(352) O Círculo do Conhecimento
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“Círculo do conhecimento” é o que acontece sempre que ao querermos analisar o conhecimento, a resposta nos venha dada pelos próprios meios do conhecimento.
O autor raciocina em círculo ao dizer que temos a certeza de que percebemos clara e distintamente a verdade porque Deus existe. Mas, temos a certeza que Deus existe porque percebemos clara e distintamente que ele existe, Antoine Arnauld.
Um triângulo, que mesmo que não exista para além do pensamento, continua a ter uma essência ou forma que é imutável e eterna, não dependente do espírito, Descartes.
Um ateu não poderá nunca ter a certeza da verdade daquilo em que pensa.
A China é má. Portanto tudo o que eu ouço sobre ela é provavelmente verdadeiro.
As singularidades, quando bem observadas, não passam na maior parte dos casos de pontos de inflexão ou de passagem contidos num sistema que as envolve e absorve. E isso verifica-se quer seja a nível individual, quer seja a nível mais geral.
Um dos casos mais interessantes e representativos é o de Descartes (1596-1650) que apesar das vicissitudes (aristocráticas, evidentemente) por que passou, mantém sempre a intenção, manifestada desde cedo, de alterar a maneira de pensar todo o conhecimento.
Era seu grande objetivo de vida a substituição dos ensinamentos de Aristóteles vigentes nos livros de texto das universidades por um seu compêndio a que chamaria Le Monde de Descartes ou Le Traité du monde et de la lumiére, que acreditava ser a obra monumental e inovadora que abarcaria todos os campos do conhecimento, da filosofia ao método, da metafísica à física e à biologia.
Acontece que em 1633, Galileu, por ser suspeito de heresia, é condenado pela Inquisição Romana a prisão domiciliária. Descartes, que tinha já preparada essa sua grande obra, entende por cautela suspender a sua publicação (nela discutia, entre outras, as teses heliocêntricas de Galileu).
Nos quatro anos seguintes vai revê-la cuidadosamente, dividindo-a em quatro partes, decidindo começar inicialmente por publicar apenas a introdução à obra, a que chamou de Discours de la Méthode Pour bien conduire sa raison, et chercher la vérité dans les sciences, o posteriormente famoso Discurso do Método onde pela primeira vez aparece o célebre “Je pense, donc je suis”, que vai recorrentemente repetir por várias formas ao longo da sua obra.
Para apalpar o terreno em que a sociedade, os poderes, se moviam, o Discurso é primeiramente enviado a alguns conhecidos seus para que eles se pronunciassem, escrito em francês (à época, as obras científicas respeitáveis eram publicadas em latim, tal como hoje passados pouco mais de três séculos são publicadas em inglês, e provavelmente daqui por um século sejam publicadas em mandarim) e sem o nome do autor. Todo o cuidado era pouco.
Este método de apreciação (da obra e da sociedade) do trabalho tornou-se comum em Descartes, seguindo-o depois em outras obras. É assim que antes de publicar em 1641 as Meditações Metafísicas (Meditationes de prima filosofia, in quai Dei existentia et animae immortalitas demonstratur), as envia para algumas pessoas que considerava de valia intelectual para que as comentassem, comprometendo-se a responder individualmente a todas as objeções e a integrar essas críticas e as respetivas respostas a quando da publicação do livro em 1641, e outras surgidas posteriormente a quando da 2ª edição em 1642.
Uma das objeções mais interessantes, referida pela primeira vez nos comentários à publicação prévia, foi a de Antoine Arnauld:
“…o autor raciocina em círculo ao dizer que temos a certeza de que percebemos clara e distintamente a verdade porque Deus existe. Mas, temos a certeza que Deus existe porque percebemos clara e distintamente que ele existe. Portanto, antes de termos a certeza que Deus existe, temos de ter a certeza que tudo o que percebemos clara e distintamente é verdadeiro”.
Ou seja, se a veracidade da perceção clara e distinta do intelecto depende do nosso conhecimento de Deus, como é que então esse conhecimento de Deus pode ser inicialmente estabelecido?
Se a resposta for que podemos provar a existência de Deus a partir de premissas que percebemos clara e distintamente, então entramos num pensamento circular, pois, como é que vamos provar que as nossas perceções claras e distintas são nessa altura verdadeiras?
Esta objeção acabou por se tornar num dos incontornáveis temas da filosofia (que, evidentemente, se estende também para todos os outros campos do saber), ficou conhecida como o “Círculo Cartesiano”.
