(338) A fabricação de iluminados
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Ashraf Ghani é o exemplo clássico das elites neoliberais que o império dos Estados Unidos escolhe, cultiva e instala no poder para servir os seus interesses. Mas o seu histórico não deve ser tomado como um exemplo isolado.
Digitando nos seus escritórios herméticos da rua K de DC (Distrito de Columbia), eruditos estudiosos ajudaram a fornecer a justificação política e intelectual para se prosseguir com a ocupação militar estrangeira de duas décadas no Afeganistão. Os grupos de reflexão que lhes proporcionaram empregos pareciam ver a guerra como uma missão civilizacional neocolonial voltada para a promoção da democracia e do esclarecimento para um povo “atrasado”.
Permitam-me primeiro homenagear o povo americano, as administrações americanas e o Congresso dos Estados Unidos, e particularmente, o contribuinte americano pelos seus sacrifícios em sangue e tesouro, Ashraf Ghani.
O conceituado jornalista de investigação americano Ben Norton, publicou a 2 de setembro de 2021 na The Grayone, o artigo “How elite US institutions created Afghanistan’s neoliberal Presidente Ashraf Ghani, who stole $169 million from his country” (Como as instituições dos EUA criaram o neoliberal Presidente Ashraf Ghani, que roubou $169 milhões do seu país), que aqui apresento numa tradução livre e não totalmente completa (menos extensa), por me parecer um ponto de vista importante para a compreensão do mundo em que vivemos.
Não há indivíduo mais emblemático como representante da corrupção, criminalidade e podridão moral no cerne dos 20 anos da ocupação americana no Afeganistão do que o presidente Ashraf Ghani.
Ghani nasceu numa família rica e influente no Afeganistão. O pai tinha trabalhado para a monarquia do país, encontrando-se politicamente bem relacionado. Ainda jovem, Ghani deixou a terra natal e foi para o Ocidente.
Quando se dá a invasão pelos Estados Unidos em outubro de 2001, Ghani vivera já metade da sua vida nos Estados Unidos, onde estabelecera carreira como burocrata académico ao serviço do Império.
Cidadão dos EUA até 2009, Ghani só decidiu renunciar à cidadania americanaa para concorrer à presidência do Afeganistão.
Um simples olhada à sua biografia, é quanto basta para mostrar como ele foi concebido numa placa Petri das instituições de elite dos EUA.
O cultivo de Ghani pelos Estados Unidos começou quando ele ainda estava no secundário em Oregon, onde se formou em 1967. De lá, foi estudar para a American University em Beirute, onde, como disse o The New York Times, “gostava de Praias do Mediterrâneo, frequentou bailes e conheceu ” a sua esposa libanesa-americana, Rula”.
Em 1977, voltou para os Estados Unidos, onde passaria os próximos 24 anos de sua vida. Completou um mestrado e doutoramento na Columbia University de Nova York. Área de estudos? Antropologia - uma disciplina grandemente infiltrada pelas agências de espionagem dos Estados Unidos e pelo Pentágono.
Na década de 1980, Ghani encontrou facilmente empregos nas melhores escolas: University of California, Berkeley e Johns Hopkins. Tornou-se também uma presença regular nos mídias públicos britânicos, estabelecendo-se como um importante comentarista dos serviços de tradução de afegão (dari e pashtum) ligados à agência de inteligência da BBC. Em 1985, o governo dos Estados Unidos ofereceu a Ghani uma prestigiosa bolsa Fulbright, para estudar escolas islâmicas no Paquistão.
Em 1991, Ghani decidiu deixar a academia para entrar no mundo da política internacional. Ingressou na principal instituição que reforça a ortodoxia neoliberal em todo o mundo: o Banco Mundial. Como demonstrou o economista político Michael Hudson, essa instituição serve como braço virtual das forças armadas dos Estados Unidos.
Ghani trabalhou no Banco Mundial durante uma década, supervisionando a implementação dos devastadores programas de ajuste estrutural, medidas de austeridade e privatizações em massa, principalmente no Sul Global, mas também na ex-União Soviética.
Regressado ao Afeganistão em dezembro de 2001, foi rapidamente nomeado ministro das finanças do governo fantoche criado pelos EUA. Como ministro das finanças até 2004 e, posteriormente, presidente de 2014 a 2021, ele empregou os conhecimentos e modos de atuação que tinha desenvolvido no Banco Mundial para conseguir impor na sua terra natal o consenso de Washington.
