(335) Os piores dos cegos
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O subcontinente indiano foi governado indiretamente pela East Indian Company desde 1757, e diretamente pela Coroa Inglesa de 1858 a 1947, durante 89 anos, perfazendo um total de 190 anos.
Na Índia, a retirada forçada de hindus de territórios muçulmanos e de muçulmanos de territórios hindus, originou uma das maiores migrações da história da humanidade, com resultados catastróficos.
Em 1978, o Partido Democrático do Povo de Afeganistão (PDPA), aboliu o uso da burca, concedeu às mulheres o direito ao divórcio e à propriedade, e promoveu a educação das raparigas.
Como é que os talibans, sem força aérea e sem nenhuma superpotência a suportá-los, sem equipamentos militares sofisticados, com um povo tido por iletrado, incapaz de identificar cores, que não distingue entre uma fonte de água para beber e um urinol, preguiçoso e corrupto, conseguiram em tão pouco tempo chegar a Cabul?
Esta desistência, deixando-os para trás, é para eles inexplicável: mais uns vinte, quarenta ou mais anos, e talvez fosse possível instaurar em todo o país, ou região, ou local, o que lá tinham ido fazer.
Foi a 20 de fevereiro de 1947 que o primeiro-ministro britânico, Clement Attlee, anunciou ao parlamento que a Inglaterra abandonaria a Índia antes de 30 de junho de 1948, mediante uma partição territorial a efetuar entre os muçulmanos do Paquistão e os hindus da Índia. Anunciou também que os dois países passariam a fazer parte da Commonwealth (a liga do Bem-Estar Comum, e não da Riqueza-Comum) como domínios independentes, tendo ainda o Ceilão recebido igualmente a promessa de independência para 4 de fevereiro de 1948.
Contudo, Londres nem sequer esperou que o prazo concedido expirasse, e dez meses antes, a 15 de agosto de 1947, o último vice-rei da Índia, Lord Mountbatten, transmitiu os seus poderes.
As tropas britânicas começaram a evacuar o país, deixando muçulmanos e hindus frente a frente. Dessa guerra religiosa provocada, resultarão mais de cem mil mortos, e cerca de quinze milhões de refugiados e migrantes esfomeados, dos quais meio milhão virá a morrer.
A retirada forçada de hindus de territórios muçulmanos e de muçulmanos de território hindu, originou uma das maiores migrações da história da humanidade, com resultados catastróficos. Massacres, fogo posto, conversões forçadas, raptos, violações (cerca de 75 mil mulheres violadas, muitas das quais foram depois desfiguradas ou desmembradas).
Segundo conta Nisid Hajari, no seu Midnight’s Furies: The Deadly Legacy of India’s Partition:
“Alguns soldados ingleses e jornalistas que tinham visto os campos de morte nazis, disseram que as brutalidades da Partição foram piores: mulheres grávidas a quem lhes foram cortados os peitos e retirados dos ventres os bebés; crianças assadas em espetos.”
O subcontinente indiano foi governado indiretamente pela East Indian Company desde 1757, e diretamente pela Coroa Inglesa de 1858 a 1947, durante 89 anos, perfazendo um total de 190 anos.
Em abril de 1978, um golpe de militares “progressistas” colocou no poder o Partido Democrático do Povo de Afeganistão (PDPA), que de imediato começou a tentar modernizar o país, nomeadamente no que diz respeito aos direitos das mulheres, abolindo o uso da burca, atribuindo o direito ao divórcio e à propriedade, e promovendo a educação das raparigas. Ao mesmo tempo iniciou a distribuição de terras pelos camponeses pobres e restringiu os poderes do clero muçulmano (mulás).
Em resposta, os mulás disseram aos camponeses que Alá enforcá-los-ia de cabeça para baixo para todo o sempre se eles permitissem que as mulheres andassem de rosto descoberto e se as raparigas fossem à escola. Estavam criados os ingredientes necessários para o que foi talvez a primeira guerra da história envolvendo direitos das mulheres.
A revolta cresceu especialmente fora das cidades, e o PDPA para sobreviver optou pelo aumento da repressão sobre os opositores, ao mesmo tempo que pedia ajuda militar à União Soviética. Com a situação a deteriorar-se, a União Soviética envia em 1979, 80.000 tropas para o Afeganistão.
Inteligentemente, os EUA exploram esta “invasão”, apelidando-a de “expansionismo global soviético”, boicotando os Jogos Olímpicos de 1980 em Moscovo, e aumentando a ajuda militar e monetária (3 biliões de dólares) aos Mujahidins, os “combatentes pela liberdade”.
No início de 1989, Gorbachev retira as tropas soviéticas do Afeganistão (razões económicas e políticas). Em 1991, a União Soviética desfaz-se. A ajuda soviética ao Afeganistão desaparece, e rapidamente o regime afegão do PDPA, apesar da resistência militar oferecida (cerco de Jalalabad) entra em colapso. Em 1992, os Mujahidins tomam Cabul.
Para além da anunciada retirada total de direitos às mulheres e raparigas que se lhe seguiu, a insegurança constante e permanente, as guerras tribais sucessivas, um estado de quase caos e total corrupção, levaram a que uma parte desses Mujahidins e outros afegãos que anteriormente se tinham refugiado no Paquistão, formassem um grupo de Talibans (tradução = estudantes), que em 1996 já controlavam a maior parte do país.