Sendo Descartes um filósofo extremamente cauteloso (como vimos pelos cuidados com que se rodeou para a publicação do Discurso do Método ao proceder ao envio prévio dos artigos a diversos conhecidos, ao fazê-lo em francês e sem indicação de autor),meticuloso (a sua escrita, além de clara, é sempre apoiada), como é possível que não se tenha apercebido do dilema resultante, ao construir um argumento que se serve da existência de Deus como prova para as premissas que considerava como evidentes, sendo simultaneamente estas como provas da existência de Deus?
Porque se de facto eram evidentes, não precisava de Deus para as provar, e, se não eram evidentes, eram inúteis para provarem a existência de Deus.
Descartes não escrevia ao acaso, já vimos que tinha um projeto e era metódico. Assim, nas Meditações Metafísicas, insere um “prefácio para o leitor” em que explica que no seu projeto iniciado com o Discurso do Método, “só aflorei os tópicos relacionados com Deus e o espírito humano”, mas que agora, finalmente, estava pronto a enfrentar-se com essas questões, pelo que é através das várias Meditações (da Primeira até à Sexta), que vai explicando os seus conteúdos e a razão de ser dessa ordenação.
Na “Meditação Terceira” diz-nos que o argumento principal será o da existência de Deus. É a mais longa das Meditações, facto indicativo da importância e cuidado posto no assunto.
Descartes vai partir da presença da ideia de Deus no pensamento (Cogito), para o próprio Deus enquanto autor dessa ideia. Começa por analisar extensivamente todas as outras possibilidades de seres supostamente reais (homens, animais, anjos) à procura de perfeições que não possa encontrar nele. Por fim, sobra apenas a ideia de Deus, que tendo mais perfeição do que a que ele possuía, não podia ter-se a ele como causa.
Na “Meditação Quinta”, Descartes propõe-se indagar sobre o grau de certeza da existência dos objetos materiais fora dele. Para tal, entende que deve começar por considerar as ideias dessas coisas, desde que elas existam no seu pensamento, e ver quais delas são distintas, e quais as que são confusas.
Nota que encontra dentro de si inúmeras ideias de coisas que mesmo que não existam em qualquer parte fora dele, não podem ser chamadas de “nada”, porque não sendo suas invenções, têm, no entanto, uma natureza verdadeira e imutável.
Dá como exemplo a imagem que tem de um triângulo, que mesmo que não exista para além do seu pensamento, continua a ter uma essência ou forma que é imutável e eterna, não dependente do seu espírito. E, a propósito, quase como só se lhe tivesse ocorrido naquela altura, pergunta-se:
“Se o simples facto de eu produzir só pelo meu pensamento a ideia de qualquer coisa, significando que tudo aquilo que eu perceba clara e distintamente sobre essa coisa, pertença realmente a essa coisa, não será isto uma possível base para um outro argumento que sirva para provar a existência de Deus? A existência de Deus terá que ter o mesmo grau de certeza que o que tenho vindo a atribuir às verdades da matemática.”
Depois, chama a atenção para dois falsos sofismas que podem resultar de uma deficiente apreensão daquela argumentação.
O primeiro, resultante de habitualmente se distinguir entre existência e essência, o que pode conduzir à contradição que é “pensar Deus (que é um ser supremamente perfeito) sem existência (ou seja, faltando-lhe uma perfeição), como se pudéssemos pensar uma montanha sem um vale”.
O segundo, que pode conduzir a pensar que é o nosso pensamento que impõe a necessidade de qualquer coisa existir; pelo contrário, é a necessidade dessa qualquer coisa por si, nomeadamente a existência de Deus, que determina o meu pensamento a respeito da sua existência.
Tal demonstra que Descartes estava plenamente consciente das objeções que lhe foram e seriam levantadas, adiantando-se mesmo a algumas delas.
Vejamos como responde à objeção de Arnauld:
“Já dei uma explicação adequada sobre este assunto na minha resposta às Segundas Objeções, onde fiz uma distinção entre o que no momento percebemos com clareza e o que nos recordamos de ter percebido com clareza numa ocasião anterior. Temos a certeza que Deus existe porque levamos em consideração todos os argumentos que provam isso; subsequentemente, é suficiente para nós recordarmos que percebemos qualquer coisa com clareza, para termos a certeza que é verdadeiro. Contudo, só isto não seria suficiente se não soubéssemos que Deus existe e que não nos engana.”
