(340) Dos tiros nos pés
Tempo estimado de leitura: 5 minutos.
As promessas que são feitas por essas empresas que garantem “bebés saudáveis”, assentam não em garantias, mas em probabilidades.
Se os governos impõem a eugenia, são tidos como autoritários, não democráticos. Se os governos impedem a eugenia, são tidos como autoritários, não democráticos.
Uma das primeiras Revoluções Culturais aconteceu na Espanha de Franco, entre 1951 e 1968, com o lançamento do Serviço Universitário do Trabalho (SUT).
Os campos de trabalho surgiram como a realização na prática do discurso populista e operário falangista, permitindo além disso ganhar algum prestígio entre os trabalhadores.
Para a maior parte das pessoas mídiamente informadas, Revolução Cultural foi algo que aconteceu na China durante o governo de Mao Zedong, entre 1966 e 1976. No entanto, uma dessas primeiras revoluções culturais já acontecera na Espanha de Franco, entre 1951 e 1968, iniciada pelo padre jesuíta, José Maria Llanos, importante apoiante falangista do regime, quando lança o Serviço Universitário do Trabalho (SUT).
No seguimento dos movimentos sociais-católicos que apareceram após a revolução industrial nos bairros miseráveis dos trabalhadores, com os chamados padres-operários que acompanharam durante a Segunda Guerra Mundial as deslocações para a Alemanha dos operários obrigados pelo Serviço do Trabalho Obrigatório imposto pelos nazis em toda a Europa ocupada. Desta sua experiência, os padres-operários verificaram, por um lado, a forte descristianização do mundo do trabalho e, por outro, o efeito evangelizador da convivência.
Ao mesmo tempo que isso acontecia, a doutrina fascista propunha contra a luta de classes marxista, a existência de uma irmandade entre os homens dentro de uma comunidade nacional unificada e disciplinada, mesmo que conseguida pela repressão e eliminação da dissidência. O falangismo espanhol revia-se neste discurso populista da unidade dos homens de Espanha para além da sua classe social, para o que procedeu à criação de vários Serviços Sociais.
Esta nova sensibilidade pessoal começa por aparecer no meio universitário, perante as evidentes desigualdades económicas e culturais, e pela separação entre os vários estratos da sociedade.
O padre jesuíta José Maria de Llanos vai organizar no Colegio Santa Maria del Campo de Madrid uma série de campos de trabalho com a finalidade de permitir aos universitários entrarem em contacto direto com o mundo operário para compartirem a realidade das suas condições de trabalho e de vida:
“O tipo de estudante meramente aluno, apenas aluno, é o tipo que se desejava superar pensando num tipo de homem mais completo, capaz de formar-se no ar da sua época, adquirindo aquele sentido social que falta à grande maioria dos espanhóis. E não só pela maneira fácil e já usada das conferências e encontros, mas pela experiência existencial, do trabalho das mãos, vivido o mais próximo possível dos seus irmãos e companheiros, "os outros".
Permitia “apagar da face de Espanha a figura do estudante despreocupado e egoísta […] Ombro a ombro na fábrica, na mina, ou no mar, procura-se a convivência com uma realidade dura”.
O seu sucesso foi quase imediato, passando rapidamente de dois campos de trabalho e trinta estudantes para mais de 500 campos e 13.000 estudantes. Para a chefia, os campos de trabalho surgiam como a realização na prática do discurso populista e operário falangista, permitindo ainda ganhar algum prestígio entre os trabalhadores, na sua luta pela legitimação.
O SUT foi desenvolvendo várias atividades, como o Serviço de intercâmbio com o Estrangeiro, a Oficina de Viagens, as Campanhas de Alfabetização. Conferências e palestras após as jornadas laborais, teatro, cinema e atuações musicais, a ajuda à construção de vivendas, saneamento e acessória jurídica. Em 1962, institucionalizaram as campanhas de Educação Popular, reduzindo significativamente o elevado índice de analfabetismo existente.
Eis os que nos conta uma das estudantes, Alicia Rios, sobre o que era a vida num campo de trabalho e a realidade que encontraram:
“Íbamos por las mañanas a cortar hierba, no había agua y ninguna forma de comunicación con el exterior. Yo había viajado mucho y no imaginaba que pudiese existir dentro de España un sitio de tamaño contraste cultural. Un día llevamos una televisión. Ellos se arreglaron, miraron la tele como si fuera un acto social y me preguntaron: ‘Hija, ¿los que están allí nos ven a nosotros?”.
