(350) Melhor que estar morto é estar vivo.
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Estar vivo é o contrário de estar morto, Lili Caneças.
Foi o acaso de um ato isolado que aconteceu mesmo apesar das poucas probabilidades que tinha de sucesso, que levou ao início da 1ª Grande Guerra.
A arrogância de se acreditar que qualquer um pode controlar ao longo de anos este mecanismo de segurança nuclear, é espantosa, Caitlin Johnstone.
O termo “guerra fria” foi pela primeira vez usado por George Orwell no seu artigo de 1945, “Você e a Bomba Atómica”, onde descrevia um mundo a viver à sombra da ameaça de uma guerra nuclear.
Vivemos em tempos em que sabemos que esta Terra, este Universo, têm os seus limites temporais contados (mais milhão, menos milhão de anos), e em que até sabemos algumas das causas que poderão levar a protelar, ou a antecipar, tal fim.
Entre as causas que poderão levar mais rapidamente a humanidade à extinção, incluem-se a colisão da Terra com um grande asteroide ou cometa, uma enorme erupção vulcânica, o aquecimento global, inteligência artificial descontrolada, experiências científicas desastrosas, cenários que envolvam múltiplas catástrofes, e uma guerra nuclear.
Conforme programada, a visita daquele alto dignatário iniciou-se com um cortejo automóvel de passeio pela cidade. O que ele não sabia é que alguns opositores tinham recebido armas, treino e indicações para que naquele dia fosse assassinado.
Para evitar falharem, dispuseram seis presumíveis assassinos ao longo do trajeto. O primeiro, assim que viu os carros, saltou para a frente deles e atirou uma granada para o carro do alto dignatário, ferindo apenas dois dos adjuntos, que foram de imediato transportados para o hospital. Os outros presumíveis assassinos viram as suas ações comprometidas e refugiaram-se na cidade.
Uma hora depois de visitar o hospital, o alto dignatário prosseguiu na sua visita, agora mais abreviada, e conduzida por outra rota. Só que o seu motorista não foi avisado, e entrou por uma rua sem saída, em que se viu forçado a parar para inverter a marcha, deixando inclusivamente o motor do carro ir abaixo. Acontece que num café dessa rua estava recolhido um dos assassinos que não quis acreditar na sua sorte: saiu para a rua, saltou para o carro e deu dois tiros de pistola, um no alto dignatário e outro na esposa acompanhante. Dois tiros que foram fatais: ambos morreram.
Isto passou-se a 28 de junho de 1914, o alto dignatário era o Arquiduque Franz Ferdinand da Áustria, herdeiro do Imperador Franz Joseph da Áustria, que juntamente com a sua mulher, Sophia, Duquesa de Hohenberg, visitavam Sarajevo, capital das recém-anexadas províncias da Bósnia e Herzegovina.
Os assassinos pertenciam ao movimento da Jovem Bósnia, e julgavam assim que iriam libertar a Bósnia do jugo da Áustria. Gavrilo Princip, era o nome do jovem matador.
Foi assim, desta forma patética e trágica, digna em tudo de figurar num daqueles filmes mudos a três cores e aos saltinhos, que se acendeu o rastilho para o que veio a ser considerada como sendo a Grande Guerra, a “guerra que acabaria com todas as guerras”.
Como já foi há muito tempo (!) e a memória das pessoas quando não é ativada, propositadamente ou não, tende a diluir-se ou a retirar a importância aos acontecimentos, esta foi uma guerra onde morreram cerca de 8,5 milhões de combatentes e 13 milhões de civis, isto sem se considerar os vários genocídios, as mortes resultantes da pandemia da gripe Espanhola de 1918, e os muitos horrores cometidos pelas forças em presença.
Que o clima de guerra há muito vinha sendo preparado (vulgarmente inscrito nos livros de história como “causas” ou “antecedentes”) ninguém tem dúvidas, muito embora a atribuição das culpas não seja tão unânime.
