(357) A racionalidade da irracionalidade
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A experiência humana é paradoxal.
Qualquer teoria do mundo não pode simultaneamente ser completa e calculável sem ser inconsistente, K. Gödel.
Num mundo que por si é inconsistente, a consistência não é uma virtude.
A tarefa sobre o que todos veem, não é tanto ver-se o que ninguém até aí viu, mas pensar o que ninguém até aí pensou, Schrödinger.
Não se oferece uma ética a Deus, Simone de Beauvoir.
Como nós não somos Deus (que pela sua própria condição, essência, natureza ou definição, não necessita de quaisquer argumentos para saber qual é a verdade, até porque todas as verdades são aparentes perante ele - como notava Simone de Beauvoir: “Não se oferece uma ética a Deus”) e o mundo não é perfeito, para errarmos o menos possível nas nossas escolhas, necessitamos de um guia que nos permita vislumbrar ou dar um certo sentido ao mundo, mesmo quando ele parece sem sentido.
A lógica, com o seu encadeado de argumentos, vai ser o guia que nos irá permitir adivinhar o que se vai seguir partindo das coisas nas quais já acreditamos, permitindo deste modo tornearmos as nossas limitações falíveis e finitas.
Acontece que, ao longo da vida, vamos encontrando acontecimentos, emoções, realizações, não possíveis de encaixar na lógica estabelecida, e que nos fazem ver que a experiência humana é normalmente paradoxal. Como foram os nossos pensadores encarando esta condição?
O plano racionalista-matemático de Descartes, partia do princípio que o mundo tinha sentido e que era possível descobrir esse sentido, uma vez que a nossa capacidade para raciocinar era suficiente para descobrir as razões inteligíveis porque as coisas existiam. Numa das suas obras, La Géométrie (1637), estudou a possibilidade de o mundo aparecer representado por uma quadrícula tão fina e precisa que permitisse reduzir a geometria à análise, qual GPS de alta definição com leitura facial apoiado na IA da Google.
Baruch Espinosa, na sua Ética (1677), explicitava o seu entendimento da Natureza e do homem através da utilização de uma série de proposições numeradas sequencialmente.
E G. W. Leibniz (1679), vai inventar uma linguagem matemática que obedecia a regras algébricas precisas (caracteristica universalis) através da qual conseguia expressar todos os pensamentos, o que permitiria usá-la para encontrar respostas para perguntas formuladas, qual computador da época atual.
Parecia, pois, aberto o caminho para que através da validação dedutiva matemático-lógica se encontrasse a certeza absoluta, e obter-se assim, uma teoria completa e consistente do mundo.
Entre 1893 e 1903, Gottlob Frege, ao publicar As Leis Básicas da Aritmética, julga finalmente ter conseguido descobrir essa tão procurada notação concetual matemática perfeita que permitiria alcançar esse objetivo.
Na sua “Lei Básica V”, vai definir ‘Conjuntos’ como:
“Conjuntos, são coleções de coisas que possuam uma mesma propriedade.”
Isto queria dizer, por exemplo, que o conjunto de todos os triângulos compreendia todos e apenas os que possuíssem a propriedade de serem triângulos.
Para Frege, isto era suficientemente óbvio ao ponto de assumir esta lei como básica por ser uma verdade lógica autoevidente.
Amigo e grande admirador de Frege, Bertrand Russell, vai, no entanto, fazer-lhe notar a existência de uma contradição:
Seja P a coleção de todas as coisas com a propriedade de ‘não ser um membro-próprio’ (por exemplo, o conjunto dos triângulos não é em si mesmo um triângulo, mas é um P). Mas se P é P, então não é, por definição parte de P; se P não está contido em P, então é porque é P, de novo por definição. Devia ser um ou outro, mas é ambos: P está contido em P, e P não está contido em P, sendo membro próprio e não sendo, o que é uma contradição.
Este enunciado ficou conhecido como o Paradoxo de Russell, desacreditando toda a construção de Frege. A existência de uma só contradição era o suficiente para que o sistema fosse considerado como sendo inconsistente e, portanto, absurdo. Sem nexo.
