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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(344) Pensamentos sobre a Revolução Industrial

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

Era muito mais importante para a coroa (mais impostos), para os comerciantes (mais divisas) e para os senhores (o império) manter vivas as ovelhas do que a população nos campos.

 

Todos, salvo os idiotas, sabem que se devem manter pobres as classes baixas, caso contrário nunca trabalhariam, Arthur Young.

 

Uma vantagem ainda maior que possuem as pessoas em situação inferior é a facilidade com que sustentam os filhos, Arquidiácono Paley.

 

O contrato de trabalho é aquele em que o trabalhador “concorda em obedecer às diretivas do empregador”, Ronald Coase.

 

Mussolini não era um ditador, porque os italianos podiam sempre emigrar.

 

 

 

Na edição de 11 de março de 1776, a Birmingham Gazette publicava:

 

Na última sexta-feira, uma máquina a vapor construída segundo os novos princípios do Sr. Watt foi posta em funcionamento em Bloomfield Colliery […] na presença de alguns homens de ciência cuja curiosidade fora estimulada pela possibilidade de ver os primeiros movimentos de uma máquina tão singular e poderosa […] inventada pelo Sr. Watt, após muitos anos de estudo e grande variedade de experiências custosas e trabalhosas.”

 

Vinte e quatro anos depois, em 1800, a máquina a vapor já era usada em 30 minas de carvão, 27 minas de cobre, 28 fundições, 17 cervejarias e 8 fábricas de algodão (o referencial é sempre a Inglaterra, onde se iniciou a Revolução Industrial).

Uma das grandes vantagens da máquina a vapor foi a de libertar da necessidade de localizar as fábricas junto às quedas de água. Bastava que estivessem junto a minas de carvão, o que veio originar o crescimento rápido de muitas vilas, que até aí não tinham qualquer importância, tornando-se cidades. Em 1770 a população rural de Inglaterra era de 40%; em 1841, era de 26%. Manchester em 1801 tinha 35.000 habitantes, e em 1841 tinha 353.000; Leeds, 53.000 para 152.000; Sheffield, de 46.000 para 111.000.

Mas este crescimento rápido das populações nas cidades tem essencialmente que ver com outros acontecimentos económico-sociais: o aparecimento dos cercados (enclosures) das terras do rei e dos senhores.

À época, para além das terras senhoriais, existiam muitas terras comunais que eram utilizadas como reserva para o autoabastecimento dos aldeões nos tempos de penúria. Os cercados acabaram com quase todas estas terras, convertendo-as antes em pasto para as ovelhas, essenciais para as crescentes exportações de lã inglesa.

Era muito mais importante para a coroa (mais impostos), para os comerciantes (mais divisas) e para os senhores (o império) manter vivas as ovelhas.

Como resultado, muitos dos jornaleiros que subsistiam graças às terras comunais, foram obrigados a deslocarem-se para as cidades, aumentando o número dos pobres.

A situação era tal que levou Isabel I a decretar a primeira das Leis dos Pobres, Poors Law, criando os asilos, as casas de trabalho (workhouses). Todo o pobre que fosse fisicamente útil teria de se acolher obrigatoriamente na workhouse da paróquia em que estivesse registado. Ali, eram obrigados a trabalhar a troco de um salário de subsistência.

Eis algumas pérolas do pensamento das elites da época para a resolução do problema:

A fome domesticará os animais mais ferozes, ensinará aos mais perversos a decência, a obediência e a sujeição. No geral, só a fome poderá levar a ajoelhar (os pobres) e a obrigá-los a trabalhar”, Joseph Townsed, na Dissertation on the Poor Laws.

Se se lhes fizer a vida impossível, o número de mendigos reduzir-se-á: um método ainda mais rápido é pela utilização de arsénico, que seria até uma forma mais suave se fosse permitido”, Thomas Carlyle.

 “Pôr os pobres a trabalhar é um dever do homem para com Deus e a Natureza’’, segundo o bem-intencionado Josiah Child.

