(363) Vida como conto de fadas
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Todos podem ser famosos por quinze minutos, Andy Warhol.
Uma vida completa a chupar e a orar.
Desemprego na meia-idade, desemprego para o resto da vida.
A invisibilidade que nos fazem sentir e o preconceito sobre a idade, são desafios terríveis para milhares de desempregados e empregados a tempo parcial, Nina McCollum.
E se ninguém me contratar para um emprego a tempo integral com os benefícios sociais? Como vou viver? Como passo por isso?
Parece ter sido Andy Warhol, atento observador da sociedade em que vivia, que em 1967 disse que “todos podem ser famosos por quinze minutos”. Embora a ideia possa não ter sido dele, ao longo do tempo ele mesmo foi alterando o sentido da frase, adaptando-a, como camaleão que era, ao ambiente em que se encontrava (“no futuro todos podem ser famosos por quinze minutos”, “no futuro todos serão mundialmente famosos por pelo menos quinze minutos”,” dentro de quinze minutos todos serão famosos “, etc.).
Constatação que hoje diariamente nos entra pelos olhos e ouvidos através de aquelas quantidades de “estrelas” fugazes que pululam os mídia da comunicação social, onde apesar de tudo ainda se incluem as estações de televisão.
Cientistas ou reitores de universidade, gestores de empresas ou do que for, cabeleireiros, futebolistas, advogados, empregados de balcão e sem balcão, banqueiros que são ou que já foram, motoristas, avós, mães, maridos, pais, filhinhos, conhecidos por serem conhecidos ou para serem conhecidos, passeantes a pé ou sentados, por uma outra qualquer maior razão jornalistas, políticos e seus opositores, mesmo que a não tenham, eu sei lá que mais, tudo artistas sedentos dos seus poucos minutos de celebridade (devido à crise ou à excessiva concorrência nem aos quinze minutos têm direito) que não exitam (mas excitam-se) em exporem-se perante as câmaras qual cardumes de peixes que freneticamente se atiram para os anzóis já vazios de isco ou como artistas de varão propositadamente impudicamente despidos, pornografia desejada, incentivada.
Não que Arthur Miller não tivesse avisado: “Se todas as pessoas fossem famosas, então não existiria fama!” Não perceberam. E que Banksy não nos tenha tentado fazer pensar com o seu televisor cor-de-rosa que incluía a mensagem: “No futuro todos serão anónimos por quinze minutos”.
Pena esses mídia não acompanharem a vida desses artistas para nos mostrarem não só como ali chegaram, mas especialmente o que depois lhes foi acontecendo. Eis dois casos de vida de mulheres brancas da classe média da sociedade americana apontada por ser a mais avançada, como sendo o exemplo para onde nos encaminhamos, que me parecem refletir um pouco dessa realidade: Um, uma vida já transcorrida, outro, uma vida ainda a decorrer.
Adenda 1
Sobre artistas, sugiro o blog de 26 de dezembro de 2018, “O barro dos artistas”, e o blog de 5 de julho de 2017, “As Josefinas cantoras”.
Uma vida completa a chupar e a orar
Linda Boreman nasceu em 1949 no Bronx, Nova Iorque, filha de um polícia e de uma empregada de mesa. Frequentou escolas católicas e era conhecida por manter os seus namoros à distância para evitar contactos sexuais. Aos 16 anos, o pai reforma-se da polícia e mudam-se para a Florida. Ninguém diria que viria a ser escritora de três livros e atriz famosa de cinema.
Aos 20 anos engravida e a mãe aconselha-a a dar o filho para adoção. Pouco depois regressa a Nova Iorque, para tirar um curso de computadores. Entretanto sofre um acidente de viação e devido aos ferimentos leva uma transfusão de sangue. Infelizmente o sangue estava infetado e desenvolveu hepatite, o que a vai obrigar 18 anos depois a um transplante de rim.
De regresso a casa dos pais para convalescer, envolve-se e casa com Chuck Traynor, ex-cabeleireiro e chulo, que a convence a ir com ele para Nova Iorque, onde a introduz no mundo da pornografia através de pequenos filmes de 8 mm a serem vistos em peep shows.
