(346) O telefone móvel esperto: um amigo
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Ao ser tão amistoso torna invisível a sua intenção de domínio. O sujeito submetido nem sequer está consciente do seu submetimento. Imagina-se livre.
Como aparelho de submissão, o smartphone assemelha-se ao rosário, que é também tão móvel e manejável como ele. O like é o amén digital: quando carregamos no like, submetemo-nos ao aparelho de dominação, Byung-Chul Han.
Através do tato do dedo tudo pode ser consumível. O outro ao alcance do dedo passa também a objeto de consumo, daí que na comunicação digital a forma de nos dirigirmos a outros vai desaparecendo.
Todos os anos centenas de novas palavras e conceitos são incluídos nos dicionários e enciclopédias existentes. Pelo que uma das formas para se verificar se uma língua, uma cultura, uma civilização, estão a evoluir (bem ou mal é outro problema) será a de comparar a quantidade e a qualidade dessas novas introduções.
Por exemplo, no respeitante aos termos de marinharia, o português tem todas as palavras e conceitos, tendo até sido inovador em alguns deles. Não há nenhum termo estrangeiro que não encontre tradução na nossa língua. Já no respeitante à indústria, à aviação, aos foguetões, aos computadores (e relacionados) é um desastre: até os poucos termos que aportuguesamos acabam por não serem usados.
Tudo isso já anteriormente se vinha verificando, mesmo para pequenas expressões do dia-a-dia, como quando, entre muitos outros, em vez do popular ‘abajur’ (do francês abat-jour) o intentámos substituir por ‘quebra-luz’, ‘envelope’ por ‘sobrescrito’, ‘evento’ por ‘acontecimento’, etc. Atualmente já nem nos preocupamos em traduzir. Há, evidentemente, razões para tal.
Mas orgulhemo-nos por sermos dos poucos povos no mundo que utilizamos para os dias da semana um racional avançado: embora ainda correspondendo às feiras, ordenamo-las numericamente, fugindo a qualquer complicação astrológica, de 2ª, 3ª, 4ª, 5ª à 6ª. Religiosamente incluímos depois o sábado e o domingo.
Longe vão os tempos em que, segundo as regras de etiqueta, antes de se chamar uma pessoa por telefone, ou seja antes de a importunar, se deveria enviar previamente um postal dos correios indicando a data e hora em que tal chamada seria efetuada.
O telefone era aquela coisa grande e preta existente apenas em algumas das casas mais importantes, normalmente instalado num grande corredor obscurecido, com um toque estridente. Quando tocava, era porque algo importante se passava e todos ficavam dele dependentes.
Não é de admirar que o atual smartphone com a sua pequenez, leveza e mobilidade, nos dê uma sensação de liberdade. O seu som não assusta, não nos sentimos intimidados por ele, ninguém está à mercê da voz do outro.
Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta nascido na Coreia Sul, escreveu um artigo muito interessante sobre o smartphone. Diz ele:
“Os contínuos pequenos toques e deslizamentos sobre ele, são um gesto quási litúrgico que massifica a relação com o mundo. A informação que não me interessa apago-a num instante. Já os conteúdos que me interessam, posso-os ampliar com os dedos. Tenho o mundo completamente debaixo de controle. O mundo tem que cumprir comigo. O smartphone reforça o egocentrismo. Ao tocar na sua pantalha (ecrã), submeto o mundo às minhas necessidades. O mundo parece estar digitalmente à minha inteira disposição”.
Através do tato do dedo pedem-se comidas e outros artigos, transformando tudo o que toca em forma de mercadoria. Através do tato do dedo tudo pode ser consumível. O outro ao alcance do dedo passa também a objeto de consumo, daí que na comunicação digital a forma de nos dirigirmos a outros vai desaparecendo.
Já não se chama para falar. Prefere-se escrever mensagens de texto em vez de chamar, porque ao escrever estamos menos expostos ao contacto direto: e assim, o outro desaparece como voz.
A comunicação através do smartphone é uma comunicação sem corpo e sem visão do outro. A digitalização faz desaparecer o outro como olhar. Esta ausência de olhar é grande responsável pela falta de empatia na era digital.
A grande diferença do smartphone para o telefone móvel convencional, é que para além de ser um telefone também combina imagens e informação. A câmara e a pantalha são os elementos mais importantes do smartphone porque forçam a conversão do mundo em imagem. As imagens digitais transformam o mundo em informação disponível. O passo seguinte será converter o mundo em imagem, recriar o mundo a partir de imagens, ou seja, produzir uma realidade hiper-real.
Hoje levamos o smartphone a todos os sítios, e delegamos nele as nossas perceções. Percebemos a realidade através da pantalha. A janela digital dilui a realidade em informação, que de imediato registamos. Não há contacto com as coisas. Privamo-las da sua presença. Ao reduzir as coisas do mundo a informação, o smartphone escamoteia-as, tornando-as supérfluas. Não nos apercebemos do que elas são. A perceção torna-se incorpórea. O smartphone irrealiza o mundo.
