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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(341) Grandes pequenas coisas

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Exemplos de pequenas coisas que na medida em que forem sendo continuadas poderão vir a ter grande influência nas sociedades.

 

Os autores medievais dão-nos vulgarmente relatos parciais e enviesados das vidas das mulheres, suas motivações e aspirações, quando mesmo não as ignoram.

 

O que procurámos foi, através de documentos, apreciar as menções a essas mulheres como mães, esposas e filhas […] (para que) as suas vidas merecessem ser o foco da atenção em vez de apenas um nome facilmente esquecido perdido no meio de uma grande narrativa, Laura Ingallinelli.

 

Eu não gosto das coisas compartimentadas dessa forma, gosto do preto & branco, amarelo & vermelho, jovem & velho, rico e pobre, e macho & fêmea, todos misturados, Elizabeth Bishop.

 

 

 

A Wikipedia é uma enciclopédia aberta que, desde a sua fundação a 21 de janeiro de 2001, tem sido escrita e mantida por uma comunidade mundial de voluntários (com mais de 33 milhões de editores) que esboçam, escrevem, editam e verificam o melhor possível a imparcialidade e veracidade dos seus conteúdos.

Quem escreve para ela sabe que a sua composição não será como se fosse um ensaio. Deve evitar floreados, tentar ser imparcial, sem preconceitos, apoiando sempre as suas afirmações em referências exteriores. Em vez de intentar produzir um argumento, deve concentrar-se em oferecer a quem o lê, instrumentos que lhes possibilitem construírem eles próprios um argumento.

Embora pouco apreciada por parte dos corpos universitários, a Wikipedia pode dar uma primeira visão geral dos problemas a tratar, poupando horas de deslocações por vezes infrutíferas a bibliotecas.

Vem tudo isto a propósito de um artigo sobre Sapia Salvani com que dei nas minhas deambulações pela Wikipedia, em que vim a saber ter sido uma das mulheres caraterizadas por Dante na Divina Comédia. Através das ligações, constatei que sobre esse assunto (mulheres caraterizadas na Divina Comédia) existiam mais de uma dúzia de biografias: Alagia Fieschi, Beatrice d’Este, Beatrice Portinari, Cianghella della Tosa, Constance of Sicily, Cunizza da Romano, Francesca da Rimini, Gaia da Camino, Ghisolabella Caccianemico, Giovanna da Montefeltro, Gualdrada Berti, Joanna of Gallura, Matelda, Nella Donati, Pia de’ Tolomei, Piccarda Donati e Sapia Salvani.

 

Verifiquei que tais artigos se devem a Laura Ingallinella, professora de Estudos Italianos no famoso Wellesley College (Massachusetts, EUA, universidade privada de artes liberais que só aceita mulheres), que, juntamente com as suas alunas, resolveram empreender este trabalho.

O motivo porque o fizeram:

 

Entre as 600 personagens que fazem parte da Divina Comédia, as mulheres são aquelas que menos aparecem como fazendo parte de uma narrativa histórica. Os autores medievais dão-nos vulgarmente relatos parciais e enviesados das vidas das mulheres, suas motivações e aspirações, quando não as ignoram mesmo. Daí que a Divina Comédia seja muitas vezes a única fonte acessível de informação sobre essas mulheres.”

 

Por outro lado, esses retratos de mulheres dados por Dante são elusivos, e isto porque:

 

“O tratamento dado às mulheres por Dante tem algo de misoginia. Como Victoria Kirkham, Marianne Shapiro e Teodolinda Barolini demonstraram, Dante utiliza as mulheres como metáforas, que vão da criada piedosa à vilã capaz de por de joelhos dinastias inteiras.”

“O que procurámos foi, através de documentos, apreciar as menções a essas mulheres como mães, esposas e filhas […] (para que) as suas vidas merecessem ser o foco da atenção em vez de apenas um nome facilmente esquecido perdido no meio de uma grande narrativa.”