Faz filmes de bestialidade, como Dogarama, em que aparece a ter sexo com um cão, e filmes de urofilia como o Piss Orgy, onde a excitação sexual é associada com a prática de urinar sobre outra pessoa.
Em 1972, Traynor resolve aproveitar-se de uma habilidade que Linda tinha, a de introduzir objetos de enorme tamanho na boca (para o caso, pénis) e regressar a Miami com a finalidade de fazer um filme pornográfico já sem ser em 8 mm, realizado por Gerry Damiano (Jerry Gerard). O guião trabalhado por Damiano basear-se-ia numa jovem mulher que não conseguia obter um orgasmo que não fosse pela boca. O filme chamar-se-ia Deep Throat (Garganta Funda), e a artista principal seria Linda Boreman com o seu novo nome de Linda Lovelace.
Provavelmente não passaria de mais um filme porno com alguns laivos de humor, bem fotografado e com uma artista jovem (sem o aspeto usado das que costumavam aparecer) que teria o clitóris na garganta, não fosse a campanha promovida por Nixon contra a pornografia, a desordem moral que grassava na sociedade americana e o pacifismo instalado durante a guerra do Vietname.
Talvez se percebam melhor as tentativas feitas para a proibição da película se soubermos que ainda hoje em alguns Estados americanos são considerados como delitos o sexo anal e a felação. Seja como for, da mesma forma que a Playboy era comprada por chefes de família que o diziam fazer apenas porque trazia bons artigos e não pelas mamas que exibiam, também Garganta Funda era apresentado como um filme sobre uma mulher à procura de um orgasmo. O New York Times (21 janeiro 1973) chamava-lhe mesmo de porno chic.
O que fez que, apesar de perseguido e proibido em mais de vinte Estados, ou talvez por isso, o filme rendesse cerca de cem milhões de dólares (25.000 para o realizador). Não tendo proporcionado grande dinheiro aos protagonistas (Linda foi a única que recebeu, 1250 dólares, dinheiro que mais tarde lhe foi confiscado pelo marido), converteu-os, no entanto, em celebridades nacionais. Linda Lovelace foi capa da Esquire e da Playboy, sendo requisitada a sua participação nos principais meios de televisão, convertendo-se mesmo na “noiva da América”. O sonho americano realizado.
“Eu não era mais que uma entre tantas, e sem que me apercebesse do que se estava a passar, de repente encontrei-me convertida numa artista e num nome que todos conheciam. Um nome que fazia com que as pessoas sorrissem”, escreveu ela no seu primeiro livro, Ordeal.
Conheceu os famosos Warren Beatty, Anne Bancroft, Hugh Hefner, John Lenon, Elvis Presley. “Quando tinha onze anos tinha as paredes do meu quarto cobertas com fotos do Elvis. Nem queria acreditar que agora o tivesse à minha frente em carne e osso […] Recordo sempre Elvis como um rapaz, como se não tivesse envelhecido por ter alcançado a fama enquanto era jovem. Depois tudo lhe sorrio. Como a mim, em certo aspeto. Não quero com isto dizer que eu seja, nem que vá ser tão importante quanto ele, mas apenas que existe um certo paralelismo entre ele e eu.”
Em menos de dois anos, passou de fazer filmes em super 8 em que praticava sexo com um cão a tutear-se com o mais admirado de Hollywood. Na exploração do êxito, faz uma peça de teatro, Pajama Tops, em Filadélfia, e uma continuação do Deep Throat II, com pouco sucesso.
Conseguindo fugir ao controle de Chuck Traynor, divorcia-se dele e casa com David Winters, produtor do seu novo filme, Linda Lovelace for President, em que percorre o país em campanha eleitoral num autocarro em forma de pénis.
Em 1974, publica duas autobiografias, Inside Linda Lovelace, e The Intimate Diary of Linda Lovelace. E em 1976 é escolhida para o papel principal do filme erótico, Forever Emmanuelle, contudo é substituída por outra atriz uma vez que se negou a fazer cenas de nu, e por a Vénus de Milo aparecer com os seios descobertos. Drogas, bebida ou epifania.
Em 1977 aparece ainda brevemente numa peça de teatro em Las Vegas, My Daughter’s Rated X.
