(354) A forma de bem pensar
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Se os modernos e contemporâneos se esforçam por parecer que estão a inovar, mesmo quando estão apenas a repetir, acontece o inverso com os medievais, que se esforçam por parecer que estão a repetir, mesmo quando estão a inovar.
Questão 154, Das Partes da Luxúria, Tomás Aquino.
Terão sido convenientemente assinaladas seis espécies de luxúria,
a saber: a simples fornicação, o adultério, o incesto, o estupro, o rapto e
o vício contra a natureza?
A forma como hoje pensamos e desenvolvemos raciocínios é diretamente herdada da mal-amada Escolástica daqueles tempos da Idade Média, que temos por hábito considerar como tendo sido de retrocesso e estagnação, a “Idade das Trevas”.
Segundo esses, a escolástica, para além de espartilhar o conhecimento e o ensino, convicta de que a verdade que salvará o homem já foi dita e está escrita nos Evangelhos, não pretendia, portanto, descobrir uma outra verdade, mas apenas explicar esta, obrigando à apresentação dos textos segundo uma certa ordenação e obedecendo a uma certa exposição.
Dizem esses críticos que esta obrigação impedia os seus pensadores de inovar, porque estariam sempre de acordo com a tradição. Contudo, a realidade parece ter sido outra: “se os modernos e contemporâneos se esforçam por parecer que estão a inovar, mesmo quando estão apenas a repetir, acontece o inverso com os medievais, que se esforçam por parecer que estão a repetir, mesmo quando estão a inovar.”
Vou socorrer-me do mais lido e considerado autor dessa época, São Tomás de Aquino, e de parte da sua obra Suma Teológica, reproduzindo na íntegra a resposta à “Questão 154, Das Partes da Luxúria” (a Suma Teológica (1) tem 3 partes, compostas por mais de 500 questões e de 2000 artigos). Apreciem.
Questão 154: Das partes da luxúria.
Em seguida devemos tratar das partes da luxúria.
E, nesta questão, discutem–se doze artigos:
Art. 1 – Se foram convenientemente assinaladas seis espécies de luxúria,
a saber: a simples fornicação, o adultério, o incesto, o estupro, o rapto e
o vício contra a natureza.
O primeiro discute–se assim. – Parece que foram inconvenientemente assinaladas seis espécies de luxúria, a saber a simples fornicação, o adultério, o incesto, o estupro, o rapto e o vício contra a natureza.
– Pois, a diversidade de matéria não diversifica a espécie. Ora, a referida divisão funda-se na diversidade de matéria, pois, distingue-se a conjunção foi com casada, com virgem ou com mulher de outra condição. Logo, parece que por si não se podem diversificar as espécies de luxúria.
Demais. – Um vício não se diversifica pelo que pertence a outro. Ora, o adultério não difere da simples fornicação senão porque o adúltero, tendo relações com a mulher de outrem, comete uma injustiça. Logo, parece que o adultério não deve ser considerado espécie da luxúria.
Demais. – Assim como pode alguém ter relações com a mulher ligada a outro homem pelo matrimónio, assim também pode tê–la com a que está consagrada a Deus pelo voto. Se, portanto, o adultério é considerado espécie de luxúria, também espécie de luxúria deve ser o sacrilégio.
Demais. – Quem está unido em matrimónio não somente peca se tiver relações com a mulher de outro, mas também se usar da sua indevidamente. Ora, este pecado está compreendido na luxúria.
Logo, deve ser tido como uma espécie dela.
Demais. – O Apóstolo diz: Para que não suceda que, quando eu vier outra vez, me humilhe Deus entre vós, e que chore a muitos daqueles, que antes pecaram e não fizeram penitência da imundícia e fornicação e desonestidade, que cometeram. Logo, parece que também a imundícia e a desonestidade devem ser consideradas, como a fornicação, espécies de luxúria.
Demais. – O género não pode fazer parte da espécie. Ora, a luxúria, é uma espécie como o são os outros membros da enumeração supra segundo aquilo do Apóstolo: As obras da carne estão patentes, como são a fornicação, a impureza, a desonestidade, a luxúria. Logo, a fornicação foi inconvenientemente considerada espécie de luxúria.