 

Laura Ingallinella apresenta-nos três pequenos exemplos:

 

O caso de Sapia Salvani que encontra Dante e o seu guia, Virgílio, no segundo terraço do purgatório. Ela conta-lhes como o seu destino para lá da morte ficou selado: tendo ficado à janela do castelo da sua família e, vendo as tropas reunidas à distância orou para que a sua própria cidade, Siena, fosse tomada. Apesar da vantagem que tinham, os sienenses foram massacrados - incluindo o seu sobrinho, cuja cabeça foi exibida espetada numa lança à volta de Siena. E conta como nesse momento se sentiu triunfante.

Segundo Dante e os teólogos medievais, ela tinha sido vítima de um dos sete pecados capitais, a “invidia” (inveja).

Dante aproveita a descrição para a apresentar como uma representação condenável da violência existente no seu tempo em que, devido à arrogância e à ganância, alguns se voltavam contra as suas próprias comunidades.

Fontes documentais pesquisadas pelas alunas de Wellesley mostram, no entanto, Sapia como sendo uma verdadeira filantropa: juntamente com o marido, fundou um hospício para os pobres na Via Francigena, numa rota de peregrinação para Roma. Cinco anos após a queda de Siena, doou todos os seus bens ao hospício.

 

E o caso de Ghisolabella Caccianemico, uma jovem de Bolonha vendida pelo irmão, Venèdico, como escrava sexual, esperando formar uma aliança com um vizinho marquês. Dante expõe o caso como “um conto nojento” de seres sem dignidade. Ghisolabella é a vítima silenciosa no meio de homens.

O que as alunas fizeram foi tornar Ghisolabella como centro da história, tentando dar uma visão objetiva sobre a violência que lhe foi infligida, preservando a sua dignidade.

A inclusão por Dante de Ghisolabella, eterniza o pecado de Venèdico”.

 

E ainda o caso da célebre Beatrice d’Este, a aristocrata a quem Dante criticava por se ter casado de novo após o falecimento do marido. Dante ficava horrorizado com as viúvas que se atreviam a casar em vez de se manterem fiéis para sempre aos seus falecidos maridos.

Mas esta não era a verdadeira história de Beatrice. Segundo Deborah W. Parker, Beatrice foi pressionada para um segundo casamento e tentou negociar o seu lugar no mundo para não se sujeitar aos maldizeres, conseguindo que no seu túmulo figurassem os dois maridos ao seu lado.

 

Estamos perante pequenos trabalhos que não fazendo mal a ninguém permitem aclarar certos aspetos da vida humana: exemplos de pequenas coisas que na medida em que forem sendo continuadas poderão vir a ter grande influência nas sociedades.

Mas como os que normalmente viajam de barco não fixando o horizonte preferindo antes olhar para o mar junto à embarcação, acabam por enjoar com tudo, até estes singelos trabalhos criticam.

Ou porque é uma produção da Wellesley, um anacronismo e mau exemplo da “nossa” sociedade, um colégio só para mulheres (ignorando que maior parte das universidades da Ivy League até 1960 só admitiam homens – brancos e anglo-saxónicos, evidentemente), ou porque é uma introdução forçada de mulheres na Wikipedia alterando a proporcionalidade existente, ou porque as obras literárias não devem ser lidas ou apreciadas pela sua historicidade, ou porque sei lá que mais. Por tudo, menos pelo trabalho apresentado.

 

Ouçamos antes o que nos diz Elizabeth Bishop:

 Tendo sido por várias vezes convidada para participar em antologias poéticas femininas, como The Women Poets in English (Mulheres Poetisas em Inglês), recusou sempre porque para ela “Os homens e as mulheres não escrevem de maneiras diferentes”.

Além disso “imaginam o ridículo que seria o aparecimento do título Men Poets in English?” […] Eu não gosto das coisas compartimentadas dessa forma, gosto do preto & branco, amarelo & vermelho, jovem & velho, rico e pobre, e macho & fêmea, todos misturados”.

A segregação, seja ela artística ou social, acabará sempre por ser contra a aceitação da igualdade entre as mulheres e os homens:

 

Literatura é literatura, independente de quem a produz”.

 

 

Nota: sugiro a leitura do blog de 7 de novembro de 2018, “Éticas” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/188-eticas-49840).

 

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