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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(362) O maior de todos os males

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

A invasão da Ucrânia, sob as leis pós-Nuremberga, é uma guerra de agressão criminosa.

 

A guerra é sempre má, a mais pura expressão da morte, vestida de canto patriótico sobre liberdade e democracia e vendida aos ingênuos como um bilhete para glória, honra e coragem.

 

A principal lição da guerra é que nós, como indivíduos distintos, não importamos. Tornamo-nos números. Forragem. Objetos.

 

A guerra é bela, Marinetti.

 

 

 

 

A guerra preventiva, seja no Iraque ou na Ucrânia, é um crime de guerra. Não importa se a guerra é lançada com base em mentiras e invenções, como foi o caso do Iraque, ou pela rutura de uma série de acordos feitos com a Rússia, incluindo a promessa de Washington em não estender a NATO para além das fronteiras de uma Alemanha unificada, em não enviar milhares de tropas da NATO para a Europa Oriental, em não se intrometer nos assuntos internos das nações com fronteira com a Rússia, e da recusa de implementar o acordo de paz de Minsk II.

 

A invasão da Ucrânia, espero, nunca teria acontecido se essas promessas tivessem sido cumpridas. A Rússia tem todo o direito de se sentir ameaçada, traída e zangada. Mas entender não é tolerar. A invasão da Ucrânia, sob as leis pós-Nuremberga, é uma guerra de agressão criminosa.

 

Conheço o instrumento de guerra. A guerra não é a política por outros meios. É demoníaca. Passei duas décadas como correspondente de guerra na América Central, Médio Oriente, África e Balcãs, onde cobri as guerras na Bósnia e Kosovo. Carrego dentro de mim os fantasmas de dezenas de pessoas engolidas pela violência, incluindo o meu querido amigo, o correspondente da Reuters Kurt Schork, que foi morto numa emboscada na Serra Leoa juntamente com um outro amigo, Miguel Gil Moreno.

 

Conheço o caos e a desorientação da guerra, a constante incerteza e confusão. Num tiroteio, só se está ciente do que está a acontecer a alguns metros à sua volta. Luta-se desesperadamente, e nem sempre com sucesso, para se tentar descobrir de onde vem o disparo na esperança de evitar ser-se atingido.

Senti o desamparo e o medo paralisante que, anos depois, ainda desce sobre mim como um trem de carga a meio da noite, deixando-me envolto em espirais de terror, com o coração acelerado, e o corpo pingando de suor.

Ouvi os lamentos daqueles convulsionados pela dor enquanto agarram os corpos de amigos e familiares, incluindo crianças. Ainda os ouço. Não importa o idioma. Espanhol. Árabe. Hebraico. Dinka. Servo-Croata. Albanês. Ucraniano. Russo. A morte atravessa as barreiras linguísticas.

Eu sei como são as feridas. Pernas arrancadas. Cabeças que implodem numa massa sangrenta e polpuda. Buracos escancarados nos estômagos. Poças de sangue. Gritos dos moribundos, às vezes pelas suas mães. E o cheiro. O cheiro da morte. O sacrifício supremo feito para moscas e vermes.

Fui espancado pela polícia secreta iraquiana e saudita. Fui feito prisioneiro pelos Contras na Nicarágua, que enviaram um rádio para a sua base nas Honduras a perguntar se me deviam matar, e novamente em Basra depois da primeira Guerra do Golfo no Iraque, sem saber se seria executado, sob guarda constante e muitas vezes sem comida, bebendo em poças de lama.

 

A principal lição na guerra é que nós, como indivíduos distintos, não importamos. Tornamo-nos números. Forragem. Objetos. A vida, outrora preciosa e sagrada, torna-se sem sentido, sacrificada ao apetite insaciável de Marte. Ninguém em tempo de guerra está isento.

 

A paisagem da guerra é alucinógena. Desafia a compreensão. Num tiroteio não se tem noção de tempo. Alguns minutos. Algumas horas. A guerra, num instante, destrói casas e comunidades, tudo o que já foi familiar, e deixa para trás ruínas fumegantes e um trauma que se carrega para o resto da vida.

Você não pode compreender o que vê. Já provei o suficiente da guerra, o suficiente do meu próprio medo, o meu corpo transformado em geleia, para saber que a guerra é sempre má, a mais pura expressão da morte, vestida de canto patriótico sobre liberdade e democracia e vendida aos ingênuos como um bilhete para glória, honra e coragem.

É um elixir tóxico e sedutor. Aqueles que sobrevivem, como escreveu Kurt Vonnegut, lutam depois para se reinventar e reinventar o seu universo que, em algum nível, nunca mais fará sentido.

“Nós éramos dispensáveis”, escreveu Eugene Sledge sobre as suas experiências como fuzileiro naval no Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. “Foi difícil aceitar. Viemos de uma nação e de uma cultura que valoriza a vida e o indivíduo. Encontrar-se numa situação em que a sua vida parece sem valor é o máximo da solidão. É uma experiência humilhante.”

A guerra destrói todos os sistemas que sustentam e nutrem a vida – familiar, económico, cultural, político, ambiental e social. Uma vez que a guerra começa, ninguém, mesmo aqueles nominalmente encarregados de conduzir a guerra, pode adivinhar o que acontecerá, como a guerra se desenvolverá, como ela pode levar exércitos e nações à loucura suicida. Não há guerras boas. Nenhuma.