Russell, juntamente com A. N. Whitehead, vai publicar entre 1910 e 1913, três volumes dos Principia Mathematica, onde o paradoxo continua sem ser resolvido eficazmente. Muitos outros matemáticos o intentaram depois resolver, igualmente sem encontrarem uma solução totalmente satisfatória.
Em 1931, um jovem matemático de 25 anos, Kurt Gödel, apresenta os chamados Teoremas da Incompletude, onde vai demonstrar que não é possível haver uma teoria do mundo que seja ao mesmo tempo completa, consistente e calculável. Segundo ele, qualquer teoria não podia ser simultaneamente completa e calculável sem ser inconsistente.
Ou seja, devemos desistir de compreender completamente o mundo em que vivemos por tal ser impossível.
Para além desta conclusão ser racionalmente muito difícil de lidar, acresce ainda que a prática diária da vida de cada um a desmente, pois acontecem continuadamente contradições que vão sendo resolvidas e a vida vai continuando.
Vejamos um exemplo trivial: suponhamos que estamos à espera de um amigo, com quem nos devíamos de encontrar às 13:00. São já 13:05. Está atrasado. Mas passam apenas 5 minutos da hora marcada, portanto ainda não está atrasado. Devemos chamá-lo? Ainda é cedo, ou talvez não seja … o que faz com que ele esteja ao mesmo tempo atrasado e não esteja atrasado. O facto é que o que ele não está é ao mesmo tempo atrasado e não atrasado, porquanto eu é que estou ali parado à espera dele e ele claramente ainda não chegou.
Se aplicássemos a lógica clássica, em que como vimos o deparar-se com uma simples contradição em algo que se assume como sendo óbvio, faz com que todo o sistema passe a ser considerado como inconsistente, inútil, então este pequeno facto (estar ou não ao mesmo tempo atrasado e não estar) levar-nos-ia a invalidar todo um processo de raciocínio, e a nem sequer podermos considerar o nosso amigo como sendo nosso amigo. E não deixa de ser nosso amigo.
O mesmo também se passa nos campos da ciência e filosofia em que os desacordos sobre qual é a teoria correta são correntes, sendo resolvidos através de debates constantes. Já Khunn notara em 1962 que “o conhecimento científico não crescia de modo cumulativo e contínuo, e nem sempre progredia em linha reta”, e mais, que sendo a ciência obra de comunidades científicas, era essa comunidade que definia não só o meio de solucionar os problemas, como também os problemas que convinha resolver.
Daí que alguns pensadores começassem a sugerir que talvez fosse errado pretender que uma simples contradição pudesse levar a considerar-se o sistema como inconsistente, pelo que tal consideração não deveria fazer parte da teoria da lógica. A inconsistência não deveria ser erradicada ou “resolvida”, mas ser aceite, o que levou ao desenvolvimento de teorias matemático-lógicas chamadas paraconsistentes.
Os seus iniciadores, os matemáticos e filósofos Newton da Costa e Graham Priest, consideram estes estudos conducentes a uma abertura do racionalismo como extremamente importantes, importância idêntica à do Iluminismo, ao apontarem para “um racionalismo que acomoda racionalmente alguma aparente irracionalidade”.
As críticas à utilização destas teorias são várias: por um lado, parece tratar-se de uma forma de escamotear o problema, pretendendo pôr de lado o esforçado trabalho filosófico e científico anterior; por outro, esta lógica paraconsistente ao permitir que nos sintamos mais à vontade com os assuntos, retira-nos o esforço para melhorarmos. Ou seja, é como se nos oferecessem uma maneira fácil para evitar problemas difíceis, ou para manter à superfície teorias falhadas mesmo depois de serem desacreditadas.
Respondem os lógicos paraconsistentes com a afirmação genericamente aceite que uma teoria é tanto mais virtuosa quanto melhor representar o mundo. Servem-se dos exemplos históricos de Aristóteles e de David Hume, para os quais em igualdade de circunstâncias a melhor teoria seria a que fosse mais simples, pois seria a que melhor representaria a simplicidade do mundo.