O regime que Ghani ajudou os Estados Unidos a construir era tão caricaturalmente neoliberal que, inclusivamente, criou uma pasta a ser ocupada por um alto funcionário chamada de “CEO do Afeganistão”.
Na década de 2000, com o apoio de Washington, Ghani planeou gradualmente o seu caminho para vir a conseguir alcançar o totem político. Em 2005, inicia um rito de passagem tecnocrático onde, numa palestra viral no TED, prometeu ensinar ao seu público a “Como reconstruir um estado falido”.
A palestra permite-nos um vislumbre transparente da mente do que é um burocrata imperial treinado pelo Banco Mundial. Ghani ecoou o argumento do "fim da história" de seu mentor Fukuyama, insistindo que o capitalismo se tornou a forma incontestável de organização social do mundo. A questão não era mais sobre qual o sistema que um país queria, argumentou ele, mas sim "qual forma de capitalismo e qual o tipo de participação democrática".
Nesse mesmo ano, Ghani proferiu uma palestra na European Ideas Network Conference, na qualidade de novo presidente da Universidade de Cabul, na qual expôs mais alargadamente a sua visão de mundo.
Elogiando o “centro-direita”, Ghani declarou que as instituições imperialistas como a OTAN e o Banco Mundial devem ser fortalecidas para defender a “democracia e o capitalismo”. Insistiu que a ocupação militar americana do Afeganistão era um modelo que poderia ser exportado para todo o mundo, como "parte de um esforço global".
Na palestra, Ghani também refletiu afetuosamente sobre a época em que conduzira a "terapia de choque" neoliberal de Washington na ex-União Soviética: "Na década de 1990 ... a Rússia estava pronta para se tornar democrática e capitalista e acho que o resto do mundo fracassou. Tive o privilégio de trabalhar na Rússia por cinco anos durante esse tempo.”
Ghani estava tão orgulhoso do seu trabalho com o Banco Mundial em Moscovo que, na sua biografia oficial no site do governo afegão, gabou-se de "trabalhar diretamente no programa de ajuste da indústria de carvão da Rússia" – por outras palavras, privatizar as enormes reservas de hidrocarbonetos do gigante da Eurásia.
Enquanto Ghani exibia os seus feitos na Rússia pós-soviética, a UNICEF publicou um relatório em 2001 em que constatou que a década de privatizações em massa impostas à Rússia recém-capitalista causou impressionantes 3,2 milhões de mortes em excesso, reduziu a expectativa de vida em cinco anos e arrastou 18 milhões de crianças para uma pobreza extrema, com “altos níveis de desnutrição infantil”. A principal publicação médica, Lancet, também descobriu que o programa econômico criado pelos EUA, aumentou as taxas de mortalidade dos homens adultos na Rússia em 12,8%, em grande parte devido ao impressionante desemprego masculino de 56,3% que desencadeou.
Dado esse histórico odioso, talvez não constitua surpresa que Ghani tenha deixado o Afeganistão com taxas crescentes de pobreza e miséria.
O acadêmico Ashok Swain, professor da Universidade de Uppsala sobre paz e pesquisa de conflitos e da cadeira da UNESCO sobre cooperação internacional da água, observou que, durante os 20 anos de ocupação militar EUA-NATO, “O número de afegãos que vivem na pobreza duplicou, e as áreas de cultivo de papoila triplicaram. Mais de um terço dos afegãos não tem comida, metade não tem água potável e dois terços não tem eletricidade.”
O remédio da receita do mercado livre que o presidente Ghani enfiou na garganta do Afeganistão foi tão bem-sucedido quanto a terapia de choque neoliberal que ele e seus colegas do Banco Mundial impuseram à Rússia pós-soviética.
Mas o óleo de cobra económico de Ghani encontrou um público ávido na chamada comunidade internacional. E em 2006, o seu perfil global tinha atingido tal altura que chegou mesmo a ser considerado possível substituto para o secretário-geral Kofi Annan nas Nações Unidas.
Enquanto isso, Ghani recebia grandes somas de dinheiro dos países da NATO e de fundações apoiadas por bilionários para criar um grupo de reflexão cujo nome ficará para sempre tingido de ironia.