Mas, em contrário, a referida divisão está nas Decretais.
CORPO DA RESPOSTA. – Como dissemos o pecado da luxúria consiste em se gozar do prazer venéreo contrariamente à razão reta. O que de dois modos pode dar–se: quanto à matéria em que se busca esse prazer, e quanto à não observância das outras condições relativas ao uso da matéria devida. E como as circunstâncias, como tais, não especificam os atos morais, que só tiram a sua espécie do objeto, que é a matéria deles, por isso as espécies de luxúria devem-se deduzir da matéria ou do objeto. E este pode não convir com a razão reta de dois modos. Primeiro, por repugnar ao fim do ato venéreo. E assim, quando impede a geração da prole, há lugar para o vício contra a natureza, sempre que do ato venéreo não resulta a geração. E há fornicação simples, de solteiro com solteira, quando fica impedida a educação devida e a criação da prole nascida. De outro modo, a matéria sobre que se exerce o ato venéreo pode não convir com a razão reta, relativamente aos outros homens. E isto duplamente. – Primeiro, quanto à mulher mesma para com a qual quem, tendo com ela relação, não lhe conservou a devida honorabilidade. E então dá-se o incesto, que consiste no abuso de uma mulher ligada ao incestuoso pelos laços da consanguinidade ou da afinidade. – Segundo, relativamente àquele de quem a mulher depende. Se depende de um marido, há o adultério; se do pai, o estupro, não havendo violência, e o rapto, se houver.
Estas espécies, porém, diversificam-se mais pelo lado da mulher do que pelo do varão; porque, no ato venéreo, a mulher comporta-se como paciente e a modo de matéria, ao passo que o homem, como agente; pois, dissemos que as referidas espécies se fundam na diferença de matéria.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A referida diversidade de matéria vai junta com a diversidade formal do objeto, fundada nos diversos modos por que repugna à razão reta, como se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Nada impede que um mesmo ato implique as deformidades concorrentes de dois vícios, como dissemos. E, neste sentido, o adultério está incluído na luxúria e na injustiça. Nem a deformidade da injustiça se relaciona acidentalmente com a luxúria, absolutamente falando; pois, mostra ser a luxúria tanto mais grave quanto segue a concupiscência a ponto de ser levada até a injustiça.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A mulher, fazendo voto de continência, contraiu de certo modo matrimônio espiritual com Deus. Por onde, o sacrilégio cometido pela violação dessa mulher é, de certo modo, um adultério espiritual. E semelhantemente as outras formas de sacrilégio, em matéria libidinosa, reduzem–se às demais espécies de luxúria.
RESPOSTA À QUARTA. – O pecado cometido pelo casado com a sua própria esposa não o é por ter matéria indébita, mas, pelas outras circunstâncias, que não especificam o ato moral, como dissemos.
RESPOSTA À QUINTA. – Como diz a Glosa no mesmo lugar, a imundícia é tomada pela luxúria contra a natureza. E desonestidade é a cometida pelo varão com mulheres solteiras, o que implica, pois, o estupro. – Ou pode–se dizer que a desonestidade implica certos atos circunstantes aos atos venéreos, como, beijos, contatos e outros semelhantes.
RESPOSTA À SEXTA. – A luxúria é tomada, no lugar aduzido, no sentido de qualquer excesso, como diz a Glosa.
Art. 2 – Se a simples fornicação é pecado mortal.
O segundo discute–se assim. – Parece que a simples fornicação não é pecado mortal.
– Pois, as partes de uma mesma enumeração devem ser da mesma natureza. Ora, a fornicação é enumerada com outros atos que não são pecados mortais; assim, diz a Escritura: Que se abstenham das contaminações dos ídolos, e do sangue e da fornicação e das carnes sufocadas. Ora, a prática de tais atos não é pecado mortal, segundo o Apóstolo: Não é para desprezar nada do que se participa com ação de graças. Logo, a fornicação não é pecado mortal.
Demais. – Nenhum pecado mortal pode ser objeto de preceito divino. Ora, o Senhor ordena a Oseas: Vai, toma por tua mulher a uma pública meretriz e tem dela filhos que te nasçam duma mulher que foi meretriz. Logo, a fornicação não é pecado mortal.