Entretanto em 1976 casou-se com Larry Marchiano, um eletricista dono de uma lavandaria a seco, com quem vem a ter dois filhos, vivendo numa pequena cidade em Long Island. É talvez o único período estável da sua vida. Devido à hepatite contraída pelo sangue infetado da transfusão 18 anos antes, teve de fazer um transplante de fígado.
Em 1980 publica Ordeal e junta-se ao movimento anti pornografia. É em Ordeal que vai descrever a sua entrada e vida na pornografia e os constantes abusos a que diz ter sido sujeita:
“A minha iniciação na prostituição foi através de uma violação por um grupo de cinco homens arranjados pelo meu marido. Foi aí que a minha vida se alterou profundamente. Ele ameaçou matar-me com a pistola apontada. Eu nunca tinha feito sexo anal e fiquei toda rasgada. Eles trataram-me como se eu fosse uma boneca insuflável de plástico, agarrando-me e movimentando-me para todos os lados […] Nunca na minha vida tinha estado tão aterrorizada, desgraçada e humilhada. Senti-me lixo. Consenti em todos os atos sexuais e pornografia com receio de ser morta.”
Finalmente em 1986 publica Out of Bondage, um livro de memórias da sua vida depois de 1974. Ainda em 1986, no testemunho que prestou perante a Comissão de Pornografia do Ministério da Justiça (“Meese Commission”), afirmou:
“Quando me virem no filme Deep Throat, estão a verem-me ser violada. É um crime que o filme continue a ser projetado e visto; durante todo o tempo tive uma pistola encostada à minha cabeça.”
Em 1990, a lavandaria do marido vai à falência, e mudam-se para Denver, Colorado. Devido a abusos (álcool e outros), o casamento acaba em divórcio, em 1996. Em 2002, sofre um novo grave acidente de viação, do qual vem a falecer. Marchiano e os dois filhos estavam presentes a quando do seu passamento.
Adenda 2
Sobre pornografia, sugiro o blog de 28 de novembro de 2018, “A Pornografia como cultura civilizacional”.
Desemprego na meia-idade, desemprego para o resto da vida
Este é o caso de Nina McCollum, de Cleveland, EUA, desempregada, separada e mãe de um filho de 4 anos, contado no seu artigo de 5 de março de 2022 e publicado no Huffpost, “O que eu aprendi sobre desemprego e ser pobre após ter concorrido para 215 empregos”.
Profissional na área da comunicação durante 15 anos, perdeu o emprego em 2017, e desde então ainda não conseguiu qualquer emprego estável ou com garantia mínima de futuro.
Ao princípio, diz ela, “apesar do medo que sentia, tinha a certeza que arranjaria em pouco tempo outro emprego melhor, muito antes do seguro de desemprego terminar. Tenho anos de experiência e tenho formação académica. Considero-me inteligente, trabalhadora, responsável, apaixonada pelo que faço e um membro incrível em qualquer equipe ou ótima trabalhando de forma independente. Tinha referências fantásticas, amostras do bom trabalho realizado e uma atitude empreendedora. Sempre consegui empregos com facilidade e gostava dos processos de entrevista. Candidatei-me a muito mais do que os dois empregos por semana exigidos pelos serviços de desemprego”.
E passa a explicar o que lhe foi acontecendo e como o sistema funciona:
“A invisibilidade (ghosting) que nos fazem sentir e o preconceito sobre a idade, são desafios terríveis para milhares de desempregados e empregados a tempo parcial. É o que acontece com a chamada “economia colaborativa ou de partilha” (gig economy), em que as empresas contratam trabalhadores por curtos períodos de tempo para evitarem aumentar o número de empregados ou terem de oferecer regalias sociais. Num emprego temporário em que trabalhei, há cinco anos que uma colega fazia design gráfico como “contratada”. Ela nunca sabia quando é que a iriam chamar de novo, ou por quanto tempo. Era-lhe difícil pagar as contas sem uma renda estável, e não poderia optar por trabalhar como freelancer não fosse o caso de ser chamada e ficar de repente indisponível.”
