(355) “O destino da América: oligarquia ou autocracia”
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Os sistemas de poder em competição dividem-se entre alternativas que alargam a divisão social e política – aumentando o potencial para um conflito violento.
O enfraquecimento político e económico que é consequência da oligarquia, infantiliza uma população, que em desespero gravita em torno de um demagogo que promete prosperidade e restauração de uma era de ouro perdida.
Aparentemente, qualquer número entre os 15 milhões a 28 milhões de adultos apoiaria o derrube violento do governo Biden para reinstalar Trump na presidência, dados da última pesquisa Harvard/Harris.
O clérigo e jornalista com o Prémio Pulitzer, Chris Hedges, publicou recentemente no Scheerpost, um artigo de análise crítica sobre os últimos acontecimentos nos EUA, “America’s Fate: Oligarchy or Autocracy” (O destino da América: Oligarquia ou Autocracia). Dada a sua importância para a compreensão sobre o que se passa não só nos EUA, mas também nos diferentes matrixes a que voluntariamente obrigados nos fomos deixando ser relegados para viver, aqui o deixo na sua tradução integral:
“Os sistemas de poder concorrentes nos Estados Unidos estão divididos entre oligarquia e autocracia. Não há outras alternativas. Nenhuma deles é agradável. Cada um tem características peculiares e desagradáveis. Cada um apela à boca cheia às ficções da democracia e dos direitos constitucionais. E cada um exacerba a crescente divisão social e política e o potencial para conflitos violentos.
Os oligarcas do Partido Republicano, figuras como Liz Cheney, Mitt Romney, George e Jeb Bush e Bill Kristol, uniram forças com os oligarcas do Partido Democrata para desafiarem os autocratas do novo Partido Republicano que se uniram em cultos e seitas à volta de Donald Trump ou, se ele não concorrer novamente à presidência, à volta do seu inevitável duplo Frankenstein.
A aliança entre oligarcas republicanos e democratas expõe o caricato que caracterizou o antigo sistema bipartidário, onde os partidos no poder lutaram pelo que Sigmund Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”, em que se encontravam unidos em todas as principais questões estruturais, incluindo gastos maciços com a defesa, acordos de livre comércio , cortes de impostos para os ricos e corporações, as guerras sem fim, a vigilância do governo, o processo eleitoral saturado de dinheiro, o neoliberalismo, a austeridade, a desindustrialização, a polícia militarizada e o maior sistema prisional do mundo.
A classe liberal, temendo a autocracia, jogou a sua sorte juntando-se aos oligarcas, desacreditando e tornando impotentes as causas e questões que afirma defender. A falência da classe liberal é importante, pois efetivamente transforma os valores democráticos liberais em platitudes vazias que aqueles que abraçam a autocracia condenam e desprezam.
Assim, por exemplo, a censura é errada, a menos que o conteúdo do laptop de Hunter Biden seja censurado ou Donald Trump seja banido dos mídias sociais. As teorias da conspiração estão erradas, a menos que essas teorias, como o dossier Steele e o Russiagate, possam ser usadas para prejudicarem o autocrata.
O uso indevido do sistema legal e da autoridade das agências para a aplicação da lei, com o fim de realizar vinganças pessoais é errado, a menos que essas vinganças sejam direcionadas ao autocrata e àqueles que o apoiam. Monopólios gigantes de tecnologia e as suas plataformas monolíticas de mídia social estão errados, a menos que esses monopólios usem os seus algoritmos, controle de informações e contribuições de campanha para garantirem a eleição do candidato presidencial ungido pelo oligarca, Joe Biden.
A perfídia dos oligarcas, mascarada pelos apelos à civilidade, tolerância e respeito pelos direitos humanos, supera muitas vezes a da autocracia. O governo Trump, por exemplo, expulsou 444.000 requerentes de asilo sob o Título 42, uma lei que permite a expulsão imediata daqueles que potencialmente representam um risco para a saúde pública e nega aos migrantes expulsos o direito de fazerem uma petição para permanecerem nos EUA antes de serem presentes a um juiz de imigração.