- Demais. – Nenhum pecado mortal é mencionado na Escritura Santa, sem censura. Ora, a Escritura Sagrada menciona a simples fornicação dos Patriarcas Antigos, sem a censurar. Assim, lê–se nela que Abraão teve relações com Agar, sua escrava; e que Jacó teve conjunção com as escravas das suas mulheres Balam e Zelfa; e ainda, que Judas coabitou com Samar, que sabia ser meretriz. Logo, a simples fornicação não é pecado mortal.
Demais. – Todo pecado mortal contraria a caridade. Ora, a fornicação simples não contraria à caridade, nem quanto ao amor de Deus, por não ser um pecado diretamente contra Deus, nem quanto ao amor do próximo, porque, cometendo–a, a ninguém se faz injustiça. Logo, a fornicação simples não é pecado mortal.
Demais. – Todo pecado mortal leva à perdição eterna. Ora, tal não faz a fornicação simples; pois, àquilo do Apóstolo – A piedade para tudo é útil – diz a Glosa do Ambrósio: O resumo de toda disciplina cristã é a misericórdia e a piedade; se lhe formas fiéis, poderemos sem dúvida ser punidos se cairmos em alguma fraqueza da carne, mas nem por isso pereceremos. Logo, a fornicação simples não é pecado mortal.
Demais. – Como diz Agostinho, o que é a comida para a vida do indivíduo, é a união dos sexos para a do gênero humano. Ora, nem todo usar desordenadamente da comida é pecado mortal. Logo, nem toda união sexual desordenada; o qual sobretudo é o caso da fornicação simples, a menos importante entre as espécies enumeradas.
Mas, em contrário, a Escritura: Preserva–te de toda impureza e fora de tua mulher nunca consintas em conhecer o crime. Ora, crime importa em pecado mortal. Logo, a fornicação e toda união sexual sem ser com a esposa, é pecado mortal.
Demais. – Só o pecado mortal exclui do reino de Deus. Ora, a fornicação exclui dele; assim o Apóstolo, depois de se ter referido a ela e a certos outros vícios, acrescenta: Os que tais causas cometem não possuirão o reino de Deus. Logo, a simples fornicação é pecado mortal.
Demais. – Uma Decretal diz: Devem saber que ao perjúrio deve–se impor a mesma penitência que ao adultério, à fornicação, ao homicídio livremente perpetrado e aos demais vícios criminosos. Logo, simples fornicação é um pecado criminal ou mortal.
CORPO DA RESPOSTA. – Sem nenhuma dúvida devemos afirmar que a fornicação simples é pecado mortal, embora àquilo da Escritura: Não haverá meretriz, diga a Glosa: Proíbe ter relações com meretrizes, o que constitui uma desonestidade venial. Pois, não se deve ler a venial, mas, venal, o que é próprio às meretrizes.
