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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(364) Liberdade como antecâmara da ditadura: Huxley como essencial para realizar Orwell

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Se não te acautelares, os jornais far-te-ão odiar aqueles que estão a ser oprimidos e adorar aqueles que exercem a opressão, Malcolm X.

 

Tudo no Estado. Nada fora do Estado. Nada contra o Estado, Benitto Mussolini.

 

O Ministério da Paz declara guerras, o Ministério do Amor tortura presos políticos, o Ministério da Verdade reescreve os livros de história com os “factos alternativos” do Partido, G. Orwell.

 

“Deus disse-me: ‘George, vai e luta contra esses terroristas no Afeganistão’. E eu o fiz. E logo Ele me disse: George, vai e acaba com a tirania no Iraque. E eu o fiz”, George Bush.

 

 

 

 

 

 

Tem alguma importância o saber-se diferenciar entre aquilo que é “propaganda” e aquilo que é “desinformação”. Basicamente, a propaganda utiliza os meios de comunicação de uma forma eticamente duvidosa para nos convencer sobre a mensagem que quer transmitir; a desinformação inventa ela própria a mensagem, que está desenhada para enganar, assustar, confundir e manipular por forma a levar os seus recetores a aderirem aos seus dogmas para se libertarem do medo e acabarem com a confusão.

A desinformação quase sempre provém de uma pessoa ou organização de confiança ou de prestígio, baseia-se em fotos e documentos alterados, dados fabricados e material retirado do contexto com a finalidade de criar uma visão distorcida ou alternativa da realidade. Os seus temas recorrentes são extraídos da mesma sociedade em que querem intervir.

 

Em março de 1987, Dan Rather, então apresentador de notícias da CBS, dizia aos americanos que o vírus da sida (HIV) teria provavelmente escapado ao controle de um laboratório experimental do exército dos EUA onde se ensaiavam armas bioquímicas com a finalidade de atacar a população negra e a comunidade gay.

A fonte da notícia era uma carta ao diretor publicada no Patriot, um jornal de Deli, Índia. A carta era de um “conhecido científico e antropólogo americano” que assegurava que a sida tinha sido desenvolvida por engenheiros genéticos à ordem do Pentágono, a partir de vírus recolhidos em África e na América Latina por uma unidade de controle de doenças infectocontagiosas. O laboratório do exército sediava-se em Fort Detrick, Maryland.

Esta notícia correu mundo, e ainda hoje é tida como verdadeira por muitas pessoas. No entanto, como mais tarde se veio a saber, tratava-se de uma notícia falsa, criada pelos serviços de inteligência da Alemanha de Leste, Departamento A de Desinformação do KGB.

Tudo isto foi confirmado por um ex-agente do KGB, Ilya Dzerkvelov, e em 1992, após a queda da União Soviética, pelo diretor do KGB, Yevgeny Primakov.

O Patriot, tinha sido criado pela agência russa em 1962 como veículo para as suas campanhas de desinformação. Era usual a agência plantar estas histórias em países do terceiro mundo sem grandes recursos para investigação e em que os jornalistas eram mais facilmente subornáveis.

A notícia foi-se lentamente propagando pelo continente asiático até ser convenientemente “encontrada” por uma revista de Moscovo, Literaturnaya. Citando a publicação na Patriot, corroborava-a apoiando-se num professor de bioquímica reformado da universidade Humboldt de Berlim, Jakob Segal, e da sua mulher Lili Segal:

Todos sabem que nos Estados Unidos os presos são usados ara experiências. Prometem-lhes a liberdade se saírem vivos das experiências.”

Finalmente, a notícia acabou por chegar ao noticiário da CBS. Mais tarde, os Segal também vieram a ser confirmados como agentes do Departamento A.

 

Este é um exemplo de uma excelente campanha de desinformação: não só por ter conseguido identificar as fissuras existentes na sociedade por onde se poderia infiltrar, como por as expandir, extremando-as.

Vivia-se o tempo em que o pânico provocado pelo alastramento da sida era suficientemente grande para levar a sociedade a acusar negros e homossexuais por a terem provocado.