 “Todos, salvo os idiotas, sabem que se devem manter pobres as classes baixas, caso contrário nunca trabalhariam”, Arthur Young.

 

O ritmo que a máquina a vapor imprimia, ‘obrigou’ ao nascimento do sistema fabril em grande escala (organização eficiente e correspondente divisão de trabalho), com o consequente aumento de produção. As máquinas, que poderiam ter tornado mais leve o trabalho, fizeram-no pior.

Os proprietários sabiam que tinham de arrancar tudo da máquina o mais depressa possível, porque com as novas invenções elas podiam tornar-se logo obsoletas. E os operários tinham de acompanhar o ritmo das máquinas. Os dias de trabalho eram de 16 horas.

Quando os trabalhadores conseguiram o direito de trabalhar em dois turnos de 12 horas, a satisfação foi imensa.

Mas, mais do que o tempo de trabalho (nas suas vidas estavam habituados a trabalharem o mesmo), a maior dificuldade que tiveram foi a de se adaptarem à disciplina da fábrica: entrarem a horas certas nuns dias e a outras horas noutros, manter o ritmo de movimento das máquinas sob as ordens e supervisão de um capataz.

Os fiandeiros de uma fábrica perto de Manchester trabalhavam 14 horas por dia a uma temperatura de 26 a 29 graus, sem permissão para irem ou mandarem buscar água para beberem. Estavam sujeitos a multas por deixarem a janela aberta, por estarem sujos, por se lavarem no trabalho, por deixarem o gás aceso para além do tempo, por assobiarem.

Os salários eram os menores possíveis. E como as mulheres e crianças podiam cuidar das máquinas, ganhando menos que um homem, estes acabaram por ficar em casa sem trabalho. No princípio os donos das fábricas iam buscar as crianças pobres aos orfanatos. Mais tarde, como os salários do pai e da mãe já não eram suficientes para manter a família, as crianças que tinham casa viram-se obrigadas a trabalhar nas fábricas e minas.

Eis um relatório da Comissão para o Emprego das Crianças (First Report of the Central Board of His Majesty’s Commissioners on Employment of children in Factories, 1833), sobre o depoimento de Thomas Clarke, de 11 anos, que ganhava 4 xelins por semana (com a ajuda do irmão) como emendador de fios:

Sempre nos batiam se adormecíamos […] Eu costumava ir para a fábrica um pouco antes das 6, por vezes às 5, e trabalhar até às 9 da noite. Certa vez, trabalhei toda a noite […] Nós mesmo escolhíamos isso. Queríamos ter algum dinheiro para gastar. Tínhamos trabalhado desde as 6 da manhã do dia anterior […] Continuamos a trabalhar até às 9 da noite seguinte […] O meu irmão faz o turno comigo. Ele tem 7 anos. […] Levo-o comigo às 6 e fica comigo até às 8.”

 

Era mau para as crianças não irem à escola e trabalharem 14 horas por dia?

Eis o pensamento de alguns benfeitores da época:

Nada mais favorável para a moral que o hábito, desde cedo, da subordinação, da indústria e regularidades”, G. A. Lee, dono de uma tecelagem onde o horário das crianças era das 6 da manhã às 8 da noite.

Dar educação às classes trabalhadoras pobres […] seria na realidade prejudicial à sua moral e felicidade; aprenderiam a desprezar a sua sorte na vida ao invés de fazer deles bons servos na agricultura e outros empregos laboriosos, a que a sua posição na sociedade os destina […] Permitir-lhes-ia ler folhetos sediciosos […] e torná-los-ia insolentes para com os seus superiores”, S. Giddy, presidente da Royal Society.

Para os descontentes da classe trabalhadora, o Arquidiácono Paley recordava-lhes:

Algumas das necessidades que a pobreza impõe não constituem durezas, mas prazeres. A frugalidade em si, é um prazer. É um exercício de atenção e controle que produz contentamento. Este perde-se no meio da abundância. Uma vantagem ainda maior que possuem as pessoas em situação inferior é a facilidade com que sustentam os filhos. Tudo de que o filho de um pobre necessita está encerrado em duas palavras, ‘indústria’ e ‘inocência’.