Na primeira parte desta sua explicação, diz-nos que o seu “critério da verdade” (todas as perceções que sejam claras e distintas são verdadeiras) serve para nos reassegurar que as perceções claras e distintas que tivemos no passado eram, de facto, verdadeiras. E que as perceções claras e distintas que estamos a ter neste momento, mesmo que não tenham sido anteriormente provadas, são também verdadeiras.
A ser assim, não tem razão de ser a acusação de circularidade, pois a conclusão não necessita de ser assumida para que o argumento seja persuasivo, ele necessita apenas de se apoiar no facto de no momento, as nossas perceções serem claras e distintas.
Para percebermos a segunda parte (“… só isto não seria suficiente se não soubéssemos que Deus existe e que não nos engana.”), recordemos outra das respostas de Descartes:
“O facto de um ateísta ter claro conhecimento que três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos é algo que não contesto. Mantenho, contudo, que esta sua certeza não é verdadeira ciência, pois nenhuma certeza sobre a qual possa haver dúvidas, deva ser chamada de ciência. Como estamos a supor que este indivíduo é um ateísta, ele não poderá ter a certeza que não está a ser enganado em matérias que para ele são evidentes (como já amplamente expliquei). E, muito embora esta dúvida possa não lhe ocorrer, ela poderá sempre ser levantada quer por ele ou por outra pessoa. Assim, ele nunca se libertará desta dúvida até reconhecer que Deus existe”.
Ou seja, para Descartes, Deus é um Deus que existe, é um Deus verídico, a quem repugna que nos enganemos sempre, e, sendo assim, um ateu não poderá nunca ter a certeza da verdade daquilo em que pensa.
Quando Descartes começou a escrever as Meditações, o seu objetivo era alargar e elaborar mais detalhadamente alguns dos temas já tratados no Discurso e menos explicitamente nas Regulae, de forma a poder estabelecer uma base firme e segura para o seu novo sistema filosófico.
Embora tivesse já concluído sobre a importância da existência de Deus no Discurso, percebe que para a afirmação do seu “critério da verdade”, no combate ao ceticismo, necessita da existência de Deus como “não enganador”: Deus não deixará sermos sistematicamente enganados.
Nas Meditações, Descartes vai fazer não uma, mas três demonstrações da existência de Deus, sempre por uma via de interioridade e de causalidade: a primeira, na “Meditação Terceira”, procedendo do efeito (a ideia da presença de Deus que se encontra na sua mente) para a causa (o Deus, que colocou essa ideia na sua mente); a segunda, também na “Meditação Terceira”, partindo da própria natureza do Cogito como ser imperfeito para Deus; a terceira, na “Meditação Quinta”, seguindo o raciocínio do argumento utilizado por St. Anselmo, de que Deus dependente apenas da apreensão da essência do que é um ser infinitamente perfeito, aparecendo como causa de si mesmo.
Com estes três argumentos, o seu “critério da verdade” tornava-se definitivamente seguro, a ponto de dizer:
“Agora, contudo, percebi que Deus existe, e ao mesmo tempo entendi que tudo depende dele, e que ele não engana; e sou levado também a concluir que tudo que perceba clara e distintamente é necessariamente verdade.”
Para além de tudo, não serão estes “círculos” comuns a toda a teoria do conhecimento? Não se trata sempre de analisar o conhecimento, dando-nos uma resposta pelos próprios meios do conhecimento?
O que Descartes nos propõe é que para se sair do círculo, temos primeiro de ver Deus. Para Descartes, este argumento ontológico, funcionava como pedra de fecho do arco ogival de uma catedral do conhecimento, sem o qual nada se compreenderia: não o compreender, era ficar fora do edifício.
O artifício do “círculo do conhecimento”, embora não sendo correto como Descartes o demonstrou, tem sido muito utilizado como ferramenta para convencimento e controle das pessoas, em variados campos, do marketing à política. E funciona assim:
“A China é má. Portanto tudo o que eu ouço sobre a China é provavelmente verdadeiro. Todos os que duvidem de qualquer dessas coisas têm uma tendência em favorecer a China. Como a China é má, ninguém pode ter essa tendência a não ser que esteja a ser comprado. E eu estou a pensar bem”.
Descartes, R, Meditations on First Philosophy with Selections from the Objections and Replies, Cambridge, Cambridge University Press, revised edition, 2010, tradução e edição de John Cottingham.