Note-se que os Talibans visavam apenas garantir segurança e estabilidade às pessoas, ao acabarem com as guerras tribais. O estatuto das mulheres e demais era exatamente igual ao seguido pelos Mujahidins, que, aliás, tinham sido tão apreciados por grande parte da comunicação social internacional quando combatiam os soviéticos como sendo os “puros representantes da verdadeira cultura ancestral do povo”.
Durante os anos do governo do PDPA, as raparigas que frequentavam o ensino e até algumas mulheres em Cabul podiam ser vistas a andar de minissaia (o que de certa maneira também define o nosso conceito de modernidade, liberdade e civilização). O seu brusco regresso à burca e a casa, não foi então visto, proclamado, nem chorado pela comunicação social da época.
O Los Angeles Times reconheceu a posteriori:
“As mulheres nas cidades do Afeganistão gozavam, provavelmente, de mais liberdade durante o regime de Cabul apoiado pelos soviéticos entre 1979 e 1992.”
Noventa por cento dos americanos aprovaram que os EUA atacassem o Afeganistão, 65 por cento não sentiam desconforto com a possibilidade de serem mortos afegãos civis, e só 22 por cento julgavam que a guerra duraria mais de dois anos.
Segundo a Forbes e a Brown University (“Cost of War”), nestes vinte anos morreram 2.500 militares americanos, 4 mil prestadores de serviços, 69 mil polícias militares, 47 mil civis e 51 mil combatentes inimigos.
Nestes vinte anos, os EUA gastaram mais de 2 triliões de dólares, o que dá 300 milhões por dia, o que permitiria dar a cada um dos 40 milhões de habitantes do Afeganistão, 50 mil dólares. Tal como no Vietname, em que os cálculos dariam para cada vietnamita ficar com uma casa equipada com eletrodomésticos e um carro, teriam ganho a guerra.
Para quem se queira inteirar com mais pormenor porque é que vinte anos depois dos EUA terem corrido do poder os talibans em 2001 acabaram por assistir á sua renovada instalação no palácio presidencial em Cabul em 2021, aconselho a leitura do livro exaustivo de Craig Whitlock, The Afghanistan Papers: A Secret History of the War.
Ficar-se-á a perceber (as mentiras, as incompetências e corrupções, desilusões e negações, cobardias institucionais, etc.) porque é que os talibans, sem força aérea e sem nenhuma superpotência a suportá-los, sem equipamentos militares sofisticados, com um povo tido por iletrado, incapaz de identificar cores, que não distingue entre uma fonte de água para beber e um urinol, preguiçoso e corrupto, utilizando apenas os mesmos argumentos que anteriormente usara, ou seja, a segurança e a estabilidade, conseguiram em tão pouco tempo chegar a Cabul.
As descolonizações (pois é disso que se trata) trazem sempre consigo estes dramas humanos quase sempre trágicos ao nível individual, em que alguns poucos acreditaram, se convenceram ou foram convencidos que eram iguais aos que os colonizavam, qual canários que postos numa gaiola chilreiam alegre e entusiasticamente julgando que estão livres.
Alguns, com sorte, talvez por terem pele clara e falarem a língua dos colonos, mais possíveis de assimilar, mas mais exatamente por serem em número pequeno, acabam colocados à frente dos outros vários milhões de deslocados que se encontram retidos nos vários campos de refugiados criados para o efeito.
Individualmente, cada um quer é saber do seu caso (e isso já é sinal de assimilação cultural): não presenciaram eles a entrada de tropas estrangeiras que julgavam ser apenas para dirigir o trânsito? De aviões e foguetes apenas para iluminar os céus? As mortes que eram sempre longe das cidades, escondidas, sempre de outros desconhecidos, e que provavelmente tinham como merecidas, até porque acabariam por acontecer naturalmente, pela idade ou por doença, ou porque não contavam para a contabilidade oficial.
Esta desistência, deixando-os para trás, é para eles inexplicável: mais uns vinte, quarenta ou mais anos, e talvez fosse possível instaurar em todo o país, ou região, ou local, o que lá tinham ido fazer. E o que tinham lá ido fazer?
Proteger os direitos das mulheres e crianças. Transformar o “Me too” no “You too”. Por o não terem feito na década de 70. Também na altura não se tinha ainda dado o “Me too” e não sabiam que os direitos das mulheres eram tão importantes. Agora que sabem, vão-se retirar de cá para invadirem outros países onde as mulheres não têm direitos. Agora é que é.
Nós temos um provérbio para estas (e outras) situações: “Não há pior cego do que aquele que não quer ver”.
Relembro um discurso do general Eanes, já Presidente da República, quando, para justificar uma sua tomada de posição que contrariava o desejado por forças de esquerda, dizia (cito de memória):
“Se o povo português é conservador, pois há que sê-lo.”
Esta sintonia (evidentemente nem sempre conseguida), mais este pensamento, este cuidado com algumas maneiras de ser, por vezes aspirações, de algo que não se sabe muito bem o que é mas que permanece como inconsciente coletivo por um tempo sempre superior ao individual, e por isso tido como intemporal, em parte explicado por Marc Ferro quando fala sobre o ressentimento na história (blog de 08 de janeiro de 2020), mas tão bem apreendido pelo poeta grego Constantino Cavafy há 111 anos, com o seu “À espera dos bárbaros”, e que aqui de novo reproduzo numa tradução de Jorge de Sena:
O que esperamos nós em multidão no Fórum?
Os Bárbaros, que chegam hoje.
Dentro do Senado, porque tanta inação?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis haviam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.
Porque é que o Imperador se levantou de manhã tão cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?
Porque os bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.
E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
Hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?
Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.
E porque não vieram aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?
Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.
Porque, sùbitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?
Porque a noite caíu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.
E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.