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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(324) Grau zero da arte

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

“Eu sou”, a escultura invisível que Salvatore Garau justifica dizendo que o vazio não é mais que um espaço cheio de energia.

 

“Estes são os meus princípios. E se não gostarem deles … tenho outros”, Groucho Marx.

 

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido, afastou-se numa representação, Guy Debord.

 

Separada das coisas, a linguagem nada comunica. Nada há para comunicar salvo a comunicação.

 

O “like” é tido como o símbolo e também como o analgésico do presente: nada deve doer, a vida tem de poder mostrar-se no Instagram, ou seja, carecer de arestas, conflitos e contradições que possam ser dolorosas, Byung-Hul Chan.

 

 

 

 

O vazio não é mais que um espaço cheio de energia, mesmo se inclusivamente o esvaziarmos e nada restar, segundo o princípio de incerteza de Heinsberg de que o nada tem um peso. Tem, portanto, uma energia que se condensa e se transforma em partículas, quer dizer, em nós”, foi assim que o artista Salvatore Garau justificou a sua escultura invisível, “Io sono” (‘Eu sou’), que vendeu neste final de maio de 2020 por 15.000 euros.

Ainda segundo ele, “quando decido exibir uma escultura imaterial num espaço determinado, esse lugar concentrará uma certa quantidade e densidade de pensamentos num ponto preciso, criando uma escultura que a partir do meu título tomará formas variadas. Depois de tudo, não damos nós forma a um Deus que nunca vimos?

 

Não foi a primeira vez que Garau expôs obras imateriais. Em fevereiro colocou na Piazza della Scala, em Milão, uma peça intitulada “Buda em contemplação” ("escultura que não se vê, mas existe. Não é uma provocação, é uma obra que quer estimular reflexões íntimas, uma obra minimalista, ′'franciscana', dedicada a todos aqueles que se sentem cada vez mais ausentes do consórcio humano nos últimos meses"), que obrigou à marcação no chão de um quadrado pintado para que as pessoas não esbarrassem com a estátua que não se via.

E não será a última vez, porque, diz ele, tem já projetadas mais sete: “A escultura imaterial “Afrodite chora” será exibida no coração de Nova Iorque, frente ao Federal Hall (onde G. Washington foi eleito primeiro presidente dos Estados Unidos) e a uns passos da Bolsa. Será a terceira das sete que colocarei noutras tantas cidades do mundo. Sete porque é um número espiritual por excelência e tem um valor especial em todas as grandes religiões, judia, cristã, muçulmana e budista. A espiritualidade sempre me fascinou, ainda que na arte contemporânea seja um tema que não parece despertar grande atração, mas para mim, agora, parece-me revolucionário”.

 

 

Em 1967, Guy Debord, iniciava a sua obra A sociedade do espetáculo, da seguinte forma:

 

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido, afastou-se numa representação.

 Passava depois a explicar o que constituía a tese central segundo a qual, na fase extrema do capitalismo, a mercantilização alcançaria o seu ponto mais alto, o que faria desaparecer não só todo o valor de uso do dinheiro, como transformaria a sua própria natureza.

 O dinheiro deixaria, portanto, de ser simplesmente “o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias”, ainda dotadas de algum valor de uso, transformando-se na categoria de espetáculo: “o espetáculo é o dinheiro que se olha somente, pois nele é já a totalidade do uso que se trocou com a totalidade da representação abstrata”.

Com esta análise, Debord pretendia dizer que o dinheiro deixava já de ter qualquer relação com uma quantidade concreta de metal, porquanto se tinha transformado numa mercadoria absoluta em que ele próprio passava a ser mercadoria, profecia do que viria na realidade a acontecer 4 anos depois quando Nixon acabou com o padrão-ouro.

 

Mais importante vai ser a equiparação que sugere que se estabelece entre o dinheiro como pura mercadoria e a linguagem na qual também se tivesse quebrado o nexo com o mundo.

 Tal como ao longo de séculos, o que permitia ao dinheiro desempenhar a sua função de equivalente universal do valor de todas as mercadorias era a sua relação com o ouro, também o que assegura a capacidade comunicativa da linguagem é a intenção de significar, ou seja, a sua referência efetiva à coisa. Se este nexo desaparecer, a linguagem nada diz.

O meio que torna possível o intercambio, não pode ser ele mesmo o que se intercambia: o dinheiro que mede as mercadorias, não pode ele próprio converter-se numa mercadoria. A linguagem que permite que as coisas se tornem comunicáveis, não pode ela própria converter-se numa coisa, objeto de apropriação e de intercambio. Separada das coisas, a linguagem nada comunica. Nada há para comunicar salvo a comunicação.

