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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(320) As raças variam à vontade dos donos

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Sou perseguido por chimpanzés humanos que vejo ao longo de centenas de milhas deste país horrível (Irlanda) […] ver chimpanzés brancos é assustador; se ao menos fossem pretos, não os veríamos tanto, Charles Kingsley.

 

Porquê aumentar os Filhos da África, plantando-os na América, quando temos uma oportunidade tão boa, ao excluirmos todos os negros e morenos, para aumentar os adoráveis ​​brancos e vermelhos? Benjamin Franklin.

 

Pelo simples exercício do nosso desejo, podemos exercer um poder praticamente sem limites […] Exterminemos todos os brutos! Kurtz, no Coração das Trevas, Joseph Conrad.

 

 

 

 

 

 

Charles Kingsley (1819-1875), padre progressista da Igreja de Inglaterra, professor universitário de História Moderna em Cambridge, defensor do socialismo cristão, amigo e correspondente de Charles Darwin, foi uma das poucas pessoas a quem Darwin enviou, para revisão, uma cópia antecipada de Sobre a Origem das Espécies, que inclusivamente o levou a inserir na segunda edição as opiniões de Kingsley sobre o trabalho.

Contudo, Kingsley, anglo-saxónico convicto, acreditava, por exemplo, que os antepassados dos anglo-saxões, dos nórdicos e dos germanos tinham efetivamente lutado debaixo da bandeira de Ódin, o deus, e que isso fazia com que a monarquia inglesa descendesse geneticamente desse deus.

Compartilhava também da opinião generalizada que a classe alta inglesa tinha sobre os irlandeses como seres de outra espécie que não a humana. Numa carta dirigida à mulher, durante uma visita à Irlanda em 1860, escreveu:

 

Sou perseguido por chimpanzés humanos que vejo ao longo de centenas de milhas deste país horrível (Irlanda) […] ver chimpanzés brancos é assustador; se ao menos fossem pretos, não os veríamos tanto, mas as suas peles, exceto quando queimadas pela exposição, são tão brancas como as nossas.

 

 

Benjamin Franklin (1706-1790), um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, uma das personagens mais ecléticas e empreendedoras de sempre, foi sem dúvida uma das mentes mais abertas e progressistas da época, tendo começado a partir de 1750 a opor-se à escravatura, acabando por se tornar abolicionista, e promover a educação e a integração dos negros na sociedade americana.

Duas pequenas curiosidades sobre a sua personalidade, que ainda hoje poderiam fazer dele um nosso contemporâneo: Franklin era vegetariano. Uma das primeiras vezes que a palavra “tofu” aparece num documento em inglês, é exatamente numa carta enviada por ele ao diplomata e comerciante especializado na China, James Flint, na qual pedia que lhe explicasse como era feito o “tofu”.

A outra, refere-se ao desentendimento que teve com a sua mulher, Deborah, por ela não ter querido vacinar o filho Francis contra a varíola, o que acabou por lhe ocasionar a morte.

 

Em 1751, Franklin, que na altura ainda era um leal súbdito do Império Britânico, escreveu um pequeno ensaio, Observations Concerning the Increase of Mankind, Peopling of Countries, etc. (Considerações Relativas ao Aumento da População Humana, Povoamento dos Países, etc.), no qual pretendia demonstrar que para a Inglaterra aumentar o seu poder e a sua população, deveria expandir-se para as Américas, uma vez que a Europa estava já densamente povoada.

Segundo estudiosos, este seu trabalho foi fundamental para o aparecimento da ciência da demografia, e era tão inovador que veio a influenciar Adam Smith (que inclusivamente o cita), David Hume, Thomas Malthus, e até Charles Darwin.

Nele, previa a possibilidade do crescimento exponencial da população nas colónias inglesas (que duplicaria em cada 25 anos), pelo que se tornava necessário proceder a uma colonização que deveria vir de Inglaterra para assegurar a manutenção da mesma linguagem, dos mesmos costumes e religião, em suma, da civilização inglesa.

Contrariava também as políticas protecionistas da Inglaterra relativamente à América, bem como a política seguida da escravatura, porquanto ela conduziria à diminuição da saúde e da vitalidade da nação, para além de economicamente o seu custo ser sempre maior que o do trabalho livre:

 

“[…] Os negros trazidos para as ilhas inglesas do açúcar diminuíram aí em muito o número de brancos […] Os brancos que têm escravos, ao não trabalharem, enfraquecem, e, portanto, geralmente não são tão prolíficos; os escravos, trabalhando demais e sendo mal alimentados, ficam com as suas constituições quebradas, e as mortes entre eles são superiores aos nascimentos; de modo que se torna necessário um abastecimento contínuo de escravos vindo de África. Nas colónias do Norte, como têm poucos escravos, o número de brancos aumenta. Os escravos também fragilizam as Famílias que os usam; as crianças brancas tornam-se orgulhosas, têm aversão ao trabalho e, educadas na ociosidade, tornam-se incapazes de ganhar a vida pela indústria.