O governo Biden não apenas abraçou a ordem de Trump em nome do combate à pandemia, como expulsou mais de 690.000 requerentes de asilo desde que assumiu o cargo em janeiro.
A administração Biden, na esteira de outro furacão monstruoso desencadeado pelo menos em parte pelas mudanças climáticas, autorizou a abertura de 80 milhões de acres para perfuração de petróleo e gás no Golfo do México, gabando-se que a venda produzirá 1,12 biliões de barris de petróleo ao longo do próximos 50 anos.
A administração Biden, bombardeou a Síria e o Iraque e, na retirada do Afeganistão, assassinou 10 civis, incluindo sete crianças, num ataque com drones. Encerrou três programas de alívio à pandemia, cortando os benefícios da Assistência ao Desemprego na Pandemia que tinham sido concedidos a 5,1 milhões de pessoas que trabalhavam como empreendedores, ou como cuidadores. Outros 3,8 milhões de pessoas que receberam assistência da Compensação de Desemprego de Emergência à Pandemia para os desempregados de longa duração, também perderam o acesso aos seus benefícios.
A eles juntam-se 2,6 milhões de pessoas que deixam de receber o suplemento semanal de US$ 300 e que estão a lutar para lidar com uma queda de US$ 1.200 nos seus ganhos mensais.
As promessas da campanha eleitoral de Biden sobre o aumentar o salário mínimo, perdoar dívidas estudantis, reforma da imigração e tornar a habitação um direito humano, foram esquecidas. Ao mesmo tempo, a liderança democrata, proponente de uma nova guerra fria contra a China e a Rússia, autorizou manobras militares provocatórias ao longo das fronteiras da Rússia e no Mar da China Meridional, e acelerou a produção do bombardeiro furtivo de longo alcance, o B-21 Raider.
Os oligarcas vêm do alfobre tradicional das escolas de elite, do dinheiro das heranças, dos militares e das corporações, aqueles que C. Wright Mills chama de “elite do poder”. “O sucesso material”, observa Mills, “é sua única base de autoridade”.
A palavra “oligarquia” é derivada da palavra grega “oligos” que significa “poucos” e é o oligos que vê o poder e a riqueza como um seu direito de nascença, que eles passam para a sua família e filhos, como exemplificado por George W. Bush ou Mitt Romney. A palavra “autocracia” é derivada da palavra grega “auto” que significa “eu”, como de alguém que governa por si mesmo.
Nas democracias decadentes, a luta pelo poder é sempre, como aponta Aristóteles, entre essas duas forças despóticas, embora se houver uma séria ameaça de socialismo ou radicalismo de esquerda, como aconteceu na República de Weimar, os oligarcas forjam uma aliança incómoda com o autocrata e seus capangas para esmagá-lo.
Embora no espectro político Bernie Sanders não seja um radical, a classe doadora e a hierarquia do Partido Democrata sabotaram a sua candidatura, declarando publicamente, como o ex-CEO da Goldman Sachs Lloyd Blankfein fez, que se Sanders fosse nomeado o candidato, eles apoiariam Trump. A aliança entre os oligarcas e os autocratas dá origem ao fascismo, no nosso caso a um fascismo cristianizado.
Os oligarcas abraçam uma falsa moralidade da cultura atenta (woke) e de política de identidade, que é antipolítica, para darem a si próprios o verniz de liberalismo, ou pelo menos o verniz de uma oligarquia esclarecida. Os oligarcas não têm ideologia genuína. O seu objetivo único é acumular riqueza, daí as quantidades obscenas de dinheiro acumuladas por oligarcas como Bill Gates, Elon Musk ou Jeff Bezos, e as quantias impressionantes de lucro feitas por corporações que, essencialmente, orquestraram um boicote fiscal legal, forçando o estado a aumentar a maior parte das suas receitas de enormes déficits governamentais, agora totalizando US$ 3 triliões, e tributando desproporcionalmente as classes trabalhadora e média.