Na mesma altura, soube-se que o exército americano tinha realizado entre 1949 e 1969 pelo menos 239 experiências com germes letais, incluindo a libertação de esporos em túneis de uma autoestrada na Pensilvânia. Quando em 1977o Departamento da Defesa desclassificou essa informação, houve grande indignação, o que o levou a dar a seguinte explicação: a investigação ajudaria os aliados a ganharem a guerra, mesmo que isso pudesse vir a intoxicar a própria população local.

E isto era o que a operação da KGB pretendia alcançar: não o tentar saber qual era a origem da sida, mas antes gerar dúvidas sobre a idoneidade moral do Governo dos EUA que, pelos vistos, até era capaz de produzir armas bioquímicas para acabar com grupos vulneráveis dentro do seu próprio país.

Afinal havia precedentes. Que mais coisas é que o Governo teria ocultado? Os assassinatos de JFK e de ML King, o Watergate, Nixon, a desinformação sobre os movimentos de direitos civis e contra a guerra do Vietname?

 

Para George Orwell, as palavras importavam. Para ele, o empobrecimento e o emaranhamento da linguagem popular eram uma consequência de uma linguagem política “desenhada para fazer que as mentiras parecessem verdades e o assassínio parecesse respeitável, dando assim um ar de solidez ao que não passava de puro ar”.

Assim, no 1984, vai mostrar-nos como o Partido usava descaradamente a linguagem para nomear os organismos ministeriais exatamente pelo contrário daquilo que faziam. Assim, o Ministério da Paz declarava guerras (curiosamente, nas nossas sociedades reais, os ministérios da guerra passaram a chamar-se de ministérios da defesa embora sirvam para fazer a guerra), o Ministério do Amor torturava presos políticos, o Ministério da Verdade reescrevia os livros de história com os “factos alternativos” do Partido, que exigia a todos os seus membros que rechaçassem a evidência do que os seus olhos veem e os seus ouvidos ouvem, e aceitassem a verdade que o Partido lhes propunha.

Já agora, eis alguns dos slogans oficiais que o Partido usava:

“A guerra é paz. A liberdade é escravatura A ignorância é a força.”

“Quem controla o passado, controla o futuro.”

“Quem controla o presente, controla o passado”.

 

Recordemos a cerimónia de inauguração da tomada de posse de Trump, sobre a qual o secretário para a Imprensa da Casa Branca, Sean Spicer, declarou “ter sido a cerimónia com maior número de pessoas a assistirem em toda a história das inaugurações e PONTO!”, contrariando todas as evidências dos inúmeros vídeos, fotos, declarações e números dos transportes públicos.

Quando perguntada na televisão sobre essa discrepância, a conselheira do Presidente, Kellyanne Conway, disse tranquilamente que os dados que Spicer fornecera não eram falsos, eram sim “factos alternativos”.

 

Hannah Arendt ajuda-nos a compreender como se chegou a isto:

 

Num mundo eternamente em mudança e incompreensível, as massas chegaram até onde podiam, para ao mesmo tempo acreditarem em tudo e em nada, pensar que tudo era possível e que nada era verdade […] Os líderes totalitários de massas baseiam a sua propaganda na correta premissa psicológica de que, nessas condições, qualquer um podia fazer que as pessoas pudessem acreditar na mais fantasiosa declaração num dia, e que no dia seguinte lhes dessem uma prova irrefutável da sua falsidade, encontrando refúgio no cinismo. Em vez de abandonar os líderes que lhes tinham mentido, diriam que sabiam perfeitamente que a declaração era mentira e admirariam os líderes pela sua genialidade tática superior.”

 

Recordemos a utilização por George Bush de “factos alternativos” para invadir o Iraque em 2003: as provas sobre a existência de armas de destruição massiva (imagens de satélite de instalações nucleares, compras de “alumínio de alta resistência para centrifugadoras de gás e outros materiais necessários para enriquecer urânio”) faziam com que Sadam, não só estivesse a violar o acordo que assinou sobre o fim da Primeira Guerra do Golfo, como poderia em menos de um ano estar a produzir armas nucleares.

Depois da guerra, soube-se que o Iraque não tinha nem instalações nem capacidade para construir tais armas, e que a Administração Bush tinha mentido para justificar uma guerra ilegal.