Em 2006, Ghani aproveitou a sua experiência da implementação de políticas “pró-negócios” na Rússia pós-soviética, para na sua própria terra natal fundar um grupo de reflexão chamado Institute for State Effectiveness (ISE).
O ISE apresenta-se a si próprio numa linguagem que poderia ter sido extraída de um folheto do FMI: “As raízes do trabalho do ISE encontram-se num programa do Banco Mundial do final da década de 1990, que visava melhorar as estratégias do país e a implementação do programa. Concentrou-se na construção de coligações para a reforma, implementação de políticas em grande escala e treino da próxima geração de profissionais de desenvolvimento”.
O slogan do grupo de reflexão (think tank) pode ser hoje lido como uma paródia do cliché tecnocrático: “Abordagens centradas no Cidadão para o Estado e o Mercado”.
Além de seu papel para promover reformas neoliberais no Afeganistão, o ISE tem executado programas semelhantes em 21 países, incluindo Timor Leste, Haiti, Quénia, Kosovo, Nepal, Sudão e Uganda. Nesses estados, o grupo de reflexão dizia que fora criado uma “estrutura para compreender as funções do estado e o equilíbrio entre governos, mercados e pessoas”.
Legalmente sediado em Washington, o Institute for State Effectiveness é financiado por um Quem é Quem de financiadores de think tank: Governos ocidentais (Grã-Bretanha, Alemanha, Austrália, Holanda, Canadá, Noruega e Dinamarca); instituições financeiras internacionais de elite (Banco Mundial e OCDE); e fundações corporativas apoiadas por bilionários ligadas à inteligência ocidental (Rockefeller Brothers Fund, Open Society Foundations, Paul Singer Foundation e Carnegie Corporation de Nova York).
O cofundador de Ghani foi o entusiasta do mercado livre Clare Lockhart, ex-banqueiro de investimentos e também veterano do Banco Mundial que passou a servir como conselheiro da ONU para o governo afegão criado pela NATO e membro do conselho de curadores da Fundação Ásia, apoiada pela CIA.
A visão obcecada pelo mercado do ISE de Ghani e Lockhart vai fundir-se numa parceria formada em 2008 com o instituto de pesquisas neoliberal Aspen Institute. Segundo o acordo, Ghani e Lockhart lideraram a “Iniciativa de Construção de Mercado” do Aspen, com o fim de “criar o diálogo, estruturas e engajamento ativo para apoiar os países na construção de economias de mercado legítimas”, “visando estabelecer as cadeias de valor e sustentar a credibilidade instituições e infraestrutura para permitir que os cidadãos participem dos benefícios de um mundo globalizado. ”
A cereja no topo do absurdo veio em 2008, quando Ghani e Lockhart detalharam a sua visão tecnocrática do mundo, num livro intitulado “Fixing Failed States: A Framework for Rebuilding a Fractured World”.
O primeiro texto que aparece na folha de capa do livro é uma sinopse do guia ideológico de Ghani, Francis Fukuyama, o erudito que declarou de forma infame que, com a queda da União Soviética e do Bloco Socialista, o mundo tinha chegado ao "Fim da História" e que a sociedade humana fora sendo aperfeiçoada devido à ordem democrática liberal capitalista liderada por Washington.
Após o elogio de Fukuyama, segue-se um brilhante endosso do economista peruano de direita Hernando de Soto, autor do tratado "O mistério do capital: Por que o capitalismo triunfa no Ocidente e falha em todos os outros lugares" (spoiler: de Soto insiste que não é o imperialismo). Este Chicago Boy elaborou as políticas neoliberais da terapia de choque aplicadas pelo regime ditatorial de Alberto Fujimori no Peru.
A terceira sinopse do livro de Ghani foi composta pelo vice-presidente da Goldman Sachs, Robert Hormats, que insistiu que o livro "fornece uma análise brilhantemente elaborada e extraordinariamente valiosa".
"Consertando Estados Falidos" é uma leitura irritantemente chata e reiterando ao longo de 265 páginas a tese de Ghani: a solução para praticamente todos os problemas do mundo são os mercados capitalistas, e o Estado existe apenas para gerir e proteger esses mercados.