O que também ninguém tem dúvidas, embora nem sempre lhe atribua o devido significado, é que foi o acaso de um ato isolado, que aconteceu mesmo apesar das poucas probabilidades que tinha de sucesso, que serviu de pretexto, libertando todas as muitas forças que estavam contidas e que resultaram na cadeia de acontecimentos que levaram ao início da 1ª Grande Guerra.
Após a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), o mundo apresentava-se bastante diferente, cabendo a meia-dúzia de nações, teoricamente com a mesma importância, a condução dos seus ócios e negócios. Na realidade, o mundo era muito mais bipolar que multipolar. Os grandes vencedores: os EUA e a URSS. O império britânico saía bastante enfraquecido e desmembrado. A China estava muito longe, e a resolver problemas internos.
Devido ao desenvolvimento dos respetivos arsenais nucleares, estas duas superpotências não tinham qualquer hipótese de se defrontarem, de ganharem uma guerra sobre a outra, pelo que se seguiu (1947 – 1991) um período considerado como Guerra Fria (que vai da Doutrina Truman, que estabelecia como principal objetivo da política externa americana a contenção da expansão geopolítica da URSS, até à dissolução da URSS em 1991) em que as confrontações foram feitas recorrendo à guerra psicológica, à propaganda, à espionagem, às guerras de proximidade por/em interpostos países, aos embargos, e às rivalidades desportivas e tecnológicas.
Em 1989, os EUA tinham alianças militares com 50 países, 526.000 militares estacionados em bases no estrangeiro, dos quais 326.000 na Europa e 130.000 na Ásia. Estima-se que os seus gastos militares durante este período ascenderam a 8 triliões de dólares, e que perto de 100.000 americanos morreram nas guerras da Coreia e do Vietname. Embora as perdas humanas da União Soviética sejam difíceis de estimar, sabe-se que os custos financeiros para a União Soviética foram muito superiores aos verificados pelos EUA.
Interessante notar que o termo “guerra fria” foi pela primeira vez usado por George Orwell no seu artigo de 19 de outubro de 1945 para o jornal Tribune, com o título “Você e a Bomba Atómica” (You and the Atomic Bomb), onde descrevia um mundo a viver à sombra da ameaça de uma guerra nuclear.
Após o desaparecimento da União Soviética, seguiu-se um período em que o vencedor julgou impor livremente a sua vontade, a sua lei. A complexidade da destruição rápida das estruturas socialistas, o assalto desenfreado do chamado neoliberalismo às principais fontes de produção económica, em resumo, a gula, o passo maior que a perna, tudo isso e mais, conduziram ao aparecimento de uma contestação interna que acabou por se traduzir na formação de um estado capitalista com interesses opostos aos americanos, competindo no mesmo mercado.
A resposta americana, a pressão americana, foi utilizar as forças armadas através da NATO (existem hoje mais forças militares nas fronteiras com a Rússia do que as usadas por Hitler na invasão da URSS), e a propaganda ( seja através dos meios de comunicação social, seja através da pressão económica), na perseguição do objetivo traçado: garantir que nenhuma superpotência rival pudesse aparecer na Europa, ou no território da ex-União Soviética.
Num documento elaborado pelo Pentágono emerge o conceito de “dominação benevolente” por uma só potência, rejeitando o internacionalismo coletivo que fora a estratégia seguida após a 2ª Guerra e que levara à criação da Nações Unidas para a mediação de disputas e outros casos de violência.
O documento previa ainda a criação de uma “força base” com 1 milhão e 600 mil militares nos próximos cinco anos (1992-97), um custo orçado em 1,2 triliões de dólares. Implicitamente, pretendia-se a criação de um consenso que evitasse que no futuro a Alemanha e o Japão entrassem numa corrida armamentista, pela sua “integração num sistema de segurança coletiva liderado pelos EUA, criando-se uma “zona de paz” democrática”.
Explícita aparece a intenção da utilização da força militar, sempre que necessário, para evitar a proliferação de armas nucleares ou outras armas de destruição de massa em países como a Coreia do Norte, Iraque, de repúblicas que sucederam à União Soviética e na Europa.