Eis a resposta de Bush:

 

O homem, Sadam Hussein, tinha ganho muito dinheiro em resultado da subida do preço do petróleo. E ainda que seja verdade que não havia, já sabes, ummm …, encontramos uma bomba suja, por exemplo; tinha a capacidade para construir armas químicas, biológicas e nucleares. Assim que havia …bom, é tudo hipotético. Mas sim, posso dizer que estamos muito mais seguros sem Sadam. E eu diria que as pessoas do Iraque têm uma melhor oportunidade de viver num Estado … um Estado pacífico.”

 

Mas, talvez que a sua para si verdadeira justificação para a invasão seja a que deu noutra ocasião:

 

Deus disse-me: ‘George, vai e luta contra esses terroristas no Afeganistão’. E eu o fiz. E logo Ele me disse: ‘George, vai e acaba com a tirania no Iraque’. E eu o fiz”.

 

Contudo, o verdadeiro dono da manipulação foi Joseph Goebbels, o chefe da propaganda do Terceiro Reich. Percebendo rapidamente que a magia oratória de Hitler não funcionava bem nas ondas radiofónicas (a magia da distorção magnética necessitava da sua presença física), resolveu intercalar os seus longos discursos com programas de variedades, interrompendo-os de tanto em tanto tempo, copiando o que as rádios comerciais já faziam quando interrompiam os programas para anunciarem cigarros, sabonetes, detergentes, etc.

Como se já estava em 1933, em que tudo lhe era permitido (após o incêndio do Reichstag a 27 de fevereiro de 1933, o Ministério do Interior promulga o decreto para a Proteção do Povo e do Estado que suspende os direitos civis da sociedade alemã para assegurar a sua estabilidade, nomeadamente o direito à liberdade de expressão, de associação, de reunião, de imprensa e o segredo das comunicações, e anula também o direito ao habeas corpus. As autoridades começam a registar os domicílios e oficinas, a confiscar bens privados, fechar jornais e a prender cidadãos sem processo legal, conseguindo assim mandar todos os deputados do Partido Comunista para a prisão o que permitiu ao Partido nazi ganhar as novas eleições a 5 de março de 1933), para que a população alemã ouvisse obrigatoriamente as suas emissões, Goebbels faz duas coisas:

Manda produzir em massa aparelhos de rádio de baixo custo, os Volksempfänger (recetor do povo), passando o número de lares com rádio dos quatro milhões e meio de 1933 para dezasseis milhões em 1941 – o que era a maior audiência radiofónica de todo o mundo -  e cria um pequeno exército, os Funkwarte (guardas da rádio) cuja função era a de estabelecer a ponte humana entre a rádio e os seus ouvintes: havia pelo menos um destes membros em cada bairro, cujo trabalho era instalarem os altifalantes em cada praça, oficinas, fábricas, restaurantes, colégios e outros espaços públicos, isto para além de vigiarem e verificarem que os rádios dos vizinhos se encontravam ligados um determinado número de horas por dia consideradas suficientes.

Para Goebbels, a rádio era o grande instrumento da Revolução Nacional Socialista, “o intermediário mais importante e influente entre um movimento espiritual e a nação”. É bom lembrar que nessa época a rádio dava-nos aquela mesma sensação de acompanhamento imediato que o Twitter nos dá hoje, levando as pessoas a sentirem que estavam mesmo a viverem os factos que se estavam a passar em tempo real.

 

Na sociedade do 1984, é colocado um ecrã gigante, que tudo o que se passa ao seu redor vê e escuta, ligado à Polícia do Pensamento. Trata-se de uma distopia marcada pela violência estatal e pelas privações, sacrifícios para com o Estado e pelas senhas de racionamento.

Contudo, a vigilância e o controle que hoje vivemos tem vindo a ser criado acidentalmente (hipótese benevolente e não historicista) por um pequeno grupo de empresas para comprarmos produtos e clicarmos em anúncios. “O seu poder não tem por base a violência, mas algo muito mais insidioso: a nossa infinita capacidade para nos distrairmos. Uma grande apetência para a satisfação imediata.”

