(318) Sedução e pornografia
Tempo estimado de leitura: 4 minutos.
Somos a cultura da ejaculação precoce, Jean Baudrillard.
A sedução, com a sua capacidade para o teatro, para o jogo e para o espetáculo, pressupõe uma distância cénica e lúdica: uma fantasia para imaginar o outro.
A sedução pode inclusivamente dispensar o sexo, que só aparece como uma certa subordinação, e isto por a sedução ser da ordem do ritual e o sexo ser uma função natural, Byung-Chul Han.
Debaixo da pressão para produzir, tudo se exibe, se visibiliza, se desnuda e se expõe.
A quando da estreia em 2013 do filme Nymph()maniac de Lars von Trier, um dos críticos escreveu o seguinte:
“A mensagem do filme poderia também igualmente ser: “Esquece-te do sexo”, uma vez que em nenhuma cena se mostra a sexualidade de maneira sedutora. O filme é pornográfico, pois força o espetador a olhar diretamente com atenção e durante muito tempo o que se mostra. Mas o que aí se pode observar é algo enrugado, torcido, aveludado e de cor amarela acinzentada, ou seja, aproximadamente tão excitante como o órgão sexual de qualquer outro mamífero”.
Para compreender tal interpretação, temos de nos socorrer de Jean Baudrillard, e do seu livro, Da sedução, particularmente quando diz:
“Permanecemos incompreensivos e vagamente compassivos ante essas culturas para as quais o ato sexual não é uma finalidade em si, para as quais a sexualidade não tem essa seriedade mortal de uma energia que há que libertar, de uma ejaculação forçada, de uma produção a todo o custo, de uma contabilidade higiénica do corpo. Culturas que preservam grandes processos de sedução e de sensualidade, onde a sexualidade é um serviço como outro qualquer, não passando o ato amoroso de um final eventual desta reciprocidade feita a compasso de um ritual ineludível”.
Que o vai levar a concluir que o jogo da sedução, por levar muito tempo, está a ser ultrapassado e eliminado pela satisfação imediata do desejo sexual:
“Somos uma cultura da ejaculação precoce. Qualquer sedução, qualquer forma de sedução, que é um processo enormemente ritualizado, é cada vez mais abandonada em favor do imperativo sexual naturalizado, em favor da realização imediata e imperativa de um desejo”.
Até aqui podemos alinhar palavras, conceitos, como “sexo”, “pornografia”, “sedução”, “ritual”, “produção”. Para os conjugar, vamos socorrer-nos de Byung-Chul Han, e um dos seus últimos livros, A desaparição dos rituais, Uma topologia do presente, no qual o problema da sedução e da pornografia é abordado, como exemplo da progressiva narcisação da sociedade em que vivemos.
Segundo ele, a sedução começa por nos aparecer como um jogo, estruturado como um combate singular ritual, em que tudo se desenrola numa ordem “quase litúrgica de um desafio e de um duelo”.
A sedução, com esta sua capacidade para o jogo, para o espetáculo e para o teatro, pressupõe uma distância cénica e lúdica: uma fantasia para imaginar o outro.
Pode inclusivamente dispensar o sexo, que só aparece como uma certa subordinação, e isto por a sedução ser da ordem do ritual e o sexo ser da ordem da função natural.
Já na pornografia, que surge do consumo imediato do objeto que se oferece totalmente exposto, o outro desaparece por completo. Daí, o prazer pornográfico ser narcisista.
Não há aí qualquer capacidade ou intenção para criar ilusões, teatro, jogo ou espetáculo, tudo é transparente. “A pornografia é um fenómeno da transparência”, não há qualquer mistério, enigma ou ambiguidade.
Na pornografia, o sexo põe-se à frente, exibe-se e torna-se totalmente visível. O sexo “produz-se”, no sentido original da palavra “pro-duzir” que significa pôr-se à frente, exibir ou fazer-se visível. A pornografia atual não se coíbe em mostrar a ejaculação: também ela se “produz” e se exibe. O rendimento do resultado final não deve ficar oculto.
Quanto maior for o produto, maior será o rendimento do produtor. O princípio do rendimento também afeta o sexo. Daí Baudrillard atribuir a pressão para ejacular à pressão para produzir.
Como o jogo da sedução requer muito tempo, é substituído pela satisfação imediata do desejo sexual, o que leva Baudrillard a notar que a sedução não se dá com a produção.
Seguindo este caminho, Byung-Chul explica-nos:
“Debaixo da pressão para produzir, tudo se exibe, se visibiliza, se desnuda e se expõe. Tudo fica à mercê da inapelável luz da transparência […] O corpo torna-se pornográfico quando perde todo o caráter cénico e quando o único que tem de fazer é funcionar. O corpo pornográfico carece de todo o simbolismo. Pelo contrário, o corpo ritualizado é um faustoso cenário no qual se mantêm consignados segredos e divindades. Também os sons se tornam pornográficos quando perdem toda a subtileza e recato tendo apenas como única função produzir paixões e emoções. Na aparelhagem digital para fazer misturas e composições das pistas sonoras há um ajuste chamado “In your face”, (Na tua cara), cuja função é gerar uma impressão sonora imediata. Os sons derramam-se diretamente sobre a tua cara, como se fossem um tratamento facial. As imagens tornam-se pornográficas quando, para cá de toda a hermenêutica, excitam imediatamente o olhar como se fora o sexo. É pornográfico o contacto imediato, a copulação de imagem e olho.”
E é este excesso de visibilidade, a sobreprodução pornográfica de sexo, que acaba com o sexo. Após se ver o filme de von Trier, é uma evidência concluir-se que a pornografia destrói mais eficazmente a sexualidade e o erotismo que a moral e a repressão. O excesso, a demasia, uma das caraterísticas da sociedade atual.
Se quisermos aprofundar um pouco mais o problema da sedução, ouçamos o que Sartre tem para nos dizer:
“Na sedução, eu não tento sequer descobrir no outro a minha subjetividade […] Seduzir, é assumir totalmente e como um risco a correr, a minha objetividade para com o outro, é colocar-me sob o seu olhar e fazer-me ver por ele, é correr o perigo de ser visto para me apropriar do outro na e pela minha objetividade. Recuso-me a deixar o terreno da minha objetividade: é sobre esse terreno que eu quero conduzir a luta tornando-me objeto fascinante […]”
Curiosamente, Baudrillard, em As estratégias fatais, vai fazer notar a Sartre que esse jogo de sedução é recíproco, contando a história cruel de uma mulher a quem um homem escreveu uma carta inflamada em que lhe pedia uma resposta: «Que parte de mim vos seduziu mais?», perguntou ela. Ao que ele responde. «Os vossos olhos». Na volta, recebeu uma pequena caixa contendo o olho que tanto o seduzira.
Sobre esta pequena história, Baudrillard vai escrever páginas e páginas. Recordemos o que ele dizia de si próprio:
“Eu não sou nem filósofo, nem sociólogo, não segui a trajetória académica, nem a via institucional. Estou na Universidade em sociologia, mas não me reconheço na sociologia, nem na filosofia filosofante. Teórico, assim o penso, metafísico, no limite, moralista, não sei. O meu trabalho nunca foi universitário, nem mesmo literário. Ele evolui, torna-se menos teórico, sem se escusar a fornecer provas nem de as apoiar sobre referências.”
Nota: Sugiro a leitura do artigo “A pornografia como cultura civilizacional”, publicado neste blog a 28 de novembro de 2018 (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/2018/11/).