Ghani e Lockhart escreveram: “O estabelecimento de mercados funcionais levou à vitória do capitalismo sobre os seus concorrentes como um modelo de organização económica, aproveitando as energias criativas e empreendedoras de um grande número de pessoas como partes interessadas na economia de mercado.”
Os leitores deste soporífero neoliberal teriam aprendido o mesmo folheando qualquer panfleto do Banco Mundial.
Além de empregar algumas variações da palavra "mercado" 219 vezes, o livro apresenta 159 usos das palavras "investir", "investimento" ou "investidor". Está também repleto de passagens desajeitadas repetidas maquinalmente, como as seguintes:
“Embarcar nesses caminhos de transição exigiu esforços para superar a perceção de que o capitalismo é necessariamente explorador e que a relação entre governo e corporações é inerentemente de confronto. Governos bem-sucedidos estabeleceram parcerias entre o estado e o mercado para criar valor para seus cidadãos; essas parcerias são lucrativas financeiramente e sustentáveis política e socialmente.”
Destacando o seu fanatismo ideológico, Ghani e Lockhart chegaram ao ponto de afirmar uma "incompatibilidade entre capitalismo e corrupção". Ironicamente, Ghani iria provar o quão absurda era essa declaração, vendendo o seu país para empresas americanas nas quais os seus familiares haviam investido, fornecendo-lhes acesso exclusivo às reservas minerais do Afeganistão e, em seguida, fugindo para uma monarquia do Golfo com 169 milhões de dólares em fundos estatais roubados.
Mas entre as elites, o risível livro foi celebrado como uma obra-prima. Em 2010, “Fixing Failed States” concedeu a Ghani e Lockhart o cobiçado 50º lugar na lista dos 100 maiores pensadores globais da Foreign Policy. A estimada revista descreveu seu Instituto para a Eficácia do Estado como "o think tank (grupo de reflexão) de construção de Estado mais influente do mundo".
O Silicon Valley também se rendeu. A Google convidou os dois para a sua sede de Nova York para apresentarem as conclusões do livro.
Digitando nos seus escritórios herméticos da rua K de DC (Distrito de Columbia), eruditos estudiosos ajudaram a fornecer a justificação política e intelectual para se prosseguir com a ocupação militar estrangeira de duas décadas no Afeganistão. Os grupos de reflexão que os empregaram pareciam ver a guerra como uma missão civilizacional neocolonial voltada para a promoção da democracia e do esclarecimento para um povo “atrasado”.
Foi nesse ambiente isolado de grupos de reflexão e de universidades americanas politicamente interligadas, que, ao longo dos seus 24 anos nos Estados Unidos, de 1977 a 2001, nasceu o político Ghani.
A poderosa Brookings Institution estava apaixonada por ele. Escrevendo no Washington Post em 2012, o diretor intervencionista liberal da pesquisa de política externa do grupo de reflexão, Michael E. O’Hanlon, elogiou Ghani como um "mago da economia".
Mas, entre as organizações que impulsionaram a ascensão de Ghani, a principal foi indubitavelmente o Atlantic Council, o verdadeiro grupo de reflexão da OTAN no DC.
As influências e patrocinadores de Ghani foram claramente evidenciadas na sua conta oficial no Twitter, onde o presidente afegão seguiu apenas 16 perfis. Entre eles estavam a OTAN, a sua Conferência de Segurança de Munique e o Conselho do Atlântico.
O trabalho de Ghani com esse grupo de reflexão remonta a quase 20 anos. Em abril de 2009, Ghani deu uma entrevista bajuladora com Frederick Kempe, presidente e CEO do Atlantic Council. Kempe revelou que os dois eram amigos íntimos e colegas desde 2003:
“Quando eu vim para o Atlantic Council, nós construímos um Conselho Consultivo Internacional, de presidentes e CEOs de empresas globalmente significativas, e membros do Gabinete - ex-membros do Gabinete de alguns renomados países importantes. Naquela altura, não era tanto que eu estivesse determinado a ter o Afeganistão representado no Conselho Consultivo Internacional, porque nem todos os países do Sul da Ásia o são. Mas eu estava determinado a ter Ashraf Ghani.”