E continua:
“Certa vez, ofereceram-me um trabalho como “freelancer em tempo integral” quase legal, uma vez que o Ministério do Trabalho está cada vez mais a reprimir esse tipo de situação. As grandes empresas como a Google estão a usar os trabalhadores desta forma: eles vão ao escritório todos os dias, tal como os empregados a tempo integral, mas não são elegíveis para benefícios como seguro de saúde ou plano de reforma. Os empregadores servem-se de agências de emprego para contornarem os requisitos de contratação efetiva, de modo a que o trabalhador passe por ser um “empregado” da agência de trabalho temporário, com pouca ou nenhuma proteção ou incentivo. Estas ofertas de posições de “permanência” são cada vez mais comuns, porque oferecem todas as vantagens para o empregador e porque há muitos desempregados que aceitam qualquer trabalho que possam conseguir. Isso alimenta o ciclo de usar as pessoas para o trabalho quando for conveniente para a empresa, sem qualquer investimento no trabalhador e sem qualquer compromisso com ele.”
“Entrei em contato com várias empresas de relações públicas e agências de marketing. Fiz networking, expandi o meu perfil no LinkedIn, trabalhei com headhunters, inscrevi-me em agências de emprego. Tive ótimas conversas durante as entrevistas e diziam-me que eu era o “principal candidato”. Apresentavam-me à equipe e diziam “Definitivamente entraremos em contato” ou “Você tem tudo o que estamos procurando”, e depois nunca mais ouvia nada deles. Toneladas de candidatos reclamam on-line todos os dias constatando que a invisibilidade é hoje uma parte tão difundida do processo da procura de emprego. É difícil que não se venha a sentir atingido por ele.”
“Até o momento, candidatei-me a mais de 215 empregos (mantenho uma folha de cálculo), incluindo para trabalho a tempo integral e a meio período, com contrato e como temporário, quer localmente quer nacionalmente. Principalmente para trabalho de escrita e comunicação, mas nem sempre. Candidatei-me a um trabalho de transcrição, mas sou deficiente auditiva e não consegui ouvir as gravações com clareza suficiente para passar nos testes. Candidatei-me a empregos de secretariado/escritório, embora não tivesse feito um trabalho desses há mais de 15 anos. Nunca fui chamada para uma entrevista. As agências de recrutamento disseram-me que eu era “muito experiente” (leia-se: muito velha) para esses trabalhos. Eles querem pessoas que sejam jovens e que trabalhem por metade do que eu ganhava com o desemprego. Teria sido mais fácil parar de tentar e candidatar-me a apenas dois empregos por semana, mas eu sabia que o meu seguro de desemprego não duraria para sempre.”
“A forma como a riqueza é distribuída neste país está projetada para tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres – é quase impossível sustentar-se, ou se não pode comprar as botas ou tem vergonha de pedir botas emprestadas, ou se suas botas são julgadas no supermercado como muito bonitas ou de má qualidade aos olhos de alguém que nem as está a usar. Se você tiver a sorte de não ter que se preocupar de onde virá a sua próxima refeição ou como manterá um teto sobre a sua cabeça, pare de julgar e demonizar as pessoas pobres. O inferno diário da pobreza já é bastante difícil.”
“É importante que as pessoas entendam como é difícil ser pobre. Há um mundo de diferença entre doar comida para despensas e ser o recetor, esperando que alguém tenha deixado algo especial em vez de atum enlatado barato que comprou na loja de um dólar. Um frasco de manteiga de amendoim na prateleira da minha despensa foi um achado tão especial que me fez chorar.”
“Os obstáculos pelos quais você precisa de passar para obter e qualificar-se para a ajuda – não apenas uma vez, mas diariamente, semanalmente e mensalmente – são incrivelmente difíceis. Você passa horas ao telefone ou na fila para comer alimentos pouco saudáveis e precisa regularmente de apresentar provas adequadas para continuar a qualificar-se. A luta mental e física é horrível, e não deveria ser assim. Desemprego, subemprego e pobreza não são problemas que podem ser resolvidos da noite para o dia, mas pelo menos a retirada do estigma associado à luta e à necessidade de ajuda pode acontecer imediatamente.”
E interroga-se:
“Após um ano, comecei a pôr-me a pergunta que me fiz naqueles primeiros meses da procura de emprego: e se ninguém me contratar para um emprego em tempo integral com os benefícios sociais? Como vou viver? Como passo por isso?”
Adenda 3
Nada que cá não se passe. Estamos, portanto, no bom caminho.