Com a recomposição do estado Russo, o enorme crescimento da China, a campanha para as eleições presidenciais americanas e a derrota das forças que apoiavam Hillary Clinton em 2016, tudo isto foram acontecimentos que vieram alterar relativamente o posicionamento do estado americano, incapaz de se rever num mundo que estava a deixar de ser unipolar sob o seu domínio, e que se lhe ia escapando.
Ao perderem as eleições, os democratas atribuíram à Rússia a interferência exercida a favor de Trump, fazendo dela o seu bode expiatório, origem de todos os males. Já Trump, acusado de privilegiar a Rússia, é mostrado como para compensar ter “preferido” apontar a China como seu alvo preferencial.
E, contudo, sabemos que na prática tal não se verificava: lembremos, por exemplo, que foi ele quem implementou a revisão de uma postura mais agressiva contra a Rússia no respeitante ao nuclear (inclusivamente permitindo a inclusão no arsenal americano de novas armas nucleares para uso tático), armou a Ucrânia, acabou com o Tratado do Céu Aberto, impôs mais sanções a cidadãos russos e à Rússia, obrigou médias russos a registarem-se como agentes estrangeiros, expulsou diplomatas russos, treinou combatentes polacos e lituanos para resistirem à agressão russa, recusou reconhecer a Crimeia como parte da Federação Russa, enviou 1000 militares para a Polónia, atacou os interesses do gás russo para a Europa.
A conclusão a tirar-se é que, independente de quem apareça como representante máximo do Estado, as verdadeiras forças que determinam o perfil da nação são as económicas, financeiras e militares, pelo que os objetivos perseguidos pouco ou nada se diferenciam.
Essa escalada de uma nova guerra fria contra a Rússia tornou-se agora mais complexa com a introdução de mais uma potência nuclear, a China, como fazendo parte do inimigo a conter.
A China tem vindo a aumentar o seu poder militar na antecipação de uma eventual confrontação com o império americano. As escolhas para o império americano são duas: deixar cair o seu objetivo de hegemonia unipolar e procurar um entendimento, ou orquestrar qualquer tipo de ataque massivo antes da China se tornar tão poderosa que se torne difícil de derrotar.
Ouçamos o que disse a este propósito o secretário de estado americano, Tony Blinken:
“O nosso propósito não é conter a China, atrasá-la: o nosso propósito é o de manter esta ordem internacional com base em regras que a China está a tentar desmantelar […] Quem quer que atente contra essa ordem, vai ter que se defrontar connosco.”
Em qualquer dos casos, talvez seja importante lembrar que essa “ordem internacional com regras” é responsável pela morte de 2,4 milhões de pessoas devido à invasão do Iraque, 1,2 milhões no Afeganistão e Paquistão, 250.000 na Líbia, 2 milhões na Síria, 650.000 na Somália, 175.000 no Iémen. Ou seja, em 16 anos de guerra, cerca de 6 milhões de mortes violentas, 6 países destruídos e alguns mais destabilizados. A que devemos juntar 37 milhões de deslocados.
Quanto aos custos monetários dessas intervenções só nos últimos 20 anos, o Watson Institute da Boston University no “The U.S. Budgetary Costs of the Post-9/11 Wars” estima conservadoramente terem sido de 8 triliões de dólares.
O problema que vivemos hoje, é que em vez de um “entendimento” (détente) para se minimizarem os problemas possíveis de aparecer nas relações internacionais entre estados (lembremos os muitos casos em que a iminência de guerra – nuclear close call - aconteceram), entramos num frenesim de propaganda de notícias dirigidas e provocações com a utilização de meios militares com armas nucleares, ao ponto de até organizações com crédito firmado como a que publica o boletim The Doomsday Clock (O Relógio do Fim do Mundo) no seu relatório de 2021 reconhecerem que:
“Pela nossa estimativa, o potencial para que o mundo caia numa guerra nuclear – um perigo que esteve sempre presente nos últimos 75 anos – aumentou em 2020. Um falhanço global extremamente perigoso para identificar ameaças existenciais – que chamamos de “o novo anormal” em 2019 – ocorreu no ano passado, aumentando as possibilidades de catástrofe”.
