(312) “Aventuras”
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A passagem de uma aventura para outra dependerá inteiramente de si, porque só o próprio poderá viver a sua vida, mais ninguém, razão porque será totalmente responsável por ela.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca, C. Cavafy.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu. F. Pessoa.
Quando finalmente me decidi intervir através da escrita, entendi dar a conhecer a alguns poucos amigos e conhecidos a razão de ser que estava por detrás do projeto e que o nortearia no futuro. Inicialmente feito em fotocópias agrafadas e entregues pessoalmente, cedo me apercebi das limitações práticas do processo. Mas foi ele que mais tarde veio a dar lugar a este blog “Os tempos em que vivemos”, que no último ano teve uma média diária de 31 leituras distribuída por 48 países.
Voltei a reler esse primeiro artigo introdutório sobre a razão de ser do projeto e sinto que, passados vários anos, não me afastei muito dos objetivos prometidos. Eis o que então, em 2015, escrevi sobre a sua razão de ser:
“As exigências que a sociedade contemporânea impõe a cada um de nós, devido às suas restrições resultantes do trabalho, emprego/desemprego, profissão, estado, só com isso ocupando todo o tempo e gastando toda a nossa energia, vai-nos assim impedindo de desfrutarmos aquilo que é a surpreendente aventura do viver, de descobrirmos o que é este mundo, qual o nosso lugar nele.
Só durante o escasso período da infância e da adolescência (e mesmo assim só para alguns) é que tal nos é permitido: assim que começarmos a pensar e interrogar, para nos afirmarmos como pessoa, logo essas restrições nos vão limitar no nosso desenvolvimento, com as consequentes dificuldades de adaptação daí resultantes.
Com a finalidade de tentar ajudar a ultrapassar estas limitações que todos sofremos, procurarei, através de uma visão alargada, apresentar um conjunto de “Aventuras” que muito embora não sejam sequenciais, deverão no fim formar um todo coerente, deixando assim espaços que se pretendem de reflexão individual: a passagem de uma aventura para outra dependerá inteiramente de si, porque só o próprio poderá viver a sua vida, mais ninguém, razão porque será totalmente responsável por ela. Com estas “Aventuras” pretendemos incutir-lhe a tal visão mais alargada, procurando em cada uma delas acrescentar um pouco de aconchego e de ventura a cada um.
E falando de Aventuras, queria começar por dois poemas da mesma época, sendo um de Constantin Cavafy (1911) e outro de Fernando Pessoa (1928):
ÍTACA
Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.
Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
Para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
Para aprenderes com os que sabem muito.
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
Que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
Terás compreendido o sentido de Ítaca.
CAVAFY, Constantin, Constantin Cavafy, 90 e mais quatro poemas, versão portuguesa, prefácio, comentários e notas de Jorge de Sena, 2ª Edição, Centelha, Coimbra,1986.
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
Aparte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janellas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Daes para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mystério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabellos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidella dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fóra,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fôsse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci della pela janela das trazeiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propositos.
Mas lá encontrei só hervas e árvores,
E quando havia gente era egual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicomios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora genios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lucidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lucidas -,
E quem sabe se realizaveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito htpothetico mais humanidades do que Christo,
Tenho feito philosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nella;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabello,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrellas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e elle é opaco,
Levantámo-nos e elle é alheio,
Sahimos de casa e elle é a terra inteira,
Mais o Systema Solar e a Via Lactea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metaphysica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A calligraphia rápida d’estes versos,
Portico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, p’ra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fôsse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marqueza do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte celebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que fôr, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos, invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janella e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condemnação ao degredo,
E tudo isto é extrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquem do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a mascara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bebado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a mascara e dormi no vestiario
Como um cão tolerado pela gerencia
Por ser inoffensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essencia musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciencia de estar existindo,
Como um tapete em que um bebado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta tambem, e os versos tambem.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escriptos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satellites de outros systemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mysterio do fundo tam certo como o somno de mystério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausivel cahe de repente em cima de mim.
Semiergo-me energico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevel-os
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E góso, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciencia de que a metaphysica é uma consequencia de estar mal disposto.
Depois deito-me para traz na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino m’o conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janella.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metaphysica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves! e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono
da Tabacaria sorriu.
PESSOA, Fernando, em Álvaro de Campos, Obra Completa, edição de Jerónimo Pizarro e António Cardello, Lisboa, Tinta-da-China, 2014.
Estas são aventuras que nos desejo.