Kempe revelou que Ghani não era apenas membro do Conselho Consultivo Internacional, mas também parte de um influente grupo de trabalho do Atlantic Council denominado Strategic Advisors Group. Juntando-se a Ghani no comité estavam ex-altos funcionários de governos ocidentais e oficiais militares, bem como líderes de grandes corporações dos Estados Unidos e da Europa.
Como parte do Grupo de Consultores Estratégicos do Conselho Atlântico, Kempe afirmou que ele e Ghani ajudaram a criar a estratégia da administração de Barack Obama para o Afeganistão:
“Foi assim que falei com Ashraf pela primeira vez, e conversamos sobre como as metas de longo prazo não eram realmente conhecidas. Apesar de todos os recursos que estávamos a investir no Afeganistão, os objetivos de longo prazo não eram óbvios”, explicou Kempe.
“Nessa altura, tivemos a ideia de que deveria haver uma estrutura de 10 anos para o Afeganistão. Mal sabíamos que estávamos a desenvolver e a implementar uma estratégia - porque sempre foi pensada para ser apenas uma estratégia para implementar. Mas, de repente, tínhamos um plano de Obama, ao qual teríamos de colocar essa estratégia de implementação”.
Ghani publicou esta estratégia no Atlantic Council em 2009, sob o título “Uma Estrutura de Dez Anos para o Afeganistão: Executando o Plano Obama ... e Além”.
Em 2009, Ghani também foi candidato às eleições presidenciais do Afeganistão. Para ajudar a administrar sua campanha, Ghani contratou o consultor político americano James Carville, conhecido pelo seu papel como estratega nas campanhas presidenciais democratas de Bill Clinton, John Kerry e Hillary Clinton.
Na época, o Financial Times descreveu favoravelmente Ghani como "o mais ocidentalizado e tecnocrático de todos os candidatos nas eleições afegãs".
O povo afegão não ficou tão entusiasmado. Ghani acabou derrotado na corrida, ficando com um triste quarto lugar, com menos de 3% dos votos.
Quando após a eleição o amigo de Ghani, Kempe, o convida em outubro para uma entrevista, o presidente do Conselho do Atlântico insistiu:
“Algumas pessoas diriam que você fez uma campanha mal sucedida; Eu diria que foi uma campanha de sucesso, mas você não ganhou. ”
Kempe elogiou Ghani, chamando-o "um dos servidores públicos mais capazes em qualquer lugar do planeta" e "concetualmente brilhante".
Kampe também observou que o discurso de Ghani "deve ser considerado provocador para o governo Obama", e que contava com o Conselho do Atlântico para ajudar a formular suas políticas.
“Antes da eleição você teria vindo aqui como um americano e afegão com passaporte duplo, mas um dos sacrifícios que você fez para se candidatar foi desistir de sua cidadania americana, pelo que estou horrorizado em saber que você está aqui apenas com um visto de entrada único EUA-Afeganistão”, acrescentou Kempe. “Portanto, o Conselho do Atlântico trabalhará nisso, mas certamente temos que retificar isso.”
Ghani continuou a trabalhar em estreita colaboração com o Atlantic Council nos anos que se seguiram, dando constantemente entrevistas e aparecendo em acontecimentos com Kempe, nas quais o presidente do grupo de reflexão afirmou: “No interesse da divulgação completa, devo declarar que Ashraf é um amigo, um amigo querido . ”
Até 2014, Ghani permaneceu um membro ativo do Conselho Consultivo Internacional do Conselho Atlântico, ao lado de vários ex-chefes de estado, o planificador imperial dos EUA Zbigniew Brzezinski, o apóstolo económico neoliberal Lawrence Summers, o oligarca bilionário libanês-saudita Bahaa Hariri, o magnata dos mídia da direita Rupert Murdoch e os CEOs da Coca-Cola, Thomson Reuters, Blackstone Group e Lockheed Martin.
Mas naquele ano, a oportunidade apareceu e Ghani viu sua ambição finalmente ao seu alcance. Ele estava prestes a tornar-se presidente do Afeganistão, cumprindo o papel para que as instituições de elite dos EUA o tinham preparado ao longo de décadas.
O primeiro líder pós-Talibã do Afeganistão, Hamid Karzai, tinha-se inicialmente mostrado como um fantoche ocidental leal. No entanto, no final do seu reinado em 2014, Karzai tornara-se um "crítico severo" do governo dos EUA, como disse o Washington Post, "um aliado que se tornou um adversário durante os 12 anos de sua presidência".