Para provar o que afirmamos devemos considerar que pecado mortal é todo pecado cometido diretamente contra a vida do homem. Ora, a fornicação simples importa uma desordem, que redunda em dano da vida do que nascerá dessa união sexual. Pois, vemos que todos os animais, que precisam dos cuidados do macho e da fêmea para criarem os filhos, não praticam o concúbito vago, mas o de um macho com uma determinada fêmea, uma ou várias, como bem o mostram todas as aves. Vago concubinato, ao contrário, exercem certos animais, como os cães e outros, curas fêmeas só por si são capazes de criar os filhos. Ora, é manifesto, que para a criação dos filhos, na espécie humana, não bastam só os cuidados da mãe, que os amamenta; mas muito mais, os do pai que deve educá–los, defendê-los e dotá-los de bens tanto internos como externos. Por onde, é contra a natureza do homem praticar o concubinato vago, mas é necessário a união de um varão com uma determinada mulher, com a
qual conviva, não por pouco tempo, mas diuturnamente e mesmo por toda a vida. E daí vem para a espécie–humana a solicitude natural do varão pela certeza da sua paternidade, porque lhe incumbe a educação da prole. Ora, essa certeza desapareceria com o concúbito vago. E essa vida com uma determinada mulher é o que se denomina matrimónio, que, por isso, é considerado de direito natural. Mas, como a união dos sexos se ordena ao bem comum de todo o gênero humano, e o bem comum é o objeto da lei, como estabelecemos, resulta por consequência, que essa conjunção do homem e da mulher, chamada matrimónio, há de ser regulada por lei. E como essa matéria é entre nós determinada, na Terceira Parte desta obra o diremos, quando tratarmos do sacramento do matrimónio. Portanto, sendo a fornicação um concúbito vago e fora das regras do matrimónio, vai contra o bem da prole a ser criada. Logo, é pecado mortal. – Nem o impede o caso de quem, praticando a união sexual fora do matrimônio, provê apesar disso à educação da prole, porque os preceitos legais se apreciam pelo que geralmente se dá e não pelo que pode ocorrer num caso particular.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. A fornicação vem, no texto citado, enumerada com esses outros pecados, não por ter a mesma culpa que eles, mas porque, como eles, podia gerar dissídios entre os Judeus e os Gentios e impedir–lhe a mútua união. Pois, os Gentios pela corrupção da razão natural, não reputavam ilícita a simples fornicação; mas os Judeus, instruídos pela lei divina, consideravam–na ilícita. Quanto ao mais, que na objeção se enumerou, os Judeus o abominavam, por causa dos seus hábitos derivados da lei. E por isso os Apóstolos o proibiram aos Gentios, não por se tratar de coisas em si mesmas ilícitas, mas por serem abomináveis aos Judeus, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz–se que a fornicação é pecado por ser contrária à razão reta. Ora, a nossa razão é reta quando regulada pela vontade divina, que é a primeira e a suma regra. Portanto, o que fazemos por vontade de Deus, obedecendo–lhe à ordem, não é contra a razão reta, embora possa contrariar a ordem comum da razão; assim como também não é contra a natureza o que se faz milagrosamente, por virtude divina, embora seja contrário ao curso comum da natureza. E, portanto, assim como não pecou Abraão, querendo matar o filho inocente, por obediência a Deus, embora esse ato, em si mesmo considerado e em geral, vá contra a retidão da razão humana, assim também Oseas não pecou, fornicando por ordem divina. Nem se pode propriamente chamar fornicação a esse concúbito, embora seja assim denominado conforme o uso comum de falar. Por isso diz Agostinho: Quando Deus dá uma ordem contrária aos costumes ou às leis, devemos cumpri–la, embora antes nunca se fizesse nada de tal. E depois acrescenta: Assim como, na ordem social humana, o poder maior é preposto ao menor, que lhe deve obedecer, assim Deus deve ser obedecido por todos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Abraão e Jacó tiveram relações com escravas, não por um concúbito fornicário, como a seguir se verá, quando tratarmos do matrimónio. E quanto a Judas, não é necessário escusá–Io de pecado, a ele que também foi o vendedor de José.
RESPOSTA À QUARTA. – A fornicação simples contraria ao amor do próximo, porque repugna ao bem da prole nascitura, como se mostrou; isto é, porque dá lugar a uma geração como não convém à referida prole.
RESPOSTA À QUINTA. – As obras de piedade livram da perdição eterna a quem praticou atos carnais, enquanto que essas obras dispõem para a consecução da graça, que leva ao arrependimento; e enquanto elas levam a satisfazer pela lubricidade carnal cometida. Mas não que livrem quem ficou impenitente até a morte, na prática de tais atos.
RESPOSTA À SEXTA. – Um só concúbito pode dar lugar à geração. Portanto, o concúbito desordenado, que impede o bem da prole nascitura é, pelo gênero mesmo desse ato, pecado mortal, e não só por causa da concupiscência desordenada. Mas, um só ato de comer não impede o bem da vida total de um homem. Por isso, um ato de gula não é genericamente pecado mortal; se–Io–ia, porém, se alguém tomasse uma comida cientemente, de modo tal que lhe transformasse toda a condição da vida, como se deu com Adão. Nem, contudo, a fornicação é o menor dos pecados, que a luxúria inclui; pois, o concúbito libidinoso com a esposa é menor.