E para os pobres que invejavam a ociosidade dos ricos: “Outra coisa que o pobre inveja no rico é a sua ociosidade. Trata-se de um engano total. A ociosidade é a cessação do trabalho. Não pode, portanto, ser gozada, ou mesmo provada, exceto pelos que conhecem a fadiga. O rico vê, e não sem inveja, o prazer e a recuperação que o repouso proporciona ao pobre.”

 

Face à tentativa para limitarem o dia de trabalho para 10 horas, o Arquidiácono Paley, o Dr Ure e os industriais de Gloucester, consideraram que tal “seria uma interferência na liberdade dos súbditos, que nenhuma outra legislatura da Cristandade teria tolerado por um momento. Os industriais de Gloucester caraterizaram, com justiça, esta proposta como digna da pior idade média”.

Essa proposta interferia na liberdade que tinha o operário de trabalhar tanto quanto desejasse o patrão. Este argumento, de que a limitação das horas de trabalho interferia na liberdade natural do homem, ainda hoje é usado.

 

No livro Rebels Against the Future, um trabalhador da indústria de lã sintetiza muito bem o que se passava em 1840:

 

‘Temos de trabalhar de catorze a dezasseis horas diárias e apesar de todo esse esforço não somos capazes de obter os meios de vida suficientes para subsistir. Quando pela noite deixamos o trabalho, a nossa capacidade sensorial encontra-se extenuada pela fadiga … Não temos tempo para sermos sensatos, nem tempo livre para sermos bons: estamos deprimidos, afundados, castrados, enervados pelo esforço, incapazes de virtude, sem forças para nada que se suponha vir a ser benéfico para nós mesmos quer no presente quer em qualquer período futuro’.

 

 

A Revolução Industrial está ligada ao aparecimento da máquina a vapor e ao crescimento da população, e veio possibilitar, reforçar e expandir enormemente o mundo das coisas, afastando-nos mais da natureza e das artes e ofícios.

Quando escrevemos que a revolução industrial nos afastou mais das artes e ofícios, tínhamos em atenção o facto de ela vir a alterar radicalmente a ideia igualitária da pequena empresa.

Os patrões, ao trabalharem lado a lado com os seus trabalhadores, fazendo o mesmo trabalho, no mesmo espaço, ensinando as mesmas técnicas aos seus aprendizes, não podiam impor um ritmo de trabalho superior ao executado por eles, nem imporem locais de trabalho sem o mínimo de condições de segurança ou climatéricas em que eles próprios também trabalhariam. A confraternização teria forçosamente de existir.

 Com a Revolução Industrial tudo isto se alterou, aumentando a separação entre empregados e empregadores. Os patrões já não faziam o mesmo tipo de trabalho que os empregados faziam. O trabalho mental separou-se do trabalho manual. As hierarquias multiplicaram-se. Os principais executivos, grande parte das vezes, nem no mesmo edifício trabalhavam. Tudo isto deu origem a uma severa degradação das condições de trabalho.

Os empregadores, em vez de beberem ou comerem com os empregados, passaram a pregar temperança, pontualidade, disciplina, aumentando grandemente ao mesmo tempo as horas e o ritmo de trabalho e baixavam os salários.

 As economias de escala impõem-se às economias dos pequenos proprietários, substituindo-os por grandes empresas que empregavam muitos trabalhadores. A própria natureza do trabalho e as relações entre os patrões e os trabalhadores das manufaturas, são alteradas, criando um maior afastamento entre eles.

 

Estas novas condições, degradantes quando comparadas com as que tinham tido os artesãos, levaram os mais radicais a apelidarem-nas como representantes do “salário da escravidão”. Já os liberais as consideravam como representantes do “trabalho livre”.