Karzai começou a criticar abertamente as tropas dos EUA-NATO por matarem dezenas de milhares de civis. Ele estava enfurecido pela forma como era controlado e procurava maior independência, lamentando:
"Os afegãos morreram numa guerra que não é a nossa".
Washington e Bruxelas tinham um problema. Tinham investido no Afeganistão biliões de dólares ao longo de uma década na criação de um novo governo à sua imagem, mas a marionete escolhida estava a começar a querer ter o controle.
Do ponto de vista dos governos da NATO, Ashraf Ghani seria o substituto perfeito para Karzai. Ele era o retrato de um tecnocrata leal e tinha apenas uma pequena desvantagem: os afegãos odiavam-no.
Em 2009, Ghani concorreu abertamente como candidato do Consenso de Washington, obtendo menos de 3% dos votos na eleição. Ele só teve o apoio de algumas elites em Cabul.
Então, para a corrida presidencial de 2014, Ghani e seus assessores ocidentais utilizaram uma abordagem diferente, vestindo Ghani com roupas tradicionais e enchendo os seus discursos com retórica nacionalista.
O New York Times insistiu que ele finalmente encontrara o ponto ideal: “Tecnocrata para populista afegão, Ashraf Ghani transforma-se”. O artigo relatou como Ghani passou de um "intelectual pró-ocidental" que conduzia "conversa fiada num vernáculo melhor descrito como tecnocrata (pense em frases como 'processos consultivos' e 'estruturas cooperativas')" para uma cópia ruim de "populistas que fazem acordos com os seus inimigos, ganham o apoio dos rivais e apelam ao orgulho nacional afegão”.
A estratégia de reajustamento ajudou Ghani a ficar em segundo lugar na primeira volta da eleição de 2014. O seu rival, Abdullah Abdullah, obteve 45% contra 32% de Ghani, com quase 1 milhão de votos a mais.
Na segunda volta de junho, no entanto, a situação mudou de repente. Os resultados foram atrasados e, quando terminaram, três semanas depois, Ghani tinha ganho com uns impressionantes 56,4% contra 43,6% de Abdullah.
Abdullah afirmou que Ghani roubou a eleição por meio de fraude generalizada. As acusações estavam longe de serem infundadas, pois havia evidências substanciais de irregularidades sistemáticas.
Para resolver a disputa, o governo Obama enviou o secretário de Estado John Kerry para Cabul para intermediar as negociações entre Ghani e Abdullah.
A mediação de Kerry levou à criação de um governo de unidade nacional em que o presidente Ghani, pelo menos inicialmente, concordou em dividir o poder com Abdullah, que ocuparia uma função recém-criada, cujo nome refletia de forma transparente a agenda neoliberal de Washington: Chief Executive Officer, ou CEO da Afeganistão.
Um relatório publicado em dezembro por observadores eleitorais da União Europeia concluiu que houve, de fato, uma fraude desenfreada nas eleições de junho. Mais de 2 milhões de votos, representando mais de um quarto do total, vieram de assembleias de voto com irregularidades evidentes.
Se Ghani realmente ganhou ou não a segunda volta, era nebuloso. Mas ele conseguiu ultrapassar a linha de chegada, e isso era tudo o que importava. Ele agora era presidente. E os seus patronos imperiais em Washington ficaram mais do que felizes em varrer o escândalo para debaixo do tapete.
A aparente manipulação da eleição de 2014 fez pouco para manchar a imagem de Ashraf Ghani nos mídia ocidentais. A BBC caracterizou-o com três termos - “reformador”, “tecnocrata” e “incorruptível” - que se tornariam as descrições favoritas da imprensa para um presidente que abandonou seu país com 169 milhões de dólares e com o rabo entre as pernas.
Num artigo emblemático do retrato de Ghani, o New Yorker afirmou que ele era "incorruptível", saudando-o como um "tecnocrata visionário que pensa vinte anos à frente".
Em março de 2015, Ghani voou para Washington para o seu momento de glória final. O novo presidente afegão fez um discurso numa sessão conjunta do Congresso dos EUA. Foi celebrado como um herói que desbloquearia a magia do mercado livre para salvar o Afeganistão de uma vez por todas.
