(339) Genocídios maus, os assim-assim, e os outros.
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O genocídio é um processo que se desenvolve ao longo de dez fases que são previsíveis, mas não inexoráveis, Gregory Stanton.
Cientificamente não há raças, embora haja racismo.
O judeu é um homem que os outros homens dizem ser judeu, Jean-Paul Sartre.
Os estados tornam-se genocidas quando se organizam por forma a excluírem parte dos seus cidadãos.
“As dez fases do genocídio” é uma obra de 2013, inicialmente publicada em 1996 como “As oito fases do genocídio”, escrita por Gregory H. Stanton, professor na University of Mary Washington. Explica-nos ele:
“O genocídio não pode ser cometido por um indivíduo ou por um pequeno grupo; ele necessita da cooperação de um grande número de pessoas e do estado. O processo inicia-se com um preconceito que não para de crescer. Se conseguirmos saber as várias fases porque o genocídio passa, os cidadãos ficam melhor preparados para identificar os sinais de aviso e assim impedir o processo de continuar.
Segundo ele:
[…] O genocídio é um processo que se desenvolve ao longo de dez fases que são previsíveis, mas não inexoráveis. Em cada fase, medidas preventivas podem fazer pará-la. O processo não é linear. A fases podem ocorrer simultaneamente. Logicamente, as fases posteriores devem ser precedidas pelas fases anteriores. Mas, todas as fases continuam a existir ao longo de todo o processo.”
Quais são, então, as 10 fases do genocídio que Stanton considera?
- Classificação: As pessoas são divididas entre “nós” e “eles”.
- Simbolização: As pessoas são obrigadas a identificarem-se.
- Discriminação: As pessoas começam a confrontarem-se com uma discriminação sistemática.
- Desumanização: As pessoas são equiparadas a animais, vermes ou doenças.
- Organização: O governo cria grupos especiais (polícia/militar) para fazer cumprir as suas políticas.
- Polarização: O governo emite propaganda para voltar a população contra um grupo.
- Preparação: Começa a ação oficial para remover/recolocar pessoas.
- Perseguição: Começam os assassinatos, roubo de propriedade, julgamento de massacres.
- Exterminação: Eliminação ad hoc do grupo. É considerado como “exterminação” e não assassinato porque as pessoas não são consideradas como sendo humanos.
- Negação: O governo nega que tenha cometido qualquer crime.
Assassinatos e matanças coletivas indiscriminadas contra outros grupos, não constitui novidade na história da humanidade. E tal vem já de muito longe: basta relembrar a fossa neolítica recentemente descoberta em Talheim na Alemanha, onde se encontraram grande número de esqueletos humanos, homens, mulheres, crianças e bebés, assassinados por outros humanos.
Estamos perante um exemplo claro da aniquilação de um grupo por outro grupo, acontecido 20-30.000 anos atrás, que mostra que o instinto (ou o que seja) para o assassinato em massa de grupos acompanha de muito perto o aparecimento da raça humana.
É como se grupos humanos considerassem a destruição de outros grupos (nacionais, étnicos, raciais, religiosos ou outros) como um instrumento político à sua disposição. E, contudo, esse tipo de crime não fazia parte do nosso vocabulário, não existia nenhum nome para o descrever: era “um crime sem nome”.
Foi o assassinato sistemático de milhões de pessoas no Holocausto, com a intenção deliberada de exterminar grupos, na sua totalidade ou parte, que forçou esse reconhecimento.
O termo “genocídio” foi inventado pelo advogado Raphael (Rafat) Lemkin. Trabalhando há mais de duas décadas numa nova codificação e identificação de crimes internacionais que envolvessem atrocidades cometidas contra populações civis vulneráveis, e isto porque as leis internacionais em vigor não consideravam crimes cometidos pelas próprias nações dentro dos seus territórios contra os seus nacionais, Lemkin e outros, propunham que se reconhecessem como crimes internacionais todos os que representassem violações sérias dos direitos humanos.