As oligarquias, que vomitam devoções e chavões açucarados, envolvem-se em mentiras que muitas vezes são muito mais destrutivas para o público do que as mentiras de um autocrata narcisista. No entanto, a ausência de uma ideologia entre os oligarcas, dá ao governo oligárquico uma flexibilidade que falta nas formas autocráticas de poder. Como não há lealdade cega a uma ideologia ou a um líder, há espaço numa oligarquia para reformas limitadas, moderação e para aqueles que procuram retardar ou frear as formas mais flagrantes de injustiça e desigualdade.
Uma autocracia, no entanto, não é flexível. Ela queima esses últimos resquícios de humanismo. Baseia-se unicamente na adulação do autocrata, por mais absurda que seja, e por medo de o ofender. É por isso que políticos como Lindsey Graham e Mike Pence, pelo menos até que ele se recusou a invalidar os resultados das eleições, humilharam-se abjeta e repetidamente aos pés de Trump. O pecado imperdoável de Pence ao certificar os resultados das eleições, transformou-o instantaneamente num traidor. Um pecado contra um autocrata é um pecado a mais. Apoiantes de Trump invadiram a capital a 6 de janeiro gritando “Enforquem Mike Pence”. Como Cosimo de’ Medici observou: “Não há nenhum lugar em que nos deem ordem para perdoar os nossos amigos”.
O enfraquecimento político e económico que é consequência da oligarquia, infantiliza uma população, que em desespero gravita em torno de um demagogo que promete prosperidade e restauração de uma era de ouro perdida, renovação moral baseada em valores “tradicionais” e vingança contra os bodes expiatórios do declínio da nação.
A recusa do governo Biden em abordar as profundas desigualdades estruturais que assolam o país, já de si é sinistra. Na última pesquisa Harvard/Harris, Trump ultrapassou Biden em índices de aprovação, com Biden caindo para 46% e Trump subindo para 48%. Junte-se a isso o relatório do Projeto sobre Segurança e Ameaças da Universidade de Chicago, que descobriu que 9% dos americanos acreditam que o “uso da força é justificado para reinstalar Donald J. Trump na presidência”.
Segundo o estudo, mais de um quarto dos adultos concorda, em graus variados, que “a eleição de 2020 foi roubada e Joe Biden é um presidente ilegítimo”. A pesquisa indica que 8,1% - 21 milhões de americanos - compartilham essas duas crenças. Aparentemente, qualquer número entre os 15 milhões a 28 milhões de adultos apoiaria o derrube violento do governo Biden para reinstalar Trump na presidência.
“O movimento insurrecional é mais mainstream, multipartidário e mais complexo do que muitas pessoas gostariam de pensar, o que não é um bom presságio para as eleições intercalares de mandato em 2022, ou para as eleições presidenciais de 2024”, constatam os autores do relatório de Chicago.
O medo é a cola que mantém um regime autocrático no poder. As convicções podem mudar. O medo não. Quanto mais despótico um regime autocrático se torna, mais ele recorre à censura, coerção, força e terror para lidar com sua paranoia endémica e muitas vezes irracional. As autocracias, por esta razão, abraçam inevitavelmente o fanatismo. Aqueles que servem à autocracia envolvem-se em atos cada vez mais extremos contra aqueles que o autocrata demoniza, buscando a aprovação do autocrata e o avanço de suas carreiras.
A vingança contra inimigos reais ou percebidos é o objetivo obstinado do autocrata. O autocrata tem um prazer sádico no tormento e na humilhação de seus inimigos, como Trump fez quando viu a multidão invadir a capital a 6 de janeiro, ou, de uma forma mais extrema, como Joseph Stalin fez quando se fartou de rir quando os seus subalternos encenaram a súplica desesperada que o condenado Grigori Zinoviev fez pela sua vida a caminho de sua execução em 1926, ele que já tinha sido uma das figuras mais influentes da chefia soviética e presidente da Internacional Comunista.
Líderes autocráticos, como escreve Joachim Fest, muitas vezes são “não-entidades demoníacas”.
