacerbando o medo á diferença. A primeira chamada dos movimentos fascistas é contra os intrusos. O “fascismo eterno” é, pois por definição, racista.
- Cresce da frustração individual ou social. O “fascismo eterno” surge da frustração individual ou social, o que explica porque é que uma das caraterísticas dos fascismos históricos tenha sido o chamamento das classes médias frustradas, descorçoadas por crises económicas ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Na nossa época, é na pequena burguesia oriunda da conversão dos antigos proletários, que o fascismo encontra o seu público.
- O nacionalismo e a obsessão pelo complot. A todos aqueles que carecem de uma qualquer identidade social, o “fascismo eterno” diz-lhes que o seu único privilégio é o mais vulgar de todos, o terem nascido no mesmo país. Eis a origem do E quem pode oferecer uma identidade à nação são os inimigos. Esta é a origem da obsessão pelo complot. Os sequazes devem sentir-se assediados. A maneira mais fácil de o conseguir é apelar à xenofobia. Mas este complot deve também surgir do interior: os judeus são os que melhor servem para isso, por terem a vantagem de estarem ao mesmo tempo dentro e fora.
- Os inimigos são simultaneamente demasiado fortes e demasiado débeis. Os sequazes devem sentir-se humilhados pela riqueza ostentada e pela força dos inimigos. Os judeus são ricos e ajudam-se mutuamente graças a uma rede secreta de assistência recíproca. Os sequazes devem estar convencidos que apesar de tudo podem derrotar os inimigos. Os fascismos estão condenados a perderem as suas guerras, porque são incapazes de valorizar com objetividade a força do inimigo.
- A vida como guerra permanente. Para o fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Daí o pacifismo, o conluio com o inimigo, ser mau na medida em que a vida é uma guerra permanente. Como os inimigos devem e podem ser derrotados, então terá que haver uma batalha final, a partir da qual o movimento ficará com o controle do mundo. Uma solução final que acaba por implicar uma época sucessiva de paz, uma Idade de Ouro, o que contradiz o princípio da guerra permanente. Outra incoerência nunca explicada.
- Um elitismo de massa. No decurso da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicam o desprezo pelos fracos. O fascismo não pode deixar de predicar um “elitismo popular”. Cada cidadão pertence ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, cada cidadão pode converter-se num membro do partido.
O líder, sabe perfeitamente que o seu poder não foi obtido por mandato, pois foi conquistado pela força, e sabe também que a sua força se baseia na debilidade das massas, tão débeis que necessitam e merecem um “dominador”. Uma vez que o grupo está organizado hierarquicamente, todo o líder subordinado deprecia os seus subalternos, e cada um deles deprecia os seus inferiores. Tudo isto reforça um elitismo de massa.
- Cada um é educado para se converter num herói. Em todas as mitologias, o “herói” era um ser excecional, mas na ideologia fascista o heroísmo é a norma. O seu culto de heroísmo está vinculado com o culto da morte: recorde-se o lema dos falangistas “Viva la muerte!”. Ás pessoas normais diz-se que a morte é nojenta, mas que se a deve encarar com dignidade; aos crentes diz-se que é uma forma dolorosa de alcançar a felicidade sobrenatural. Já o herói fascista aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa de uma vida heroica. O problema é que esta sua impaciência por morrer acaba, na maior parte das vezes por fazer que morram os demais.
- Inveja permanente do pénis. Dado que a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o fascista transfere a sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do seu machismo (que implica desdém para com as mulheres e uma condenação intolerante de costumes sexuais não conformistas, da castidade á homossexualidade). E como o sexo é também um jogo difícil de jogar, o herói fascista joga com as armas, que são o seu Ersatz fálico: os seus jogos de guerra devem-se a uma inveja permanente do pénis.
- Oposição aos governos parlamentários. O Fascismo eterno baseia-se num “populismo qualitativo”. Numa democracia os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto dos cidadãos só está dotado de um impacto político de um ponto de vista quantitativo (quando se seguem as decisões da maioria). Para o Fascismo Eterno os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos, e o “povo” concebe-se como uma qualidade, uma entidade monolítica que expressa a “vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode possuir uma vontade comum, o líder pretende ser o seu intérprete. Tendo perdido o seu poder de mandato, os cidadãos não atuam, são chamados apenas para desempenharem o papel de povo. O povo é só uma ficção teatral. Podemos perceber melhor porque para este populismo qualitativo já não precisamos hoje do estádio de Nuremberg ou da Piazza Venezia: através da Televisão ou da Internet teremos a resposta emotiva de um grupo selecionado de cidadãos apresentada ou aceitada como a “voz do povo”. É devido ao seu populismo qualitativo que o Fascismo eterno se opõe a todos os “apodrecidos” governos parlamentários. Cada vez que um político levanta dúvidas sobre a legitimidade do parlamento por ele já não representar a “voz do povo”, podemos perceber o cheiro do Fascismo Eterno.
- O Fascismo Eterno fala numa “neolíngua”. Todos os textos escolares nazis ou fascistas têm por base um léxico pobre e uma sintaxe elementar, propositadamente para limitar os instrumentos para o raciocínio complexo e crítico. Mas devemos de estar preparados para identificar outras formas de neolíngua, que podem inclusivamente tomar a forma inocente e popular de reality-show. Devemos prestar muita atenção para que palavras como “liberdade”, “liberdade de palavra”, “liberdade de imprensa”, “liberdade de associação política” e “ditadura” não se lhe percam o sentido. O Fascismo Eterno permanece à nossa volta, ás vezes com trajes civis. Seria muito cómodo para nós que alguém se identificasse dizendo: “Quero voltar a abrir Auschwitz, quero que os camisas negras voltem a desfilar pelas praças italianas!” Infelizmente, a vida não é tão fácil. O Fascismo Eterno pode voltar com aparências mais inocentes. O nosso dever é desmascara-lo e apontar com o indicador cada uma das suas formas novas, todos os dias, em qualquer parte do mundo.