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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(365) Outras falsidades com que convivemos

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Empurrarem a alavanca passou a ser por si só fonte de prazer, independentemente de obterem ou não recompensa. Pior: verem a alavanca e não a empurrar, causava-lhes ansiedade, da experiência de Skinner com ratos.

 

Em todo o mundo, há quatro empresas que produzem os aromas e sabores de tudo o que compramos.

 

O seu trabalho é enganar o nosso cérebro através dos sentidos, para que acredite que estamos a comer algo muito diferente daquilo que metemos na boca.

 

O capitalismo moderno tem sempre a solução perfeita para o problema que cria.

 

 

 

 

 

Preocupamo-nos com a nossa dependência de telemóveis e culpamos os grandes grupos económicos que a sustenta e incentiva, como se tratasse de uma anomalia, de uma degenerescência, que só agora sucede.

Mas, se conseguirmos perceber que aquilo que nos acontece com o nosso telemóvel, com as redes sociais, com as plataformas de maior êxito na rede e das que nos tornamos mais dependentes, é exatamente o mesmo que se passa com as outras poderosas e tóxicas indústrias que mantêm equipas de génios extraordinariamente motivados com salários exorbitantes e laboratórios com o último grito em tecnologia com o único propósito de nos manipularem sem darmos conta, talvez isso nos tranquilize e acabemos todos, na melhor das hipóteses, a tranquilamente trautear aquele hino da Mocidade Portuguesa “Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados SIM!” e na pior das hipóteses, a cantar e a marchar ao mesmo tempo. Em qualquer dos casos, sempre contentes. Rosto sorridente com olhos sorridentes. 😊

 

 

Nos anos quarenta, um psicólogo de Harvard, B. F. Skinner (1904-1990), construiu uma caixa com uma alavanca que quando atuada fazia abrir uma porta de onde caia comida. Dentro da caixa meteu um rato que, depois de passear pela caixa, tropeçou na alavanca e para sua surpresa saiu a comida. Rapidamente se apercebeu que tocar na alavanca significava comida. A este circuito de ver a alavanca, puxar a alavanca e comer (recompensa), Skinner chamou “circuito de reforço contínuo” e à caixa, “caixa de condicionamento operante” (que para sua irritação ficou conhecida por todos como a “caixa de Skinner”).

Quando o rato já estava habituado a este circuito, Skinner alterou a rotina: quando o rato carregava na alavanca, umas vezes saía comida, outras não. A este novo circuito chamou de “reforço de intervalo variável”. E descobriu que a falta de recompensa não desativava o condicionamento. Pelo contrário, o não saber se tinha prémio ou não, até reforçava mais o condicionamento.

O rato carregava na alavanca quer ela lhe desse comida ou não. Para o seu pequeno cérebro, o carregar na alavanca passou a ser por si só fonte de prazer, independentemente de obter ou não recompensa. Pior: ver a alavanca e não a empurrar causava-lhe ansiedade.

Skinner mudou a alavanca de sítio, mudou o rato de caixa, mas o resultado era o mesmo: um comportamento automático, independentemente das circunstâncias. Quando aparecia a alavanca, carregava nela sem pensar. A única forma de conseguir desprogramar o rato era substituir o prémio por um castigo, como por exemplo, um choque elétrico. O que verificou não ser efetivo para os ratos

 

O rato só mostrava atividade cerebral quando via a alavanca e quando se afastava dela. O resto, carregar na alavanca e engolir a comida, fazia-o em piloto automático sem qualquer atividade neuronal.

Se conseguíssemos perguntar ao rato o que se passara desde o carregar na alavanca até ao comer, provavelmente não se lembraria.

Tal como nos acontece quando conduzimos o carro para ir para casa, não pensando sequer no caminho que estamos a seguir, ou quando pegamos no telemóvel para procurar algo que nos interesse e acabamos, sem saber, por passar minutos a verificar a caixa de correio, as atualizações do Twitter, Messenger, Instagram, WhatsApp, etc.

Aliás, nem sequer nos lembramos porque pegámos no telemóvel, nem o que vimos nas aplicações …

 

Em todo o mundo, há quatro empresas que produzem os aromas e os sabores de tudo o que compramos: Givaudan, Firmenich, International Flavors & Fragrances (IFF) e Symrise. São as responsáveis por transformar o produto num outro completamente distinto, mudando-lhe o sabor, o aroma e a textura, sem alterar nem um só que seja dos ingredientes constituintes nem o processo de fabricação.

O seu objetivo não é o estômago de cada um, mas o cérebro, para que aí se recriem aqueles sabores que mais nos inebriem, e isto é feito para cada cultura: o caldo de galinha na Ásia tem um sabor diferente do da Europa.