Os grupos de reflexão e os seus amigos na imprensa não se cansavam de Ghani. Naquele mês de agosto, o diretor sénior de programas da organização de mudança de regime financiada pelo governo dos Estados Unidos, Democracy International, Jed Ober, publicou um artigo na Foreign Policy que refletia o caso de amor do Governo Federal para com o seu homem em Cabul.
“Quando Ashraf Ghani foi eleito presidente do Afeganistão, muitos membros da comunidade internacional se alegraram. Certamente, um ex-funcionário do Banco Mundial com reputação de reformador era o homem certo para consertar os problemas mais flagrantes do Afeganistão e reparar internacionalmente a posição do país. Não havia melhor candidato para levar o Afeganistão a uma nova era de boa governança e começar a expandir os direitos e liberdades que muitas vezes têm sido negados a muitos dos cidadãos do país.”
Imperturbável pelas alegações documentadas de fraude eleitoral, o Conselho do Atlântico homenageou Ghani em 2015 com seu "prêmio de distinção de liderança internacional", celebrando o seu "compromisso altruísta e corajoso para com a democracia e a dignidade humana".
O Conselho do Atlântico notou com entusiasmo que Ghani “aceitou pessoalmente o prêmio, que lhe foi entregue pela ex-secretária de Estado Madeleine Albright, em 25 de março em Washington, perante uma audiência de líderes, embaixadores e generais da OTAN”.
Albright, que uma vez defendeu publicamente a morte de mais de meio milhão de crianças iraquianas por sanções lideradas pelos EUA, glorificou Ghani como um "economista brilhante" e afirmou "ele ofereceu esperança ao povo afegão e ao mundo".
A cerimônia oficial do Conselho do Atlântico foi realizada posteriormente em abril, mas Ghani não pôde comparecer, então sua filha Mariam recebeu o prêmio em seu nome […]
[…]O marketing do Atlantic Council em nome do presidente Ghani acelerou após a cerimônia. Em junho de 2015, o grupo de reflexão publicou um artigo no seu blog “New Atlanticist” intitulado “IMF: Ghani has Shown Afghanistan is ‘Open for Business’”.
O principal funcionário do Fundo Monetário Internacional no Afeganistão, Chefe da Missão Paul Ross, comunicou ao Conselho do Atlântico que Ghani "sinalizou para o mundo que o Afeganistão está aberto aos negócios e que a nova administração está determinada a prosseguir com as reformas".
O burocrata declarou que o FMI estava "otimista quanto ao longo prazo", sob a liderança de Ghani.
Ghani e seu regime fantoche dos EUA tinham uma espécie de porta giratória com o Conselho do Atlântico, na verdade. O seu embaixador nos Emirados Árabes Unidos, Javid Ahmad, atuava simultaneamente como membro sénior do grupo de reflexão. Ahmad explorou a sua sinecura ali para colocar artigos de opinião nos principais meios de comunicação retratando o seu chefe como um reformador moderado que pretendia "restaurar o debate civil na política afegã".
A Foreign Policy emprestou a Ahmad espaço na sua revista para publicar um de anúncio mal disfarçado de campanha para Ghani em junho de 2014. O artigo elogiava-o como “uma alternativa intelectual, pró-ocidental e altamente educada ao antigo sistema de corrupção e senhorio da guerra do Afeganistão.”
À época, Ahmad era coordenador de programa para a Ásia no grupo de lobby da guerra fria financiado pelo governo ocidental, o German Marshall Fund dos Estados Unidos. Os editores da Foreign Policy aparentemente não notaram que o artigo de Ahmad tinha passagens que são quase uma cópia, palavra por palavra, da biografia oficial de Ghani.
Na Cimeira da NATO de 2018, o Conselho do Atlântico acolheu mais uma entrevista bajuladora com Ghani. Ostentando os seus supostos “esforços de reforma”, o presidente afegão insistiu, “o setor de segurança está a transformar-se completamente, devido aos esforços contra a corrupção”. Ele acrescentou: “Há uma mudança geracional a ocorrer nas nossas forças de segurança, e em todas as áreas, que considero realmente transformadora”.
Essas afirmações cheias de bazófia não envelheceram exatamente bem.