Para quem julgue que por cada país com armamento nuclear há apenas um “Botão” que, após deliberação ponderada será premido dando origem a uma guerra nuclear, está enganado. Há milhares de pessoas no mundo que controlam diferentes arsenais nucleares que podem independentemente iniciarem uma guerra nuclear. Milhares.
Como diz Caitlin Johnstone, “a arrogância de se acreditar que qualquer um pode controlar ao longo de anos este mecanismo de segurança, é espantosa.”
Há um estudo publicado na Earth’s Future que diz que basta uma detonação de 100 ogivas nucleares para que a escuridão provocada bloquei o sol por décadas, impedindo a fotossíntese das plantas. Quem não morrer pelas radiações, ou pela alteração do clima, morrerá de fome. A China tem centenas de armas nucleares, e a Rússia e os EUA têm milhares cada um.
As pessoas, mesmos as mais informadas, rapidamente se esqueceram que sobreviveram à crise dos mísseis em Cuba por uma pura sorte! Têm sido treinadas para isso, estão e continuam a serem treinadas para esquecerem, ignorarem.
Algumas são mesmo fanáticas de uma guerra nuclear como solução. E elas existem em todos as nações, de militares a civis, em cargos de responsabilidade. Como é, por exemplo, o caso do senador pelo Mississípi Roger Wicker, que faz parte da Comissão da Defesa, que numa recente (7 dezembro 2021) entrevista à Fox News entendia que no confronto com a Rússia na Ucrânia “não punha de parte a utilização dos soldados americanos em terra”, e que os EUA deviam considerar “o uso preventivo de uma ação nuclear”.
Contribuem certamente para estas convicções do senador, os estudos de organizações como o Pentágono que entendem ser possível ganhar uma guerra nuclear limitada.
Trata-se de um espírito de guerra sem sentido, mas enraizado. O próprio general Lloyd Austin, atual ministro da defesa, referia-se à Rússia como União Soviética: “No melhor cenário não veremos qualquer incursão da União Soviética na Ucrânia”.
Estas mentalidades que propõem e não exitam em usar a guerra nuclear como forma de resolver conflitos, existem em qualquer das nações que detêm armamento nuclear. São milhares de botões prontos a serem carregados à sua disposição!
No caso americano, todos estes atos de intimidação, de propaganda, possíveis de se transformarem em ações militares concretas que podem ir até à guerra nuclear, estão iminentemente sempre ligados à manutenção da hegemonia unipolar, ou seja, ao domínio planetário sem oposição.
Esta é também a razão por detrás do que se vem passando com a China. Não tem nada a ver com a Ucrânia ou com Taiwan ou com os direitos humanos em Xinjiang, mas com o facto de a China ser a leader de um bloco em ascensão que não segue as políticas de submissão exigidas por Washington, ameaçando assim a hegemonia americana.
“O que é exatamente a ‘Ameaça Chinesa’? A ‘Ameaça Chinesa’ é a existência da China. Os EUA não toleram a existência de um estado que não possa ser intimidade da mesma forma como a Europa é, que não siga as ordens dos EUA como a Europa faz, mas que mantenha antes o seu próprio caminho. E isso é uma ameaça”, Noam Chomsky para a Democracy Now.
Quando o declínio de um império coincide com uma doutrina imperial que afirma que se deve manter a dominação planetária seja porque meios for, e quando aparecem senadores do país na televisão nacional a falarem sobre a possibilidade de se lançar um ataque nuclear sem aviso à Rússia, o mundo está de certeza muito menos seguro.
A consultar:
“The Coming War on China”, documentário de John Pilger no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=vAfeYMONj9E).
“O futuro da civilização humana”, 31 de julho de 2019 (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/226-o-futuro-da-civilizacao-humana-59419).
“O Antropoceno: de apagão em apagão”, 19 de fevereiro de 2020 (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/255-antropoceno-de-apagao-em-apagao-67702).
“Dois minutos para a meia-noite”, 06 de março de 2019 (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/205-dois-minutos-para-a-meia-noite-54195).