Art. 3 – Se a fornicação é o gravíssimo dos pecados.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a fornicação é o gravíssimo dos pecados.
– Pois, o pecado é tanto mais grave quanto maior é a lascívia de que procede. Ora, a maior lascívia é a da fornicação; assim, como diz a Glosa, o amor lascivo, na luxúria, é o máximo. Logo, a fornicação é o gravíssimo dos pecados.
Demais. – Pecamos tanto mais gravemente quanto o fazemos com quem nos é mais chegado; assim, peca mais gravemente quem fere o pai que quem fere um estranho. Ora, como diz o Apóstolo, o que comete fornicação peca contra o seu próprio corpo, que é o ser mais unido connosco. Logo, parece que a fornicação é o gravíssimo dos pecados.
Demais. – Quanto maior é um bem tanto mais grave é o pecado cometido contra ele. Ora, o pecado de fornicação vai contra o bem de todo o gênero humano, como do sobre dito resulta. – E é também contra Cristo, segundo o Apóstolo: Tornarei eu os membros de Cristo e fá–los–ei membros de urna prostituta? Logo, a fornicação é o gravíssimo dos pecados.
Mas, em contrário, diz Gregório, que os pecados carnais têm menor culpa que os pecados espirituais.
CORPO DA RESPOSTA. – A gravidade de um pecado pode ser considerada a dupla luz: essencial e acidentalmente. Essencialmente, a gravidade de um pecado se deduz da sua espécie, que depende do bem a que ele contraria. Ora, a fornicação contraria o bem do nascituro. Logo, é especificamente mais grave que os pecados contra os bens exteriores, como o furto e outros; menos grave, porém que os pecados que vão diretamente contra Deus, e que o pecado do homicídio, contrário à vida do homem já nascido.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A lascívia que agrava o pecado é a consistente na inclinação da vontade. Ao contrário, a do apetite sensitivo o diminui; pois, quanto maior é o ímpeto da paixão que nos faz pecar, tanto mais leve é o pecado. E deste modo a lascívia na fornicação é máxima. Por isso, diz Agostinho, que, de todas as lutas em que os Cristãos vivem empenhados, as mais duras são as da castidade, onde a pugna é quotidiana e rara a vitória. E Isidoro diz, que pela luxúria da carne, mais do que por qualquer outro pecado, o género humano se faz presa do diabo, isto é, porque é difícil vencer a veemência dessa paixão.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz–se que quem fornica peca contra o próprio corpo, não só porque o prazer da fornicação se consuma na carne, o que também se dá com a gula, mas ainda porque age contra o bem do próprio corpo quem fornica, enfraquecendo–o e inquinando–o, como não deve, e tendo relação carnal pecaminosa. Mas nem por isso daqui se segue, que a fornicação seja o gravíssimo dos pecados; pois, no homem, a razão prevalece sobre o corpo; e por isso, mais grave será o pecado mais contrário à razão.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O pecado da fornicação é contra o bem da espécie humana, por impedir a geração de um determinado nascituro. Pois, mais propriamente realiza a essência da espécie o que dela já participa em ato, do que o homem apenas em potência. E, por isso, também o homicídio é mais grave que a fornicação e que todas as espécies de luxúria, por contrariar mais ao bem da espécie humana. Mas, o bem divino é ainda maior que o da espécie humana. Donde o serem maiores os pecados contra Deus. Nem é a fornicação pecado diretamente contra Deus, como se o fornicador visasse a ofensa de Deus; mas o é só por consequência, como todos os pecados mortais. Pois, assim como os membros do
nosso corpo são membros de Cristo, assim também o nosso espírito é um com Cristo, segundo o Apóstolo: O que está unido ao Senhor é um mesmo espírito com ele. Por onde, também os pecados espirituais são mais contra Cristo, que a fornicação.
Art. 4 – Se os contados e os beijos constituem pecado mortal.
O quarto discute–se assim. – Parece que os contatos e os beijos não constituem pecado mortal.