Apesar das suas propostas não terem sido todas acolhidas na Convenção Para a Prevenção e Repressão do Genocídio, Lemkin foi um fervoroso apoiante da Convenção que acabou por ser unanimemente adotada a 9 de dezembro de 1948 na Assembleia Geral das Nações Unidas:
“Na presente Convenção, genocídio significa qualquer um dos seguintes atos abaixo cometidos, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
(a) Matar membros do grupo;
(b) Causar sérios danos físicos ou mentais a membros do grupo;
(c) Infligir deliberadamente condições de vida ao grupo calculadas para levarem à sua destruição física por completo ou em parte;
(d) Impor medidas destinadas a evitar nascimentos dentro do grupo;
(e) Transferir à força crianças do grupo para outro grupo.”
A adoção desta Convenção sobre genocídio foi feita um dia antes de ter sido também adotada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Contudo, as dificuldades para a sua aprovação foram muitas, pelo que ainda hoje as ambiguidades e interpretações se mantêm, como, por exemplo, as que dizem respeito à própria definição de genocídio, às instituições sobre quem recai a responsabilidade da sua prevenção e à determinação das normas legais que definam a intenção de o praticar.
Embora se entenda a inclusão em 1948 do termo “grupos raciais” na definição do documento da ONU, numa altura em que cada grupo étnico ou nacional era chamado de “raça”, sabe-se hoje que a diferenciação das pessoas com base na cor da pele é incorreta, até dando indevidamente suporte ao racismo.
Cientificamente, não há raças, o que não significa que não haja racismo. O DNA veio demonstrar que todos os humanos provêm da mesma origem, ou seja, há só uma raça humana. A cor da pele e as formas do corpo têm origem no desenvolvimento de pequenas mutações que foram acontecendo.
O racismo desenvolveu-se a partir do século XV, com a chegada das potências coloniais Ibéricas a África. Sabemos a história: os negros eram escravizados, normalmente por outros negros, vendidos a mercadores árabes de escravos, que por sua vez os vendiam aos mercadores brancos da costa africana. Daí eram transportados em horríveis condições para o Novo Mundo. Para justificar essas ações, desenvolveu-se uma ideologia que permitia, com base na cor da pele, estabelecer as diferenças entre os escravos e os seus torcionários. Até aí, nem romanos, nem cristãos, tinham estabelecido qualquer diferenciação ou exclusão pela cor da pele. Este comportamento racista é, inclusivamente, legalizado quando a Espanha publica a norma sobre “limpiezza de sangre”, segundo a qual as pessoas de origem Judia ou Árabe não podiam ocupar posições importantes na Igreja e no Estado.
Outra das ambiguidades da definição da Convenção tem que ver com o problema da “intenção”. Como se pode provar que houve intenção quando os arquivos estão fechados, desapareceram, ou quando as ordens para matar são dadas oralmente? Hitler nunca deu nenhuma ordem para matar todos os judeus.
O passado tem demonstrado que o genocídio só ocorre quando há um beneplácito, tácito ou ativo, conferido pelos estados. Os estados identificam as “ameaças” e agem de acordo, com o uso do assassinato em massa como parte da resposta pretendida pelas elites poderosas que acreditam que o genocídio é a melhor forma para resolverem os problemas e as ameaças, reais ou imaginárias.
Mas o genocídio não é irracional. Há razões para os estados serem genocidas, a primeira das quais se prende com a aquisição e conservação do poder. Para os seus mandantes, o genocídio aparece-lhes como perfeitamente razoável. No entanto, ele é um processo disfuncional a partir da altura em que o estado exclui parte dos seus cidadãos dos direitos humanos que o próprio estado se responsabilizou por proteger. Os estados tornam-se genocidas quando se organizam por forma a excluírem parte dos seus cidadãos.
O conceito de genocídio aparece quase conjuntamente com o de crimes contra a humanidade, no rescaldo do após-guerra para se julgarem as atrocidades nazis, pelo que se torna por vezes difícil de separá-los. Daí que os participantes da Comissão das Nações Unidas para Crimes de Guerra, reunida a partir de novembro de 1943, e a Conferência de Londres, reunida a partir de fins de agosto de 1945 para prepararem o julgamento de Nuremberga dos maiores criminosos de guerra, tenham optado por usarem nas acusações o termo “crimes contra a humanidade” umas vezes, e outras o termo “genocídio” como se fossem quase sinónimos.