É o que acontece à linguagem humana quando já nada tenha para comunicar, apresentando-se como “comunicação do incomunicável” (tese 192):

 

O consumo espetacular que conserva a antiga cultura congelada, compreendendo nela a repetição recuperada das suas manifestações negativas, torna-se abertamente no seu setor cultural o que ele implicitamente é na sua totalidade: a comunicação do incomunicável. A destruição extrema da linguagem pode encontrar-se aí insipidamente reconhecida como um valor positivo oficial, pois trata-se de apregoar uma reconciliação com o estado dominante das coisas, no qual toda a comunicação é alegremente proclamada ausente. A verdade crítica desta destruição enquanto vida real da poesia e da arte modernas está evidentemente escondida, porque o espetáculo, que tem a função de fazer esquecer a história na cultura, aplica na pseudo-novidade dos seus meios modernistas a própria estratégia que o constitui em profundidade. Assim pode dar-se por nova uma escola de neo-literatura, que simplesmente admite contemplar o escrito para si próprio. Aliás, ao lado da simples proclamação da beleza suficiente da dissolução do comunicável, a tendência mais moderna da cultura espetacular – e a mais ligada à prática repressiva da organização geral da sociedade – procura recompor, através de «trabalho de conjunto», um meio neo-artístico complexo a partir dos elementos decompostos; nomeadamente nas procuras de integração dos detritos artísticos ou de híbridos estético-técnicos no urbanismo. Isto é a tradução, no plano da pseudocultura espetacular, deste projeto geral do capitalismo desenvolvido que visa ocupar-se do trabalhador parcelar como «personalidade bem integrada no grupo», tendência descrita pelos recentes sociólogos americanos (Riesman, Whyte, etc.). É em toda a parte o mesmo projeto de uma reestruturação sem comunidade.

 

 

 

Relembre-se ainda a citação inicial de Debord:

 

E sem dúvida o nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser … O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado”, Fuerbach, prefácio à 2ª edição de A Essência do Cristianismo.

 

 

Passados cinquenta anos, parte do que Debord nos intentou comunicar torna-se agora mais percetível pela forma como a sociedade se desenvolveu, como bem capta Byung-Chul Han quando começa por caraterizar o que ele chama de cultura da complacência da sociedade do “like” (“eu gosto”).

Vítima de um delírio de complacência, em que tudo se aplaina e lustra por forma a ficar agradável, o “like” é tido como o símbolo e também como o analgésico do presente: nada deve doer, a vida tem de poder mostrar-se no Instagram, ou seja, carecer de arestas, conflitos e contradições que possam ser dolorosas.

Toda esta positividade acumulada, todo este bem-estar formado por escórias de cultura, vai formando uma cultura da complacência que acaba transformada em cultura.

 

A cultura da complacência explica-se principalmente pela comercialização e mercantilização da cultura. Os produtos culturais estão cada vez mais submetidos à pressão do consumo, tendo que assumir uma forma que os torne consumíveis, ou seja, agradáveis.

Esta conversão da cultura em economia vem acompanhada da conversão da economia em cultura. Assim, os bens de consumo trazem também uma mais-valia cultural, prometendo vivências culturais e estéticas, em que o desenho passa a ser mais importante que o valor de uso.

A esfera do consumo invade a esfera cultural. Os bens de consumo apresentam-se como obras de arte. Desta forma misturam-se as esferas da arte e as do consumo, o que faz com que a arte se sirva também da estética do consumo. Torna-se agradável. Torna-se indistinta a separação entre cultura e comércio, entre arte e consumo, entre arte e propaganda. Os próprios artistas veem-se forçados a registarem-se como marcas. Ajustam-se ao mercado e tornam-se complacentes para serem agradáveis. Para fazerem dinheiro.

 

O “Nu Deitado”, de Modigliani, foi arrematado por 170 milhões de dólares, o “Rabbit”, de Jeff Koons, por 91 milhões de dólares, o “Orange, Red, Yellow”, de Mark Rothko, por 86,9 milhões de dólares, e até mesmo a gigantesca escultura de uma aranha a que carinhosamente Louise Bourgeois chamou Maman”, bateu um novo recorde ao alcançar 32 milhões de dólares. Até as mais do que ameaçadoras aranhas gigantes resultam tremendamente decorativas.

 

Salvatore Garau deveria ter pedido muito mais pela sua escultura. Mas percebe-se: a aranha era feita de aço, cobre e mármore, ao passo que a “Io sono” era de partículas quânticas de energia e mesmo assim dependentes da oportunidade e forma de ver de cada um. Bastante mais leve.

 

O alcance e validade da obra de Debord percebe-se mais claramente com dois exemplos práticos atuais:

Caso Assange – deixou de ser sobre os crimes de guerra praticados por militares, passando a incidir sobre o próprio Assange.

Caso Donziger - deixou de ser sobre os equatorianos vítimas das grandes companhias petrolíferas, passando a incidir sobre o próprio Donziger, o advogado de defesa.

 

 

 

 

 

 

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