Estas equipas de engenheiros de aromas e sabores que operam sobre a mente com material invisível, incluem nobéis da química, investigadores de sociologia, chefes de departamentos de Neurobiologia de instituições de topo, e que não trabalham sozinhos, mas acompanhados por especialistas noutro tipo de “química”.

 As suas criações chegam-nos reforçadas por uma campanha de marketing, um branding: os que sabem que se vende mais pescada se a etiquetarmos como “linguado chileno”, que o chocolate mais doce tem os bordos redondos, que a música alta e rápida faz-nos comer e comprar mais depressa.

As toalhitas de bordo que a Singapore Airlines entrega ainda quentes aos seus passageiros, estão impregnadas com o aroma Stefan Floridian Waters, que é o mesmo utilizado pela British Airways na cabina dos seus aviões, especialmente concebido para “estimular o relembrar de boas recordações durante o voo” e para retirar a ansiedade da viagem.

As cápsulas de Nespresso contêm um aroma a grão moído existentes nas cafetarias que se volatiliza durante a sua utilização para que se sinta que se está a fazer café.

O cheiro a carro novo foi pensado para que se sinta que se está a conduzir um carro mais caro, feito noutra época, com outros materiais. Este aroma foi encomendado pela Rolls-Royce Motor Cars quando substituiu os seus assentos de couro por outro material sintético e a madeira do tablier por plástico.

Grande parte dos deliciosos aromas a café, a pão recém-feito, e a bolos de chocolate que sentimos nas pastelarias, saem de um difusor. O aumento das vendas chega a 300 por cento, pelo que quase todo o comércio os usa. Até as galerias de arte usam o Comme des Garçons 2 (provavelmente sairia mais barato comprar o difusor para ter em casa em vez de comprar a obra de arte).

 

O seu trabalho é enganar o nosso cérebro através dos sentidos, para que acredite que estamos a sentir ou a comer algo muito diferente daquilo que metemos na boca. Conseguem assim fazer-nos comer coisas que não nos alimenta, e sobretudo, muito mais quantidade do que a que necessitamos.

 

A vida do ser humano não tem sido fácil: ao longo de milhares de anos, enfrentámo-nos sempre com a escassez. Nos raros casos em que havia excesso de comida, o natural era comê-la toda (não havia frigoríficos para a guardar) e não se sabia quando é que se teria nova comida. Fomos assim desenvolvendo um mediador principal entre a comida e nós, que nos dizia onde encontrar o alimento e o que se podia ou não comer: o olfato.

Os miúdos gostam de coisas doces porque as plantas comestíveis são doces, e não gostam do ácido e do amargo porque as frutas ácidas não estão maduras e as carnes ácidas indicam a presença de bactérias, leveduras e bolores, estão podres. As plantas e as bagas amargas costumam ser venenosas. O cheiro sulfuroso de um ovo podre é um sinal de alarme tão grande que ainda hoje se junta ao gás butano para notarmos que há uma fuga.

 

Toda esta experiência evolutiva fez com que premiássemos o consumo do açúcar, estimulando a mesma rota neuronal que se ativa com o sexo e com as drogas. Vivemos hoje num mundo sem fim de alimentos com açúcar, só que dificilmente identificados por nós, por ele se esconder atrás de produtos que nos aparecem como salgados, como sopas, molhos, patés, hambúrguer, batatas fritas, pão.

Várias razões são apresentadas para muitos produtos conterem sal e açúcar: para os conservarem, para reduzir o ponto de congelação, para os gasificarem. A verdadeira razão é porque a mistura de gordura, sal e açúcar potencia o sabor doce. A indústria combina-os para encontrarem o “bliss point”, o ponto da felicidade, o ponto que ativa a produção da quantidade exata de dopamina no nosso cérebro, mas sem nos saturar. Ou seja: o ponto que nos vai fazer continuar a comer compulsivamente por nunca nos satisfazer de todo.

É o que nos acontece com a grande maioria dos “snacks” e das “fast food”: não podemos deixar de as comer porque elas foram concebidas para nunca nos satisfazer totalmente. Com a agravante de, por não as conseguirmos deixar de comer, julgarmos que tal se deve a uma falha nossa, uma vergonhosa e humilhante falta de vontade nossa.

O que se segue é a obesidade e a desnutrição, os gordos e malnutridos tão caraterísticos da nossa sociedade.

Nada que o capitalismo moderno não tenha solução (tem sempre a solução perfeita para o problema que cria): produtos “light” de baixos teores em gordura, açúcar, glúten e colesterol.

Mesmo quando as boas intenções presidam às resoluções, as “leis” do mercado acabavam por se impor.  Na realidade, o que acontece é que é mais fácil criar uma dependência do que desfazê-la.