Todas estas atividades acabaram por mostrar o descuido e a falta de atenção do poder instituído pelas populações mais carenciadas. À vista as injustiças da estrutura social e a repartição desigual da riqueza.
A agitação universitária não parava de crescer, e o regime foi dando conta que estavam a alimentar o antifranquismo. A gota de água foi a greve organizada pelos mineiros da firma Antracitas de Gaiztarro em 1968, em cuja organização participaram seis sutistas. A diretora da SUT, Teresa Alba, foi demitida e a sua equipa, por solidariedade, demitiu-se. Chegara ao fim o projeto que nascera com o apoio falangista.
Apoiado nos desenvolvimentos científicos mais recentes da altura, não constituía nenhum espanto de maior que o movimento progressista nazi liderado por Hitler pensasse em produzir efetivamente uma raça superior. O que começara como propaganda política, foi-se transformando numa prática eugénica assumida: a seleção dos melhores espécimes para a reprodução.
Esse conceito de “melhoria” do ser humano conta com uma certa implantação nas sociedades, e tem vindo regularmente ao de cima. Com a possibilidade da seleção de embriões, a audiência expande-se ao ponto de o assunto ser tratado pelo grande cinema com o filme de 1997, Gattaca (de Andrew Niccol, com Uma Thurman, Jude Law). Recordemos que o título do filme tinha por base as letras G, A, T, C, iniciais de guanina, adenina, tiamina e citosina, os quatro constituintes básicos do DNA.
Atualmente, existem já um certo número de empresas nos EUA e na Europa que oferecem a possibilidade de os embriões não conterem riscos de esquizofrenia, câncer da mama e diabetes.
Ou seja, a todos aqueles pais que recorrem a tratamentos de fertilidade, na altura de escolherem quais os embriões a implantar, poderão optar pelos que lhes deem melhores garantias para evitarem certas doenças. Quais os pais que não o farão?
Recentemente (julho de 2021) a The New England Journal of Medecine publicou um estudo sobre a seleção de embriões possível de utilizar oferecida (comercializada) pelas várias empresas que operam no campo da fertilização in vitro.
O estudo alerta para o facto de a ciência utilizada ser ainda muito recente pelo que existe muito que se não conhece, para o facto de todos os dados recolhidos se referirem apenas a caucasianos, e para a seleção poder ainda aumentar mais as desigualdades da saúde entre as várias classes e raças, uma vez que os testes são vendidos de 400 dólares/embrião a 1.000 dólares.
Chama também a atenção para aquilo que são as promessas feitas por essas empresas que garantem “bebés saudáveis”, dado que tais campanhas assentam não em garantias, mas em probabilidades.
Apesar de até agora nenhuma empresa ter oferecido a possibilidade de se poder vir a ter um filho mais inteligente, ou mais dotado para a música, ou para o que os pais mais desejarem, as investigações nesse sentido não param de perseguir esses objetivos. Aliás, não é considerado ilegal que uma empresa ofereça a possibilidade de escolha de maior inteligência, outra aptidão, altura, peso ou outra caraterística física.
O que põe pelo menos dois problemas graves: ao possibilitar uma suposta pretendida perfeição genética dos filhos, poder-se-ia estar a limitar a sociedade ao impedir a humanidade do aparecimento de personagens tão influentes como, por exemplo, Bethoven, VanGogh, Lincoln, Miles Davis, Rainha Vitória, Albert Einstein, todos eles com problemas genéticos.
O outro problema é o que se relaciona com o poder dos estados, dos seus cidadãos e das suas empresas. Se os governos impõem a eugenia, são tidos como autoritários, não democráticos. Se os governos impedem a eugenia, são tidos como autoritários, não democráticos. Se forem os pais a poderem escolher, então a eugenia já pode ser considerada como liberal, democrática, mesmo não tendo a mesma riqueza ou pobreza, ou inteligência e saber. Apenas por serem pais, o grande nivelador. “Parental choice”, como diz Steven Hyman.
Se repararem, o mesmo se passa com a vacina: se os estados obrigam os cidadãos a vacinarem-se, são autoritários, antidemocráticos. Para serem democráticos têm de não obrigar os cidadãos a vacinarem-se. Contudo, nestes estados, as empresas depois não dão emprego a quem não for vacinado, e isto já é democrático. Areia para os nossos olhos.