Ora, num mundo que por si é inconsistente, então a consistência não é uma virtude. Se o mundo é inconsistente, se há uma contradição na sua base lógica, então é porque uma teoria que seja consistente deixa alguma coisa de fora.
Mas em que casos, e como, é que determinaríamos que uma dada contradição num contexto determinado possa ser racionalmente aceitável? Ou seja, quando é que podemos decidir pela aplicação de uma teoria inconsistente?
Priest, numa entrevista em 1983:
“Nesta fase, uma resposta preliminar é que necessitamos de considerar os méritos de cada um dos casos por si.”
O que vai tornar a lógica paraconsistente muitíssimo mais difícil de trabalhar do que a lógica clássica. A construção de argumentos válidos neste novo sistema que é muito mais permissivo, é extremamente trabalhosa.
Estamos a falar de um sistema com regras precisas e efetivas, que responda a quaisquer questões possíveis sobre a descrição completa do mundo, mas em que por vezes o próprio sistema ultrapassa as respostas da lógica clássica, dizendo para além do Sim ou Não, SIM e NÃO. E isto porque por vezes a resposta será ao mesmo tempo SIM e NÃO.
De acordo com a filosofia atual, isto significa aceitar que a visão do mundo possa incluir alguma falsidade (falso, significando uma negação verdadeira). Como é que se pode aceitar uma teoria falsa? Se a falsidade for possível, a consistência deixa de ser inviolável e então tudo é possível. Como nota um filósofo tradicionalista:
“Uma teoria inconsistente não permite obter qualquer boa explicação sobre seja o que for.”
Na procura do ponto de apoio que lhes permita alicerçar os seus sistemas pra resolver todos os problemas da filosofia, todos estes grandes filósofos, lógicos, matemáticos, acabam por encontrar os limites do que nós podemos entender, o que constitui uma própria contradição. O que os leva a encarar essa contradição como uma falha.
‘Forçados’ a uma falsa escolha entre o misticismo que lhes permite uma visão de certa maneira abrangente do mundo, e uma teoria racional rigorosa e precisa, mas que se revelava incompleta e inadequada, pode até dar-se o caso de terem encontrado aquilo que procuravam e que não o tivessem reconhecido.
Wittgenstein chegou mesmo a escrever:
“A proposição que se contradiz a si mesma, ficará como um monumento (tal cabeça de Janus) sobre as proposições da lógica”.
Mas só Schrödinger (o do gato ao mesmo tempo vivo e morto) conseguiu entender perfeitamente o problema:
“A tarefa sobre o que todos veem, não é tanto ver-se o que ninguém até aí viu, mas pensar o que ninguém até aí pensou.”
Na realidade, vivemos já num mundo que aceita como normal a existência de notícias falsas, agrupando-se muitas vezes em torno delas tentando impô-las aos outros como instrumento de dominação. Desde a vida corrente vivida diariamente até às teorias e avanços “científicos” que os próceres encartados nos querem fazer crer apenas por aparecerem nos órgãos ditos também serem de comunicação social.
Mas, a nível científico, temos também já a utilização cada vez mais corrente dos computadores quânticos, em que as partículas de “quanta” se podem movimentar para à frente e para trás no tempo e existir em dois locais ao mesmo tempo.
Ao passo que os computadores clássicos executam as suas operações utilizando os valores de ‘um’ e ‘zero’ (os bits) para representarem os dois estados (o SIM e o NÃO) que permitem seguir o sentido das decisões sobre os dados analisados, os quânticos utilizam os qubits (quantic bits), que para além dos ‘uns’ e dos ‘zeros’ têm ainda a possibilidade da superposição que lhes permite representar o ‘um’ e o ‘zero’ ao mesmo tempo (ou seja, conseguem representar quatro cenários ao mesmo tempo, o que pelo menos irá reduzir enormemente o tempo para resolver um problema).
Os pensadores que se despachem, porque correm o risco de quando finalmente se pronunciarem sobre a sociedade já ela não ser aquela sobre que se pronunciaram.