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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(336) A intimidade possível

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Aceitar a intimidade é aceitar a possibilidade de que outra pessoa não nos entenda e nos fira, Sally Rooney.

 

Iniciar uma relação é abrir a porta a mudanças e a transformações.

 

 Reconhecer o outro não é uma luta para dele se apoderar.

 

Se faltar intimidade no nosso relacionamento com os outros, aquilo que estamos a fazer é tratá-los como objetos.

 

Acontece que na contemporaneidade dominam os valores empresariais.

 

 

 

 

 

A jovem escritora irlandesa Sally Rooney, autora afamada de Gente normal (livro e série de televisão), deu recentemente uma entrevista onde aflora um dos temas mais importantes para a vivência e convivência humana na nossa sociedade:

 

Deixar que uma pessoa entre na tua vida íntima é correr um risco […] Quando nos aproximamos profundamente a outro ser humano, abrimos a porta a mal-entendidos e à dor […] Aceitar a intimidade é aceitar a possibilidade de que outra pessoa não nos entenda e nos fira.”

“Dificilmente pode existir uma relação profunda, sincera e livre sem algum tipo de conflito ou discrepância. A dor faz parte do amor. Bem assumida, fá-lo crescer. Essa é a natureza da intimidade: contém vulnerabilidade, implica a possibilidade de que apareça a dor.”

“Pode-se desejar ser rico ou ter muito dinheiro. Mas alcançar algo material não é interessante: não te diz nada de ti mesmo e não implica nenhum tipo de aprendizagem. Ao passo que aspirar a ser amado e conseguir sê-lo é interessante por acabas por aprender muito sobre ti mesmo e sobre a outra pessoa.”

“Iniciar uma relação é abrir a porta a mudanças e a transformações […] Conhecer profundamente uma pessoa é um dos maiores reptos da vida porque passamos. Exige muito esforço chegar a conhecer a e conhecer-se a fundo e costume envolver dor. O principal trabalho é olhar o outro a partir de outro ponto de vista, a partir de outros valores, e a não dar por certo que os nossos sejam imutáveis.”

 

 

Ao que tudo indica, no princípio, o ser humano começou por apreender a realidade vendo-a como um total indistinto. Essa forma absoluta de ver a realidade é mais tarde quebrada quando, ao entrar em contacto com outras pessoas, estabelecer uma comunidade, um horizonte pessoal e histórico, vai dar a possibilidade de a consciência se revelar nas suas dimensões estética, intelectual e ética.

Ou seja, por um lado o ser humano encontra-se imerso numa realidade de que faz parte que, só por isso, incorpora as leis do universo exterior, e por outro lado, através da consciência, transcende a variedade de estratos em que participa.

Encontra-se, assim, perante a dualidade existente entre o que chamamos o mundo dos fenómenos e o mundo do ser, mundo em que, transcendendo a multiplicidade dos objetos, vai eleger e escolher o que lhe pareça belo, verdadeiro e bom.

 

Há, portanto, como que uma dimensão intelectual da consciência que permite ordenar o fluxo da consciência a fim de descobrir a realidade (“este desejo de conhecer que se traduz pela busca da verdade, pela necessidade de compreender tudo o que nos rodeia, uma busca de sentido”) e aperceber que as primeiras manifestações que temos da consciência são as da independentização das finalidades biológicas (“verificamos que os nossos desejos nunca são só biológicos, que basicamente gostamos sempre de nos alindarmos nem que não seja para nos libertarmos da redução do imediato, da fúria do utilitarismo, podendo assim ficarmos mais livres para novos desafios”).

E uma consciência dramática surge da relação entre o eu e os outros: o momento de consciência na nossa vida moral verifica-se quando tomamos a decisão de viver como somos na comunidade que elegemos, tendo especialmente em consideração que o mais importante é como eu me comporto, não os princípios morais que possa formular.

 

Dito de outro modo, pode-se, assim, diferenciar entre um mundo dos objetos e um mundo do ser:

Os objetos que conhecemos fazem parte do mundo dos fenómenos, aquele em que a consciência coloca os objetos num mundo confiável, no qual podemos sair e entrar vezes sem conta, recordá-lo de olhos fechados, abrir os olhos porque eles ainda lá estarão: em resumo, colocados no espaço e no tempo.

Mas é no mundo do ser, que não é tão confiável, que foge à nossa frente, que temos os encontros decisivos da nossa vida: aí, medidas e comparações deixam de ser importantes. É neste mundo em que a consciência não sente nem como exterior nem como interior, que se dá o que se chama de reconhecimento.

 

O reconhecimento é uma capacidade humana derivada da sua estrutura psicofísica. Em virtude desta capacidade o homem enfrenta as realidades como tais, e não como meros estímulos, como é o caso dos demais seres vivos. O homem confronta-se com as coisas, com os outros e consigo próprio, como realidades perante as quais responde fazendo a sua vida, desenvolvendo a sua personalidade.