Por exemplo, a General Mills, que em 2004 limitou a onze gramas por porção o açúcar contido em todos os cereais para as crianças, devido à queda nas vendas viu-se obrigada três anos depois a voltar a aumentar o açúcar. Em 2007, a Campbell Soup Company, começou a diminuir a quantidade de sal nas suas latas de sopa. Em 2011, voltaram a subir a quantidade de sódio de 400 mg para 650. A Coca-Cola em 2012 reduziu para um terço o açúcar na Sprite, e as suas vendas caíram enormemente. Como confirmou um estudo de mercado da Mintel: “Os consumidores estão preocupados pelo seu consumo de sal e de açúcar, mas não estão dispostos a renunciar ao sabor”.

 

Skinner não acreditava no livre arbítrio. Para ele todas as respostas do ser humano eram condicionadas por uma aprendizagem prévia baseada no castigo e na recompensa, que eram possíveis de ativar de maneira previsível através de um encadeamento apropriado de situações. O que significava que o comportamento era como um sistema, possível, portanto, de ser sistematizado.

Daí que para ele, a rotina tem de ser espoletada como se tratasse de um estado de hipnose, através de uma palavra, uma imagem ou um conceito, ou ainda pela ativação de outra rotina.

 Não admira que se diga que se Skinner ainda estivesse vivo, trabalharia atualmente para a Facebook, Google ou Amazon, com três mil milhões de ratos humanos para experimentar.

 

Muitos outros psicólogos depois se têm dedicado ao estudo do comportamento humano a fim de darem cunho científico ao velho aforismo de que “com papas e bolos se enganam os tolos” que somos nós. Sugiro a leitura, para quem estiver interessado, de Nir Eyal, Hooked: How to Build Habit-Forming Products, e de B. J. Fogg, Persuasive Technology: Using computers to Change What We Think and Do.

Eles dizem-nos coisas importantes, como “o cérebro não gosta de pensar. Mas gosta da ordem”: se concluir que uma cadeia de decisões é apropriada, quer repeti-la a todo o momento até que ela se torne automática. É assim que conseguimos andar sem pensar, atar os sapatos, andar de bicicleta, jogarmos futebol.

Vejamos, por exemplo, o que se passa com os vídeos jogos: utilizamos cadeias de decisões que serão cada vez mais compridas e mais depressa, que nos ajudarão a resolver os problemas que vão surgindo. E essa sensação que somos cada vez melhores a fazer uma coisa, sobretudo quando sempre que o fizermos todo o universo nos felicitar ou de que não há ninguém a gozar connosco quando falhamos, parece ser das que provocam maior dependência.

O mundo real não tem tarefas interessantes. Já os jogos são perfeitos, e ainda por cima tens recompensas imediatas, quer ganhes quer não ganhes, e mais, até podes ver os pontos que te dão”.

 

 

A tecnologia que mantém a internet a funcionar não é neutral, assim como a que existe ou instalamos nos nossos telemóveis. Todas elas têm progredido de uma maneira premeditada com um objetivo específico: manter-nos agarrados ao ecrã durante o maior tempo possível, sem que nunca atinjamos o ponto de saturação.

O seu objetivo não é manter-te atualizado, nem ligado aos teus entes queridos, nem descobrir a tua alma gémea, nem ensinar-te a fazer ginástica, nem manter-te informado sobre o que se passa no mundo. Não é fazer que a tua vida seja mais eficiente, ou que o mundo seja um lugar melhor. O que a tecnologia que há dentro do teu telemóvel quer é que fiques agarrado a ela. É o engagement, o “contrato de casamento”: o célebre compromisso do utilizador.

Que te é apresentado de uma forma muito simples: basta carregares num quadrado. Milhões de pessoas já o têm feito, dão o “Sim, quero”, sem se incomodarem a ler os termos do utilizador.

Até porque seria necessário quase um curso e uma enorme paciência para o ler. Em 2015, os termos do utilizador da iTimes continham vinte mil palavras, os da Facebook quinze mil, divididas em segmentos deliberadamente intrincados. Com o simples carregar no quadradinho, o contrato passa a ser vinculativo: o utilizador renuncia a direitos para que a companhia possa recompilar e vender os seus dados, para assim singrar economicamente.

A partir dessa altura, o mais difícil está feito:  que a pessoa aceite ser utilizador ou que se instale a aplicação. Com aquele pequeno gesto de carregar no quadradinho, gesto que irá ser repetido até à exaustão, que não custa nada e que se faz quase sem pensar.

 Gesto que com o tempo se automatiza, criando uma rotina. “Um tipo de rotina que quando repetida inúmeras vezes, acaba mesmo por ser executada mesmo quando não se quer. A esta rotina, se for boa, chamamos hábito. Se for má, chamamos dependência.”

Mas, atenção: “essa” rotina má é boa para a empresa, “essa” rotina boa é má para o utilizador. Interpretações deste tipo não passam de relativismos muito apreciados, mas que não passam de manobras de ocultação bem-vindas pelo verdadeiro poder.

 

 

 

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