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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(334) Eu e a minha Réplica

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

O teletransporte de seres humanos é um meio mais rápido de viajar?

 

Pode a individualidade (identidade) ser possível de ser programada como se fosse um bife?

 

Se uma pessoa tiver uma continuidade psicológica comigo tal como eu sou agora, e se essa continuidade tiver por base um mesmo cérebro, então essa pessoa serei eu.

 

Se alguém acordar um dia mais tarde com a minha cabeça, e for psicologicamente como eu, o facto de essa pessoa não ser eu não terá qualquer efeito prático ou moral para mim.

 

 

 

 

Quando abordei o teletransporte de humanos (18de setembro de 2019, Beam me up!), fi-lo mais com a intenção de mostrar que tal só seria possível de realizar se considerássemos que todos os seres vivos, neste caso os seres humanos, pudessem, na sua totalidade e singularidade, serem traduzíveis (reduzíveis) a um padrão de informação, por uma expressão matemática.

O teletransporte de humanos assenta no pretenso facto de nos terem feito acreditar que o cérebro tem uma atuação lógica, como tal possível de ser ‘descoberta’, reproduzida e melhorada. A tal ‘ilusão’ de uma Inteligência Artificial igual e melhor que o cérebro e que, fatalmente, acabará por conduzir a um cérebro reduzido a “pensar” como a IA. Tudo então poderá ser matematizável.

Tentava assim chamar a atenção para aqueles que pretendem que nos fixemos apenas na parte do conhecimento matemático das coisas, por isso lhes permitir avançar mais rapidamente para o que lhes possa propiciar mais e maiores lucros, ou para a realização de objetivos pessoais egoístas.

 

Evidentemente, não se culpe a matemática. Por si, a matemática desenvolve uma forma de linguagem e pensamento que serve de base para as ciências naturais e tecnológicas.

A matemática é uma das formas que temos para tentar entender o mundo, o que não significa que o mundo seja uma construção matemática que exista fora de nós e a que só alguns privilegiados têm acesso.

 

 

Deixei, contudo, de fora, o principal problema que o teletransporte de seres humanos coloca, o da identidade pessoal.

 

Vejamos na prática (se, e quando for possível) como seria o processo do meu teletransporte para Marte. Premindo um botão, a máquina destruía o meu corpo, enquanto procedia à exata gravação de todos os estados de todas as minhas células. Esta informação seria enviada para Marte por um sinal de rádio, onde uma outra máquina faria, a partir de materiais orgânicos, uma cópia perfeita do meu corpo. A pessoa que acordasse em Marte parece que se recordaria de toda a minha vida vivida até ao momento em que premira o interruptor, e era em todos os parâmetros, igual a mim.

Perante este “simples” processo, surgem logo duas interpretações diferenciadas: uma, vê isto apenas como uma maneira mais rápida de viajar. Outra, entende que isto é um erro, porquanto a pessoa que acorda em Marte é apenas uma réplica de mim, porquanto eu teria deixado de existir:

 

Se a consciência (o que quer que seja) fosse possível de ser ‘scaneada (neste caso, talvez ‘sacaneada’ fosse o mais correto), destruída (porque neste processo há sempre um instante em que desaparecemos, ou seja, em que nos encontramos mortos) e depois reproduzida como se tratasse de um mero e inanimado bife, então a individualidade (identidade) seria também possível de ser programada, deixando, portanto, por definição, de ser individualidade.”

 

Estas duas interpretações expressam o desacordo sobre o que é a identidade pessoal, que só poderá ser resolvido (as boas intenções) pelo estabelecimento de um critério sobre o que é a identidade pessoal ao longo do tempo, ou seja, o que faz com que uma pessoa num determinado tempo seja a mesma pessoa noutro tempo.

Para uns, o que nos define, a nossa parte essencial, é uma alma: uma entidade imaterial persistente, indivisível, de existência continuada.

Para outros, uma pessoa é definida como “um ser inteligente pensante que tem raciocínio e reflexão e que pode ver-se a si mesmo como sendo si mesmo, a mesma coisa pensante em diferentes tempos e locais” (John Locke, Essay Concerning Human Understanding, Livro II, capítulo XXVI, Secção 9), critério que se baseia numa espécie de continuidade psicológica.

 

Este critério levanta alguns problemas: se as pessoas são entidades que podem pensar sobre elas próprias, e cuja existência continuada implica essencialmente uma continuidade psicológica, então um embrião humano ou feto, não é uma pessoa.

E, contudo, o feto é um “animal humano”, um corpo animal que posteriormente virá a ser um corpo de pessoa.

Esta distinção entre “pessoa” e “animal humano”, conduz ao que chamado Problema dos Muitos Pensadores (a “pessoa” tem alguns pensamentos, mas o “animal humano” também tem alguns pensamentos, pelo que um pensamento tem dois diferentes pensadores) e que pode levar à conclusão absurda de poder haver duas vidas no mesmo ser.