O jornalista que deu a entrevista foi Kevin Baron, editor executivo do site da indústria de armamento, Defense One. Embora a corrupção sistémica e a natureza ineficaz e abusiva do exército afegão fossem bem conhecidas, Baron não contraditou.
No acontecimento, Ghani prestou homenagem ao grupo de reflexão que por tanto tempo serviu como a sua fábrica de propaganda pessoal. Comemorando o CEO do Atlantic Council, Fred Kempe, Ghani disse: “Você tem sido um grande amigo. Tenho grande admiração tanto pela bolsa conquistada como pela sua gestão.”
O caso de amor do Conselho do Atlântico com Ghani continuou até ao vergonhoso fim de sua presidência.
Ghani foi um convidado de honra na Conferência de Segurança de Munique (MSC), apoiada pelo Conselho do Atlântico e patrocinada pelo governo alemão, em 2019. Lá, o aristocrático presidente afegão fez um discurso que faria corar até o mais cínico pseudo-populista, declarando:
“A Paz precisa de ser centrada no cidadão, não centrada na elite.”
O Atlantic Council recebeu Ghani pela última vez em junho de 2020, num acontecimento copatrocinado pelo Instituto da Paz dos Estados Unidos, vinculado à CIA e pelo Fundo Rockefeller Brothers. Seguindo o elogio de Kempe como uma "voz principal pela democracia, liberdade e inclusão", o ex-diretor da CIA, David Petraeus, elogiou Ghani, enfatizando "que privilégio foi trabalhar com [ele] como comandante no Afeganistão".
Só depois de Ghani ter roubado abertamente e fugido em desgraça do seu país, em agosto de 2021, é que o Conselho do Atlântico finalmente se voltou contra ele. Depois de quase duas décadas promovendo, cultivando e celebrando-o, finalmente o grupo de reflexão reconheceu que ele era um “vilão escondido”.
Foi uma reviravolta dramática de um grupo de reflexão que conhecia Ghani melhor do que talvez qualquer outra instituição em Washington. Mas ecoou também as tentativas desesperadas de salvar a face por muitas das mesmas instituições de elite dos EUA que transformaram Ghani no assassino econômico neoliberal que ele era.
A ilusão de que Ashraf Ghani era um génio tecnocrático continuou até o final de seu desastroso mandato.
A 25 de junho, poucas semanas antes do colapso de seu governo, Ghani encontrou-se com Joe Biden na Casa Branca, onde o presidente dos Estados Unidos garantiu ao seu homólogo afegão o apoio constante de Washington.
“Vamos ficar com você”, Biden assegurou a Ghani. “E vamos fazer o nosso melhor para garantir que você tenha as ferramentas de que precisa.”
Um mês depois, a 23 de julho, Biden reiterou a Ghani num telefonema, que Washington continuaria a apoiá-lo. Mas sem milhares de soldados da NATO a proteger o seu regime vazio, os Talibãs avançavam rapidamente - e tudo desmoronou em questão de dias, como um castelo de areia atingido por uma onda.
A 15 de agosto, Ghani tinha fugido do país com sacos de dinheiro roubado. Foi uma refutação surreal da narrativa, repetida ad nauseam pela imprensa, que Ghani era, como a Reuters escrevera em 2019, “incorruptível e erudito”.
As elites em Washington não podiam acreditar no que estava a acontecer, negando o que estavam a ver bem diante de seus olhos.
Até mesmo o lendário ativista anticorrupção progressista Ralph Nader estava em negação, referindo-se a Ghani em termos afetuosos como um "ex-cidadão americano incorruptível".
Poucas figuras representaram melhor a podridão moral e política da guerra de 20 anos dos EUA no Afeganistão do que Ashraf Ghani. Mas seu histórico não deve ser tomado como um exemplo isolado.
Foi a oficial Washington, o seu aparelho de grupos de reflexão e o seu exército de repórteres bajuladores que fizeram de Ghani quem ele era. Este foi um facto que ele mesmo reconheceu numa entrevista de junho de 2020 no Atlantic Council, na qual Ghani expressou a sua maior gratidão aos seus patronos:
“Permitam-me primeiro homenagear o povo americano, as administrações americanas e o Congresso dos Estados Unidos, e particularmente, o contribuinte americano pelos seus sacrifícios em sangue e tesouro. ”