Contudo, nas atas do Tribunal Militar Internacional não aparece a palavra genocídio, nem nas do julgamento final realizado a 30 de setembro e 1 de outubro de 1946, utilizando-se antes o conceito de crimes contra a humanidade.
O problema é que a definição de crimes contra a humanidade utilizada em Nurembergue só se aplicava a atrocidades cometidas numa guerra de agressão. Tal só se pode ter sido intencional por parte de quem controlava e detinha o poder sobre as acusações, os então quatro grandes, Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética.
Percebe-se que estender a lei internacional de crimes de guerra que se verificassem no campo de batalha e a perseguição de civis num território ocupado por forma a cobrir as atrocidades cometidas por um governo contra a sua própria população civil, era não só uma novidade sem precedentes como poderia ameaçar os vários estados que organizavam os processos de acusação e condenação.
Eis o que disse sobre o assunto o representante dos EUA, Robert Jackson, na Conferência de Londres a 23 de julho de 1945:
“Tem sido um princípio geral da política externa do nosso governo desde tempos imemoriais que os assuntos internos de outro governo normalmente não são da nossa conta; isto é para dizer que, a maneira como a Alemanha trata os seus habitantes, ou qualquer outro país trata os seus habitantes não é problema nosso, da mesma forma que seria um outro governo interpor-se nos nossos problemas.
A razão pela qual este programa de extinção dos judeus e destruição dos direitos das minorias se torna uma preocupação internacional é esta: por ser uma parte de um plano para fazer uma guerra ilegal. A menos que consigamos estabelecer uma ligação com uma guerra, acho que não existem bases para lidar com atrocidades. Elas faziam parte da preparação para a guerra ou para a condução da guerra, e na medida em que ocorreram dentro da Alemanha isso faz com que não seja nossa preocupação.”
Falando do crime proposto de “atrocidades, perseguições e deportações por motivos políticos, raciais ou religiosos terras ligeiras”, que em breve seria renomeado de “Crimes contra a humanidade”, Justice Jackson indicou a fonte das persistentes preocupações do seu governo:
“Normalmente, não consideramos que os atos de um governo para com os seus próprios cidadãos justifique a nossa intervenção. Nós mesmos temos por vezes algumas circunstâncias lamentáveis no nosso próprio país em que as minorias são tratadas injustamente.”
No seu julgamento final, o Tribunal Militar Internacional fez uma distinção entre a perseguição aos judeus alemães antes da guerra, e a política alemã seguida durante a guerra nos territórios ocupados, pelo que nenhum dos acusados foi considerado culpado por atos praticados antes de 1 de setembro de 1939 (ano do início da guerra).
Até 1979, nunca nenhum tribunal nacional tinha condenado qualquer pessoa por genocídio. Só nesse ano é que foi condenado o tirano da Guiné Equatorial, Macias Nguema. Aliás, o primeiro caso a ser apresentado em tribunal foi a queixa da Índia contra o Paquistão, em 1971, pelo genocídio no Bangladesh, mas que acabou por ser resolvido por meios diplomáticos.
Não é de admirar que os lutadores pelo reconhecimento do que na realidade são os genocídios, como Lemkin e Stanton, tenham continuado a sua luta: Stanton funda em 1999 a Vigia do Genocídio (Genocide Watch), primeira organização internacional com a intenção de predizer e prevenir os custos de um desenvolvimento genocida à escala mundial que, numa coligação global com a Campanha Internacional para Acabar com o Genocídio (International Campaign to end Genocide) engloba já cinquenta organizações em cinco continentes.
Muito importante também, a sua publicação referida sobre as dez fases do genocídio, porquanto permite, até a título individual, rapidamente identificar, e até prevenir, a eclosão e desenvolvimento de genocídios. Basta segui-las para determinar a fase em que nos encontramos, no próprio país ou em outros países.
Mas atenção, pode ser que o genocídio faça parte da natureza humana, quer individualmente, quer do seu desenvolvimento possível como sociedade, quer ainda como possível desígnio exterior. E isso conduzir-nos-ia a uma outra história: a nossa.