 

Isto inclui a Segunda Guerra Mundial, que foi higienizada e mitificada para celebrar de forma mentirosa o heroísmo, a pureza e a bondade americanas. Se a verdade é a primeira baixa na guerra, a ambiguidade é a segunda.

 

A retórica bélica abraçada e amplificada pela imprensa americana, demonizando o presidente russo Vladimir Putin e elevando os ucranianos ao estatuto de semideuses, exigindo uma intervenção militar mais robusta juntamente com as sanções incapacitantes destinadas a derrubar o governo de Vladimir Putin, é infantil e perigosa. A narrativa dos mídia russos é tão simplista quanto a nossa.

 

Não havia discussões sobre pacifismo nas caves de Sarajevo quando estávamos a ser atingidos por centenas de bombas sérvias por dia e sob constante fogo de franco-atiradores. Fazia sentido defender a cidade. Fazia sentido matar ou ser morto.

Os soldados sérvios-bósnios no vale do Drina, Vukovar e Srebrenica demonstraram amplamente a sua capacidade para promoverem ataques assassinos, incluindo o fuzilamento de centenas de soldados e civis e o estupro em massa de mulheres e meninas. Mas isso não salvou nenhum dos defensores de Sarajevo do veneno da violência, da força destruidora de almas que é a guerra.

 

Conheci um soldado bósnio que ouviu um som atrás de uma porta enquanto patrulhava nos arredores de Sarajevo. Ele disparou uma rajada de seu AK-47 pela porta. Um atraso de alguns segundos em combate pode significar a morte. Quando abriu a porta, encontrou os restos ensanguentados de uma menina de 12 anos. A sua filha tinha 12 anos. Ele nunca mais se recuperou.

 

Apenas os autocratas e políticos que sonham com o império e a hegemonia global, com o poder divino que vem com o escudo de exércitos, aviões de guerra e frotas, junto com os mercadores da morte, cujos negócios inundam países com armas, lucram com a guerra.

 

A expansão da NATO pela Europa Oriental rendeu à Lockheed Martin, Raytheon, General Dynamics, Boeing, Northrop Grumman, Analytic Services, Huntington Ingalls, Humana, BAE Systems e L3Harris, biliões de lucros. O prolongamento do conflito na Ucrânia render-lhes-á ainda mais biliões.

 

A União Europeia destinou centenas de milhões de euros para comprar armas para a Ucrânia. A Alemanha quase triplicará o seu próprio orçamento de defesa para 2022. O governo Biden pediu ao Congresso que forneça 6,4 biliões US$ em financiamento para ajudar a Ucrânia, para além dos 650 milhões US$ da ajuda militar à Ucrânia do ano passado.

 

A economia de guerra permanente opera fora das leis de oferta e procura. É a raiz do atoleiro de duas décadas no Médio Oriente. É a raiz do conflito com Moscovo. Os mercadores da morte são satânicos. Quanto mais cadáveres produzam, mais as suas contas bancárias incham. Eles vão lucrar com esse conflito, que agora namora com o holocausto nuclear que acabaria com a vida na Terra como a conhecemos.

 

A perigosa e tristemente previsível provocação da Rússia – cujo arsenal nuclear coloca a espada de Dâmocles sobre de nossas cabeças – ao expandir a NATO, foi compreendida por todos nós que reportámos na Europa Oriental em 1989 durante as revoluções e a dissolução da União Soviética.

Essa provocação, que inclui o estabelecimento de uma base de mísseis da NATO a 160 quilómetros da fronteira com a Rússia, foi tola e altamente irresponsável. Nunca fez sentido geopolítico.

 

No entanto, isso não justifica a invasão da Ucrânia. Sim, os russos foram atraídos. Mas eles reagiram puxando o gatilho. E isso é um crime. O crime deles. Oremos por um cessar-fogo. Trabalhemos por um regresso à diplomacia e à sanidade, uma moratória sobre os envios de armas para a Ucrânia e a retirada das tropas russas do país. Esperemos pelo fim da guerra antes que tropecemos num holocausto nuclear que nos devore a todos.

 

 

Adenda 1:

Esta é a tradução integral do artigo de Chris Hedges publicado a 1 de março de 2022 na Scheerpost, intitulado “The Greatest Evil Is War”.

Chris Hedges é um jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer que foi correspondente estrangeiro durante 15 anos para o The New York Times, onde atuou como chefe da sucursal do Médio Oriente e chefe da sucursal dos Balcãs para o jornal. Já trabalhou no exterior para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

 

Adenda 2:

No blog de 22 de março de 2017, “ O “Futurismo” presente”, pode ler-se:

 

“Há um Manifesto bastante posterior (sempre que Marinetti se queria manifestar sobre qualquer coisa, publicava um novo Manifesto) relativo à guerra colonial que a Itália impôs à Etiópia, em que esta sua posição sobre a guerra fica mais clara:

 

Há vinte e sete anos que nós, futuristas, nos manifestamos contra o fato de se designar a guerra como antiestética … por conseguinte, declaramos: … a guerra é bela porque fundamenta o domínio do homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, dos cessar-fogo, os perfumes e odores de putrefação. A guerra é bela porque cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques, a da geometria dos aviões em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder, e muitas outras … poetas e artistas do futurismo … lembrai-os destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura!

 

Adenda 3:

 

Entrevista dada por Chris Edges a Mark Steiner, a 5 de março de 2022, “Chris Hedges: War Profiteers Are Fueling This Crisis”, para ouvir e ver durante 28 minutos.

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