 Para os ‘liberais’, o trabalho era considerado como ‘livre’ porque, prevendo o contrato a possibilidade de admissão e saída do emprego, os trabalhadores tinham os mesmos direitos que os empregadores. Além disso, era regulado pelo mercado. Já os ´radicais’ focalizavam-se antes nas condições atuais de trabalho a que o contrato obrigava, que colocavam os trabalhadores numa relação de profunda subordinação para com os seus empregadores.

 

Pode-se constatar que o sonho inicial igualitário a favor da existência do mercado, acabou por falhar, em parte devido às economias de escala. As alterações tecnológicas impulsionaram a Revolução Industrial no sentido da necessidade de uma enorme concentração de capital. Para fazer funcionar uma fundição de aço, uma fábrica de cimento ou química, uns caminhos de ferro, ou uma fábrica de tecidos de algodão, necessitavam-se de muitas mãos.

O mesmo se passa hoje com aeroportos, hospitais, laboratórios farmacêuticos, fábricas de montagem de computadores e, a um nível de menor exigência técnica, parques de diversão, distribuidores, etc.

A maior eficiência de produção obtida usando grandes e invisíveis capitais, explica porque é que poucos trabalhadores individuais podem ter hoje capital próprio para sustentar as suas empresas. E explica também, porque é que a maior parte das grandes empresas responsáveis pela grande maioria da produção não são propriedades de um só dono.

 

Em 1937, o economista britânico Ronald Coase, publica um artigo que mais tarde (1991) vai contribuir para o seu Prémio Nobel em Ciências Económicas, onde explica as razões para o aparecimento de firmas , “The Nature of the Firm” (http://www3.nccu.edu.tw/~jsfeng/CPEC11.pdf), e onde diz que o contrato de trabalho é aquele em que o trabalhador “concorda em obedecer às diretivas do empregador.”

Segundo ele, “a essência do contrato deve apenas declarar os limites dos poderes do empregador”. O problema é que na grande maioria dos casos, salvo no contexto dos grandes acordos coletivos ou para os cargos de topo, estes limites não são aclarados nem declarados. Então, o que é que determina e limita a autoridade do empregador?

 

O Estado, que através de um complexo sistema de leis acaba por conferir ao empregador, salvo raras exceções, grande autoridade legal sobre o empregado. É como se o empregador viesse a ser o substituto do governo no local de trabalho.

A filosofia que serve de base a esta teoria é a que proclama que a relação de trabalho é livre, porque os trabalhadores são livres para, se e quando quiserem, deixarem, terminarem o contrato. Portanto, não existia nenhuma imposição de autoridade.

 É como dizer que Mussolini não era um ditador, porque os italianos podiam sempre emigrar.

 

Uma achega:

Paul Virilio (1932-), na obra Un paysage d’événements, chama-nos a atenção para um outro problema ligado aos progressos da técnica:

 

Inventar o navio é inventar o ‘naufrágio’, inventar a máquina a vapor, a locomotiva, é inventar o ‘descarrilamento’, a catástrofe ferroviária. Também para a aviação, os aviões implicam o ‘embate’ com o solo, a catástrofe aérea. E, sem falar do automóvel e dos ‘choques’ em cadeia a grande velocidade, da eletricidade e da electrocução, nem sobretudo dos ‘riscos tecnológicos’ maiores resultantes do desenvolvimento das indústrias químicas ou nucleares […] cada período da evolução técnica traz, juntamente com os seus instrumentos e máquinas, o aparecimento de acidentes específicos, reveladores «em negativo», do desenvolvimento do pensamento científico.

 

 

 

Notas

  1. Uma obra fundamental para este período: Friedrich Engels, A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra.
  2. Ajuda a leitura dos blogs de 17 de julho de 2019 “A albarda e os donos”, de 28 de junho de 2017 “Donos da inevitabilidade”, o de 2 de novembro de 2016, “Lá vamos, cantando e rindo, …” e o 13 de julho de 2016 “Os equívocos da técnica”.

 

 

 

 

 

 

 

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