A estrutura psicossomática do homem não está fechada, o homem não nasce pré-determinado. Quer dizer que é o homem com a sua vida quem, instalando-se na realidade, vai encontrando as possíveis maneiras de enfrentar o real.

Por isso, a realidade humana tem um carácter aberto.

 

Sempre que nos relacionamos com outros, praticamos atos de reconhecimento. Esta relação da consciência com o outro, pode ser com outro ser humano, com um ser da natureza (a imaginação infantil com árvores ou outras forças da natureza, a relação com animais) ou com um ser divino sobrenatural.

 

Se esta intimidade faltar no nosso relacionamento com os outros, aquilo que estamos a fazer é tratá-los como objetos. Esta intimidade é talvez a melhor característica da humanidade.

 

Para melhor clarificar o que é o reconhecimento, socorro-me de excertos das lições do professor Mendo Henriques, pela sua clareza e síntese:

 

“O reconhecimento, na sua forma positiva, é o ‘dom criativo de oferecer e receber’, sendo simultaneamente um ato comunicativo na medida em que liga os sujeitos, um ato criativo na medida em que adquirimos identidade através dele, e um ato valorativo ao poder dar lugar a um apelo.

Como nunca sabemos em que momento vai ocorrer nem em que lugar, muito embora ele ocorra sempre em momentos e lugares muito concretos (´e naquela hora, naquele dia, numa celebração de passado, presente ou futuro, num lugar concreto, naquela casa, naquela ponte), o seu acontecer aparecer-nos-á como uma dupla surpresa. O inesperado do acontecimento e o espanto perante a surpresa de ser (afinal o universo não está assim tão alinhado e pré-determinado, ´e sempre possível de nos acontecer).

Claro que teremos de estar preparados, atentos, empenhados, para que essa mútua apropriação (entre o eu e o outro, seja o outro pessoa, natureza ou divino) que é o reconhecimento tenha lugar.

O reconhecimento vai envolver toda a pessoa, requisitando-a quer ao nível dos sentimentos (aqui entendidos como manifestação de um ato de reconhecimento, ou seja como sentimento provindo de uma verdadeira relação entre as pessoas e não só porque se tem sentimentos por outra pessoa) quer ao nível gestual (o gesto, todo e qualquer, é um indicador para nós e para o outro do que temos para dar e do que temos para receber, seja através de movimentos, posturas, sinais, particularmente o rosto e o olhar, que normalmente tudo dizem).

 Finalmente a linguagem é o elemento que vai permitir, através da palavra, transformar o reconhecimento em ação, palavra cada vez mais importante na medida em que nas sociedades atuais a cultura ser cada vez mais distração: é pela palavra que conseguiremos de novo habitar a Terra. Tudo isto dentro de uma comunidade, que sendo mais que uma sociedade, é o espaço de disponibilidade onde tudo isto se desenrola, onde permanentemente se dá e se oferece, se aceita e onde nos acolhemos, sem sombra de egoísmo.”

 

 

Essencialmente, trata-se de compreender a pessoa como uma realidade que permanece por constituição aberta a outras formas de realidade; contemplamos o outro como uma chamada pessoal que aguarda uma resposta nossa.

Isso só é possível com a renúncia da vontade de poder e domínio sobre os outros e com a abertura em verdadeira comunhão ao outro.

 

Reconhecer o outro não é uma luta para dele se apoderar, mas antes um encontro em comunhão não como vencedor, mas como “convencedor”, oferecendo-se e entregando-se. Assim como eu reconheço o outro, também o outro me reconhecerá a mim: trata-se de um reconhecimento mútuo, em que um é para o outro.

O reconhecimento não pode ficar pela constatação física de que o outro está ali: trata-se de um tipo de encontro totalmente diferente. Acreditar no outro é dar-lhe crédito, total confiança. E só quando esse acreditar for recíproco é que estaremos perante uma verdadeira relação de encontro entre o outro e eu.

Reconhecer o outro é, portanto, amá-lo incondicionalmente, descobrindo-o como um outro distinto de mim, e descobrindo-se mutuamente num mais além que se expressa na crença mútua e na vocação pessoal. É tornarmo-nos transparentes um ao outro, só assim sendo possível um mútuo reconhecimento que nos aproxima da pessoa do outro conforme a sua verdadeira vocação.

 

Esta é a versão cristã de reconhecimento, ideal para alguns como indicação do caminho para todos, e que de certo modo tem prevalecido na nossa sociedade.

 

 

Há, contudo, outras interpretações, a começar com a de Hegel. Para ele, a única relação interpessoal possível seria também a resultante do reconhecimento, mas sendo este entendido como luta para cada um se apropriar do outro, como condição de possibilidade para adquirir a sua própria liberdade.

O resultado dessa luta seria a instauração da relação entre o senhor e o escravo, que promoveria tanto a vontade de poder como a alienação despersonalizante.  Hegel limitou-se a constatar a chegada da contemporaneidade, onde dominam os valores empresariais.

 

 

 

 

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