“Mais do que as qualidades que o elevaram das massas, foram essas qualidades que ele compartilhou com elas e das quais ele era um exemplo representativo que lançaram as bases para seu sucesso”, escreveu Fest sobre Adolf Hitler, palavras que podem ser aplicadas a Trump. "Ele era a encarnação da média, 'o homem que emprestou a sua voz às massas e por meio de quem as massas falavam'. Nele as massas encontraram-se."
O autocrata, que celebra uma grotesca hipermasculinidade, projeta uma aura de omnipotência. Ele exige uma bajulação obsequiosa e obediência total. A lealdade é mais importante que competência. Mentiras e verdades são irrelevantes. As afirmações do autocrata, que podem em curtos espaços de tempo serem contraditórias, atendem exclusivamente às necessidades emocionais transitórias dos seus seguidores. Não há nenhuma tentativa de ser lógico ou consistente. Não há nenhuma tentativa para atrair os oponentes. Em vez disso, há um constante avivamento de antagonismos que ampliam constantemente as divisões sociais, políticas e culturais. A realidade é sacrificada pela fantasia. Aqueles que questionam a fantasia são marcados como inimigos irredimíveis.
“Quem quer governar os homens tenta primeiro humilhá-los, enganá-los nos seus direitos e na sua capacidade de resistência, até que sejam tão impotentes diante dele quanto os animais”, escreveu Elias Canetti em “Massa e Poder” (Crowds and Power) sobre o autocrata. E, acrescenta:
“Ele usa-os como animais e, mesmo que não lhes diga, ele sabe sempre muito claramente o que eles tão pouco significam para ele; quando ele fala com seus íntimos, ele chama-os de ovelhas ou gado. O seu objetivo final é incorporá-los em si mesmo e sugar-lhes a substância. O que resta deles depois, não lhe importa. Quanto pior os tratou, mais os despreza. Quando não têm mais utilidade, ele descarta-os como faz com os excrementos, tendo o simples cuidado para que não envenenem o ar da sua casa.”
São, ironicamente, os oligarcas que constroem as instituições de opressão, a polícia militarizada, os tribunais disfuncionais, a série de leis antiterroristas usadas contra dissidentes, governando através de ordens executivas em vez do processo legislativo, vigilância em massa e a promulgação de leis que por simples decreto derrubem os direitos constitucionais mais básicos.
Assim, o Supremo Tribunal, determina que as corporações têm o direito de injetar quantias ilimitadas de dinheiro nas campanhas políticas porque é uma forma de liberdade de expressão e porque as corporações têm o direito constitucional de fazerem petições ao governo. Os oligarcas não usam esses mecanismos de opressão com a mesma ferocidade dos autocratas. Eles empregam-nos de forma irregular e, portanto, muitas vezes sem eficácia. Mas são eles que criam os sistemas físicos e legais de opressão que mais tarde possibilitem a um autocrata, com o apertar de um botão, o estabelecimento de uma ditadura de facto.
O autocrata supervisiona uma cleptocracia nua no lugar da cleptocracia oculta dos oligarcas. Mas é discutível se a cleptocracia mais refinada dos oligarcas é melhor do que a cleptocracia crua e aberta do autocrata. A atração do autocrata é que, ao tosquiar o público, ele diverte a multidão. Ele orquestra espetáculos envolventes. Ele dá vazão, muitas vezes através da vulgaridade, ao ódio generalizado das elites dominantes. Ele fornece uma série de inimigos fantasmas, geralmente os fracos e os vulneráveis, que se tornam não-pessoas. Os seus seguidores recebem licença para atacar esses inimigos, incluindo os liberais e intelectuais irresponsáveis que são um apêndice patético da classe oligárquica. As autocracias, ao contrário das oligarquias, contribuem para a envolvência do teatro político.
Devemos desafiar tanto os oligarcas quanto os autocratas. Se replicarmos a covardia da classe liberal, se nos vendermos aos oligarcas como forma de impedir a ascensão da autocracia, desacreditaremos os valores centrais de uma sociedade civil e alimentaremos a própria autocracia que buscamos derrotar. O despotismo, em todas as suas formas, é perigoso. Se não conseguirmos mais nada na luta contra os oligarcas e os autocratas, pelo menos salvaremos a nossa dignidade e integridade."