 

Quanto às pessoas que deveriam vir para colonizar, Franklin tinha ideias muito claras:

 

[…] O número de pessoas puramente brancas no mundo é proporcionalmente pequeno. Toda a África é preta ou morena. A Ásia é principalmente morena. A América (excluindo os novos chegados) também. E na Europa, os espanhóis, italianos, franceses, russos e suecos são geralmente o que chamamos de compleição morena; como também os alemães, exceto os saxões, que, com os ingleses, constituem o principal Corpo de Pessoas Brancas na Face da Terra. Eu gostaria que os seus números aumentassem. E embora estejamos, como posso chamá-lo, vasculhando o planeta, limpando a América dos bosques e, fazendo assim com que este lado do nosso globo reflita uma luz mais brilhante para os olhos dos habitantes de Marte ou Vénus, por que deveríamos, à vista de Seres Superiores, estar a escurecer o nosso Povo? porquê aumentar os Filhos da África, plantando-os na América, quando temos uma oportunidade tão boa, ao excluirmos todos os negros e morenos, para aumentar os adoráveis ​​brancos e vermelhos?

 

 

Joseph Conrad (Józef Teodor Konrad Korzeniowski), súbdito do czar russo, nascido na Polónia em 1857, falecido em 1924 como cidadão inglês, é considerado um dos maiores novelistas da língua inglesa. O seu estilo narrativo e os seus figurantes caracteristicamente anti-heróis, levam-no a uma fácil aceitação pelo público em geral: recordemos Lord Jim.

Tripulante desde muito novo de navios mercantes franceses e ingleses, os seus pequenos contos e novelas refletem alguns dos aspetos do imperialismo e do colonialismo de um mundo dominado pelos europeus.

Coração das trevas, (Heart of Darkness), publicado em 1899, narra a viagem ao longo do rio Congo na procura do Estado Livre do Congo. Ainda ancorado em Londres no Tamisa, Charles Marlow conta aos amigos a história do bem-sucedido traficante de marfim, Kurtz. E embora para Conrad, Londres representasse “a maior cidade do mundo” e África o lugar das trevas, para ele havia pouca diferença entre “as pessoas civilizadas” e os “selvagens”.

Uma das bens sucedidas adaptações cinematográficas desta obra foi a de Francis Ford Coppola, em 1979, Apocalypse Now, em que o Congo é substituído pelo Vietname e pelo Camboja, numa viagem através do rio com a missão de matar o coronel Kurtz.

Eis o que Conrad pôs Marlow a dizer sobre a colonização de África:

 

Foi só roubo com violência, assassinato agravado em grande escala ... a conquista da terra, que em grande parte significava tirá-la a quem tinha uma pele diferente da nossa ou um nariz ligeiramente mais achatado que o nosso, não é uma coisa bonita quando se está lá para se ver. O que o redime é apenas a ideia. Uma ideia por detrás disso; não uma pretensão sentimental, mas uma ideia; e uma crença altruísta na ideia - algo que você pode criar, se pode curvar diante e oferecer um sacrifício para ...”

 

Na prática, isso é expresso por Kurtz quando declara:

 

Pelo simples exercício do nosso desejo, podemos exercer um poder praticamente sem limites […] Exterminemos todos os brutos!

 

 

Tudo isto vem a propósito de uma muito recente mini-série (4 episódios) de Raoul Peck para a HBO, sobre a colonização, escravatura, genocídio, imperialismo e nacionalismo branco, a que deu o título Exterminate All the Brutes.

Os autores acima citados são visitados por Peck, talvez devido às relações mais próximas que têm com a sociedade de língua inglesa. Relembremos que o padre Charles Kingsley, encontrava-se de visita à Irlanda na época em que os ingleses estavam a colonizá-la, o que implicava a consequente aceitação e despromoção dos seus habitantes a “não-brancos”.

Com a forte imigração de irlandeses para a América e com a independência da colónia, os irlandeses acabaram por virem a ser promovidos a “brancos”, o que para Franklin não constituiria qualquer impedimento, uma vez que o “seu” sistema de classificação deixava abertura suficiente para que fosse o interesse da nação decidir.

Foi também assim no regime do apartheid da África do Sul, quando decidiu que afinal os imigrantes japoneses por serem suficientemente leais poderiam passar a “brancos honorários”; foi também assim que os judeus, a partir da visita em 1949 de D. Roosevelt à nóvel nação, passaram de “comedores de traças“ e de “gordurosos” para terem “beleza física, vitalidade saudável, boa educação, boa natureza”, especialmente quando comparados com os Árabes conotados como “tão perigosos como muitos dos índios norte-americanos”, e portanto não-brancos com “doenças, maus cheiros, cheios de parasitas”.