O smartphone é também um informador muito eficiente que vigia permanentemente o seu dono. Ele controla-nos e programa-nos. Não somos nós que utilizamos o smartphone, mas é o smartphone que nos utiliza a nós próprios.
A contínua acessibilidade que nos fornece não se distingue da servidão que nos impõe. E é também um certo visor pornográfico, em que nos desnudamos voluntariamente. Como se fosse um confessionário portátil.
Como aparelho de submissão, o smartphone assemelha-se ao rosário, que é também tão móvel e manejável como ele. O like é o amén digital: quando carregamos no like, submetemo-nos ao aparelho de dominação.
“As plataformas como Facebook ou Google são os novos senhores feudais. Incansáveis, lavramos as suas terras e produzimos dados valiosos, dos quais eles logo retiram o proveito. Sentimo-nos livres, mas somos completamente explorados, vigiados e controlados. Num sistema que explora a liberdade, não se produz nenhuma resistência. A dominação consuma-se no momento em que concorda com a liberdade.”
E é assim porque “o poder smart não funciona com imposições ou proibições. A sua intenção não é tornar-nos dóceis, mas antes dependentes e aditos. Em vez de tentar quebrar a nossa vontade, serve as nossas necessidades. Quer comprazer-nos. É permissivo, não repressivo. Não nos impõe o silêncio. Antes pelo contrário, incita-nos e anima-nos continuamente a comunicar e a partilhar as nossas opiniões, preferências, necessidades e desejos. E até a contar as nossas vidas. Ao ser tão amistoso, quer dizer, smart, torna invisível a sua intenção de domínio. O sujeito submetido nem sequer é consciente do seu submetimento. Imagina-se livre.”
É na novela da escritora japonesa Yoko Ogawa, A polícia da memória, que fala duma ilha sem nome onde inexplicavelmente começam a desaparecer coisas irrecuperáveis: laços para o cabelo, perfumes, esmeraldas, rosas, pássaros, ao ponto de os habitantes acabarem por deixar de saber para que serviam essas coisas.
Ogawa situa a ilha debaixo de um regime totalitário que com a ajuda de uma polícia do pensamento despoja brutalmente a população das suas coisas e das suas recordações. Os que guardam em segredo recordações são perseguidos, presos e até assassinados pela polícia da memória.
O mundo vai-se assim esvaziando sem parar. Inclusivamente começam a desaparecer partes do corpo. Por fim, restam apenas vozes sem corpo que flutuam no ar, sem rumo.
Nos tempos em que vivemos é o frenesim de comunicação e informação que faz com que as coisas desapareçam. A informação interpõe-se à frente das coisas e fá-las empalidecer. A digitalização desmaterializa e descorporiza o mundo. Em vez de guardar recordações, armazena imensas quantidades de dados. Os meios digitais substituem a polícia da memória, fazendo o mesmo trabalho por forma não violenta e sem muito esforço.
Hoje vivemos num mundo que se vai esvaziando das coisas e das recordações perdidas, mas por outro lado se vai enchendo de uma informação tão inquietante como essas vozes sem corpo que Ogawa descreve.
Ao falsear os acontecimentos, a informação vive à custa do estímulo da surpresa. Como esse estímulo dura pouco, a necessidade é criar novos estímulos, pelo que nos habituamos a perceber a realidade como fonte de estímulos, e surpresas.
“Como caçadores de informação, tornamo-nos cegos para as coisas silenciosas, discretas, incluindo as habituais, as pequenas ou as comuns, que não nos estimulam mas que são as que nos ancoram no ser”.
Mesmo sabendo tudo isto, vi-me forçado a comprar um smartphone para minimamente poder fazer a minha vida normal sem grandes restrições numa cidade relativamente pós-pandémica, ou seja, numa cidade do futuro.
Sei que se tomarmos todos os cuidados para evitar sermos detetados pelas googles e associadas privadas e governamentais, acabaremos, tarde ou cedo, por sermos, exatamente por isso, identificados como grupos de risco para o sistema, o que poderá vir a ter ainda piores consequências. O que nos querem com isto dizer é que não há escapatória. “É assim a vida!” A que eles fizeram ser a nossa, evidentemente. “Presos por ter cão, e presos por não ter”.
Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, milhões de soldados americanos regressaram ao seu país. Para os receber foram construídas enormes quantidades de habitações, criando aquilo que ficou conhecido como os subúrbios. Para se deslocarem para os empregos nas cidades foram feitas inúmeras autoestradas. Todas estas casas e autoestradas foram largamente comparticipadas pela iniciativa privada: Ford, GM, etc. na previsão (certeza) de virem a ganhar com a venda de automóveis e similares. O carro individual passou a fazer parte do progresso, do desenvolvimento, do futuro, do bem-estar. Poderia ter-se optado por redes de transporte público, ou por localizações diferenciadas, ou por forma diferente de integração, mas não foi essa a opção.
O mesmo se passa agora com o smartphone. Criam mecanismos sociais que só podem ser navegados, utilizados por quem o tenha. E depois chamam progresso à servidão que criaram. Como se dizia nos velhos policiais franceses: “Cherchez la femme”, ou como se diz nos novos policiais anglófilos: “Follow the money”. Se conseguirem.