 

Por sua vez, tal conduz a um Problema Epistémico: se há duas consciências, a da pessoa e do animal, a pensarem todos os meus pensamentos, como é que eu posso saber qual deles sou eu?

 

Outro problema é posto por aqueles que acreditam que nós continuamos a existir se e apenas enquanto o nosso corpo continuar a existir, portanto enquanto formos corpo do animal vivo. O que nos leva ao Problema da Cabeça Transplantada: se o meu corpo morrer, a minha cabeça pode ser transplantada para outro corpo que tenha ficado sem cabeça, pelo que o outro corpo pode acordar com a minha cabeça, sendo psicologicamente como eu, acreditando que sou eu.

Ou seja, o critério para se aceitar tal experiência continua a ser baseado na continuidade psicológica do cérebro.

 

Aqui, devemos distinguir entre o cerebrum (telencéfalo), parte superior da qual depende toda a nossa atividade mental distinta, e a outra parte (tronco encefálico) que controla o funcionamento do coração, pulmões, e da maior parte dos outros órgãos, que permite que nós como animal humano continuemos a existir num estado vegetativo inconsciente, ou coma.

O que nos remete para o caso da Cabeça Sobrevivente, em que a minha cabeça e cerebrum não foram unidas ao tronco encefálico e ao corpo de outra pessoa, mas que são mantidos vivos e a funcionar ligados a um sistema artificial de suporte de vida.

Neste caso estamos perante um ser consciente que seria uma pessoa (psicologicamente continuada), mas que como a sua base de suporte de vida era totalmente artificial, não teria nenhuma parte animal.

 

 O psicólogo William Carter, em “How to Change Your Mind”, põe a seguinte questão:

 

Imaginemos que o cérebro do Presidente Nixon é transplantado para a cabeça vazia (crânio) do Senador McGovern. O espírito de Nixon passa a ser o espírito de McGovern. Então o espírito de Mcgovern passa a lembrar-se como sendo uma pessoa que embarcou num helicóptero depois de se ter demitido como Presidente. E passa também a ter uma certa responsabilidade moral por Nixon ter decidido bombardear o Camboja. Poderá McGovern ser levado a tribunal e responsabilizado pelas ações de Nixon?

 

Isto porque para Carter, as nossas decisões são feitas pelos nossos espíritos. O que leva a quem possa concluir que nós somos apenas cabeça. Cabeças postas em corpos. Para sobrevivermos será suficiente que as nossas cabeças sobrevivam para continuarmos a ser a cabeça de um ser consciente. O corpo abaixo da cabeça não é uma parte essencial.

Recordemos o caso de Nancy Cruzan, cujo cerebrum deixou de funcionar, mas em que q parte inferior do cérebro manteve o seu corpo num estado vegetativo durante sete anos, até que o Supremo Tribunal dos EUA autorizou os pais a poderem desligar o tubo de alimentação artificial. Na pedra tumular, os pais escreveram:

 

Deixou-nos a 11 de janeiro de 1983. Ficou em paz a 26 de dezembro de 1990”.

 

Voltemos agora ao caso com que iniciámos este artigo: o do teletransporte e do problema da identidade pessoal. Depois de todas as complicadas hipóteses acima levantadas, devemos notar que na realidade, no caso de virmos a ser destruídos e replicados, aquilo que a Réplica venha a ser não tem para nós qualquer importância, porque nós não vamos voltar a acordar de novo. Não vale a pena, portanto, a preocupação.

O mesmo se passa quando estivermos para perder a consciência, por uma anestesia ou outra razão: não vale a pena termos a preocupação de sabermos se vamos ou não voltar a acordar. As preocupações para com esse futuro não têm qualquer razão de ser, pelo simples facto que isso será o nosso futuro. O mesmo se passa com a preocupação respeitante à morte.

 

Ou seja, a identidade pessoal não é assim tão profunda, importante e simples, como vulgarmente se pensa. Se alguém acordar um dia mais tarde com a minha cabeça, e for psicologicamente como eu, o facto de essa pessoa não ser eu não terá qualquer efeito prático ou moral para mim.

 

Quando Descartes perguntou o que é que ele podia com toda a certeza saber:

 

Eu penso, logo existo

 

O que Descartes concluiu foi que podia saber que ele era uma substância imaterial pensante. O que o seu Cogito deixou em aberto foi que qualquer pensamento devia ter um pensador.

E parece-me que não adiantámos muito, de então para cá.

 

Estes breves e básicos apontamentos aqui deixados têm como base um excelente artigo de Derek Parfit, publicado na Cambridge University Press, intitulado “We Are Not Human Beings (Nós não somos seres humanos).

 

 

 

 

 

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