O mais notável exemplo sobre diferenciação de raças é o que foi dado pelos nazis alemães, que após gastarem anos e dinheiro a estudarem e a investigarem como os judeus constituíam uma raça aparte com características próprias, acabaram por terem de os obrigar a usar uma estrela bem visível no vestuário, para assim os poderem distinguir…

 

Sem pretender recuar até ao padre António Vieira, a Frei Bartolomeu de las Casas ou a Francisco de Vitoria (Relecciones sobre los Indios y el derecho de guerra) na denúncia das selvajarias praticadas nas colónias, talvez seja interessante referir o bastante mais próximo Pierre Savorgnan de Brazza e o seu famoso relatório oficial sobre as condições que encontrou no Congo francês entre 1905 e 1907.

Face ao clamor internacional expresso nos jornais europeus sobre as violências praticadas no Estado Independente do Congo (o futuro Congo belga), propriedade privada com poderes absolutos do rei dos belgas Leopoldo II, relacionados com os abusos da “borracha vermelha” (de sangue), o ministro das Colónias francês, resolveu mandar fazer um relatório sobre o que se passava com o Congo francês, para demonstrar que a colonização francesa era exemplar e nada tinha que ver com a belga.

Nesse relatório, Brazza, para além das sevícias normalmente praticadas, pronunciou-se sobre a responsabilidade dos funcionários, a organização financeira da região, o seu regime comercial, as concessões territoriais (o Estado francês confiara a quarenta sociedades privadas a exploração da maior parte do território), os trabalhos públicos, propondo algumas reformas.

 

Das várias situações apontadas por Brazza, algumas foram relatadas na imprensa da época, como o do chamado caso «Gaud e Toqué», em que o administrador Geoges Toqué denuncia o comissário dos negócios indígenas, Fernand Gaud, conhecido entre os africanos com “a besta feroz”, por nos festejos do 14 de julho de 1903, ter feito explodir um prisioneiro condenado a ser fuzilado, introduzindo-lhe no ânus um cartucho de dinamite.

Outra situação recorrente era a de utilização de mulheres e crianças como reféns ou prisioneiras para conseguirem que os homens trabalhassem na recolha de borracha. Conhecido como O escândalo das mulheres de Bangui, 58 mulheres e 10 crianças foram conduzidas, entre maio e junho de 1904, ao posto administrativo de Bangui, onde ficaram como reféns por forma a obrigarem os homens a recolherem a borracha para a Companhia Lobaye. Sem alimentação, sobreviveram apenas 13 mulheres e 8 crianças. Todas as outras morreram de fome.

Durante as inquirições, os intervenientes negaram que tivessem ficado com as mulheres como reféns, mas porque as tinham encontrado a vaguear pela floresta e para as proteger resolveram trazê-las.

Idêntico caso foi conhecido em maio de 1905, envolvendo 119 mulheres de Krébedjé.

Também assinalado, foi conhecido como O escândalo da M’poko, segundo o qual o norueguês Gulibrand Schiotz, diretor responsável da Companhia M’poko, afirmava a sua autoridade matando a golpes de chicote mulheres e crianças, lançando em seguida os cadáveres ao rio. Impunemente, os guardas armados da empresa sequestravam, castigavam, torturavam e executavam pessoas.

 

Mediante estes e outros casos que Brazza não calou no seu relatório, o Ministro das Colónias que contava com ele para demonstrar que os métodos da colonização francesa eram exemplares face aos belgas, decidiu a 7 de maio de 1907, mandar imprimir “10 exemplares devidamente numerados, destinados a permanecerem confidenciais”. Um dos exemplares seria para o ministro, e os outro nove permaneceriam no cofre forte do ministério. Ou seja, o relatório nunca foi publicado.

Finalmente, em 1965 foi descoberto, por Catherine Coquery-Vidrovisch, um exemplar nos arquivos do ultramar, que em 2002 vai fazer parte da sua tese. É ela que em 2014 o publica, Le rapport Brazza, Mission d’enquète du Congo: rapport et documents, Editions le passager clandestin, 2014.

 

Felizmente que já nada disso acontece agora. Quando muito, há uns africanos que a caminho da Europa caem dos barcos no Mediterrâneo, e que já não são mortos com cartuxos de dinamite no ânus. Agora utilizamos drones que selecionam automaticamente (por agora sempre “não-brancos”) os que vão fazer explodir lá em baixo, por decisão de um algoritmo: morte limpa. Não há carrascos e as vítimas volatilizam-se: ecológico. Já não precisamos de olhar para o lado, nem de guardar as coisas nas gavetas. Marchamos direitos de cabeça erguida para onde nos quiserem levar. "Lá vamos cantando e rindo, levados, levados Sim", estrofe do hino da Mocidade Portuguesa.

 

 

 

 

Nota: sugiro a leitura destes três artigos, o primeiro de 3 abril de 2019, “O direito à conquista”,

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/210-o-direito-a-conquista-55274

 o segundo de 18 setembro de 2015, “Documentos de um tempo ausente”,

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/documentos-de-um-tempo-ausente-2-6540

e o terceiro de 20 janeiro de 2016, “Tudo azul, tudo muito azul”,

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/2016/01/

                                            

 

 

 

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