Ninguém nos obriga a ter o ecrã aceso determinadas horas por dia para ver certos programas. Somos nós próprios que voluntariamente nos esforçamos por o levar connosco para todos os sítios, carregá-lo a todas as horas, renová-lo a cada dois anos, e a tê-lo ligado durante todo o tempo para não perdermos um segundo sequer de propaganda.

 

É por isto que há quem defenda que a nossa sociedade talvez esteja mais próxima da do Admirável Mundo Novo (Brave New World) de Aldous Huxley, onde as crianças são geradas artificialmente no Centro de Incubação e Condicionamento da Central de Londres, e em que durante o sono “escutam inconscientemente as lições hipnopedicas de higiene e sociabilidade, de consciência de classe, e de vida erótica”.

São programadas para o consumo e a obediência, o conformismo e a entrega, a ausência de intimidade. A confusão, o medo ou a tristeza são estados não desejados que se desativam voluntariamente através de drogas.

 

Orwell temia aqueles que proibiam os livros. Huxley temia que não houvesse razões para proibir livros porque não havia ninguém que os quisesse ler. Orwell temia que se nos ocultasse informação. Huxley temia que nos dessem tanta informação que ficássemos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que nos ocultassem a verdade. Huxley temia que a verdade se afogasse num mar de irrelevância”.

 

Um dos seguidores de Marshall McLuhan, Neil Postman, elucida-nos no seu livro, Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business, que estudar uma cultura é analisar as suas ferramentas de conversação. Começa por dissecar a televisão, “um espetáculo muito belo, uma delícia visual, que derrama milhares de imagens ao dia”. E que, contudo, pela sua própria natureza, não é própria para elaborar um pensamento profundo ou para compreender um argumento completo.

“O ato de pensar é transformador, mas não é telegénico. Requer pausa, paciência.” Mesmo num final de um bom programa de televisão, o que se pede é aplauso, não reflexão.

A duração média de um plano televisivo é de 3,5 segundos, para que o olho não descanse, para que tenha sempre algo de novo para ver”. E apesar de num programa televisivo haver uma certa coerência editorial, o normal é aproximarem-se cada vez mais dos feed de notícias do Facebook, do Twitter, ou do YouTube, em que os conteúdos são desconexos, numa torrente de informação imprevisível, onde notícias de animais convivem com as da bomba atómica, os políticos com os cãezinhos e gatinhos, as receitas de cozinha com memes racistas, a atualidade com a memória passada, a fantasia com a mentira. Numa cascata infinita que nunca acaba.

O problema não é a frivolidade ou a fragmentação do conteúdo. O problema é que o conteúdo deixa de ser relevante.

Adictos às notícias, à atualidade, à política, vemos os debates de televisão com um computador sobre os joelhos e o telemóvel na mão, hipnotizados por um conteúdo que deixa de ser relevante e que pode ser qualquer um, convencidos de estarmos a saber exatamente o que está a acontecer na realidade.

 

Não é, pois, de admirar que neste nosso mundo “novo” de imensas possibilidades técnicas, a indústria da manipulação política tenha criado campanhas clandestinas em canais de comunicação cifrados para sussurrar ao ouvido de milhões de pessoas, contando a cada uma delas coisas distintas, conforme o que elas gostam de ouvir.

Huxley é essencial para Orwell.

 

 

 

Manipulação por manipulação, prefiro de longe a da subtileza contida no “Adágio” de Rui Knopfli:

 

“Com esta flauta encantada

te direi o que mais nenhum homem

te dirá.

             Quando chegar a altura

da migração irás com as outras aves.

Eu ficarei nas dobras de um tempo

a fazer-se esquecimento.

                                            Outras

vozes enredarão sua teia caprichosa

em teu redor. Tu hás-de ouvi-las

com ar atento. E sorrirás.

Mas na ternura do teu sorriso

haverá um fino, esquivo traço

de malícia que tu ainda pressentes

(mais do que escutas) a surdina do meu canto,

 

Arame agitado ao vento da lembrança.”

 

 

Mais poemas no blog de 19 de agosto de 2016, “Últimos poemas da Colónia de Férias, 1971: Rui Knopfli”.

 

 

 

 

 

 

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