– Pois, o Apóstolo diz: Portanto, a fornicação e toda impureza ou avareza, nem sequer se nomeie entre vós outros, como convém a santos. E acrescenta: Nem palavras torpes, o que a Glosa comenta: como os beijos e os abraços; nem palavras loucas – como as palavras doces; nem chocarrices – ou a chamada, pelos estultos curialitas, isto é, a jocosidade. E depois ajunta: Porque haveis de saber e entender que nenhum fornicário ou imundo, ou avaro, o que é cultor de ídolos, não tem herança no reino de Cristo e de Deus; e já não se refere às palavras torpes, nem às palavras loucas nem às chocarrices. Logo, não são elas pecado mortal.
Demais. – Diz–se, que a fornicação é pecado mortal, porque ela impede o bem da prole ser gerada e educada. Ora, para tal em nada concorrem os beijos e os contatos ou abraços. Logo, não constituem pecado mortal.
Demais. – Atos que são em si mesmo pecado mortal não podem nunca ser praticados licitamente. Ora, os beijos, os contatos e coisas semelhantes podem às vezes existir sem pecado. Logo, não são em si mesmo o pecado mortal.
Mas, em contrário. – Olhares lascivos são menos que os contatos, os abraços ou os beijos. Ora, os olhares lascivos constituem pecado mortal, segundo o Evangelho: Todo o que olhar para uma mulher cobiçando–a, já no seu coração adulterou com ela. Logo, com maior razão, os beijos lascivos e cousas semelhantes são pecados mortais.
Demais. – Cipriano diz: O concúbito, os abraços, os colóquios amorosos, os beijos, o desonesto e impuro contato de dois corpos no mesmo leito, quanto, por certo, não encerram de vergonha e de criminoso! Logo, a prática de tais atos torna o homem réu de crime, isto é, de pecado mortal.
CORPO DA RESPOSTA. – De dois modos pode um ato ser pecado mortal. – Pela sua espécie; e então, os beijos, os abraços ou contatos não implicam, por natureza, pecado mortal. Pois, podem ser praticados sem lascívia, ou por costume pátrio ou por qualquer necessidade ou causa racional. – De outro modo, um pecado pode ser mortal na sua causa; assim, quem faz esmola, para induzir a outrem em heresia, peca mortalmente, por causa da intenção perversa. Pois, como dissemos consentir no prazer de um pecado mortal é pecado mortal, e não só o consentimento no ato. Por onde, sendo a fornicação pecado mortal, e muito mais as outras espécies de luxúria, resulta, por consequência, que o consentimento no prazer desse pecado é pecado mortal, e não só o consentimento no ato. Logo, como os beijos, os abraços e coisas semelhantes se pratiquem por causa do prazer que encerram, são por consequência pecados mortais. E só neste sentido se consideram lascivos. Portanto, tais atos, enquanto libidinosos, constituem pecados mortais.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Apóstolo não citou os três referidos atos, porque não têm a denominação de pecado, senão enquanto ordenados aos precedentemente aludidos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os beijos e os contatos, embora em si mesmos não impedem o bem da prole humana, nascem, contudo da lascívia, que é a raiz desse impedimento. Pois, por isso é que são por natureza pecado mortal.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção conclui que tais atos não são especificamente pecados mortais.
- Como ler e citar obras de Tomás de Aquino.
Os textos começam sempre pela enunciação de uma Questão (Quaestio), com o título da questão em análise e com as objeções levantadas em obras de referência [ob. 1, ob. …] seguida da invocação da autoridade com a qual o autor concorda [s. c.] (Sed contra – Em sentido contrário). Depois vinha o Corpo da resposta [co. – abreviatura para corpo]. Seguiam-se as respostas às objeções levantadas [ad. 1, ad. …].
As questões agrupam-se em partes. Subdividem-se em artigos, que são perguntas dentro da questão.
Se quisermos compreender o pensamento do autor, a primeira coisa a ler é o corpo da resposta (não confundir com a solução das objeções).
Devemos lembrar que os textos clássicos e medievais não são citados pela página. Assim, para se ler ou fazer uma citação do texto:
Tomás Aquino, Suma Teológica Iq2a2ad1, significa
Tomás de Aquino, Suma Teológica, Primeira parte, Questão 2, Artigo 2, Solução da primeira objeção.