(311) Pecado no Paraíso.
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Perdido na tradução (Lost in translation), filme realizado em 2003 por Sofia Coppola, com Bill Murray e Scarlett Johanson.
A existência de um paraíso terrestre como jardim plantado por Deus no Éden, único lugar na Terra onde toda a felicidade é possível, é um dos paradigmas base da nossa civilização ocidental.
Encontramo-nos perante a assunção de que o paraíso é um paraíso perdido, e que a natureza humana contém em si qualquer coisa de defeituoso.
O homem é o ser vivo que foi expulso do seu próprio domicílio, que perdeu a ligação ao seu lugar de origem.
Não se pode continuar a baptizar para "apagar a mancha do pecado original”, Anselmo Borges.
Muitos dos gestos, atitudes, sentimentos e até mesmo pensamentos que hoje manifestamos, e que julgamos serem caraterísticas individuais, só nossas, que nos definem, ou caraterísticas sociais que pertencem só ao nosso grupo, só à nossa sociedade ou mesmo só à nossa humanidade, têm datas fixas, por vezes até afixadas, do seu começo, sendo a partir daí apropriadas pelos intervenientes que se lhes seguem.
Nada de errado nessa apropriação. Nada de errado no beija-mão, no beija face (dos dois lados ou só num), no aperto de mão (com a direita ou a esquerda, com a palma para cima ou para baixo, com maior ou menor sacudidela ou aperto), no high five ou no low five, ou no namastê do sul da Ásia.
“Sabemos” que na fase civilizacional em que nos encontramos o aperto de mão com a direita está relacionado com a indicação que vimos em paz, já que a mão direita é a que normalmente empunharia a arma (porquê ser a direita a empunhar a arma? Que ordem foi dada ao embrião para que fosse destro no seu desenvolvimento? “Culpa” dos papás? Do movimento de rotação da Terra? Da translação em volta do Sol? Seriam Deus e os deuses, destros?). Mas nem sempre foi assim, nem sempre teve esse significado, como mostram antigos relevos da Babilónia.
Já o high five, tão em moda nas por enquanto novas gerações, foi introduzido apenas no último quartel do século XX, ao que dizem por um basquetebolista, talvez para demonstrar que poucos lá chegavam. Ou pelo filho de um soldado americano pertencente o 5º Regimento, que quando encontrava os camaradas militares se saudavam erguendo a mão com os cinco dedos indicadores do regimento. Ou por qualquer outra razão, ou por qualquer outra pessoa. Trata-se de um cumprimento muito recente, minimamente datado, e assim chamado por ser feito no alto, por oposição ao low five, bastante mais anterior e caraterístico dos negros americanos, feito à altura da cintura com as palmas da mão abertas, talvez para sentirem mais pele ou se aperceberem do seu estado.
A existência de um paraíso terrestre como jardim plantado por Deus no Éden, único lugar na Terra onde toda a felicidade era possível, é, sem dúvida, um dos paradigmas base da nossa civilização ocidental. E, contudo, ele é também o lugar de onde a natureza humana foi expulsa para sempre.
Pelo que ao longo dos tempos se tem assistido, por um lado às tentativas de um regresso ao Éden contidas nos sonhos revolucionários dirigidos contra os guardiões que lhe impedem o acesso, e por outro lado condicionando ao falhanço todas as tentativas de alcançar a felicidade terrestre, com isso originando um traumatismo original.
Em qualquer dos casos, estamos perante a assunção de que o paraíso é um paraíso perdido, e que a natureza humana contém em si qualquer coisa de defeituoso. Pelo que o paraíso terrestre nos aparece sempre como um passado perdido, ou como um futuro a chegar.
O erudito filósofo italiano Giorgio Agamben, no seu livro Il Regno e il Giardino (O reino e o Jardim), começa por nos dizer que a palavra “paraíso” é pela primeira vez usada na Grécia por Xenofonte (c. 430-355 a. C.) como ‘paradeisos’, posteriormente transcrita para latim como ‘paradisus’. Trata-se, contudo, de uma apropriação do persa ‘pairidaeza’ feita por Xenofonte, utilizada no seu romance etnográfico Ciropedia, nome que ele chama ao jardim de Astiages, o rei medo, avô de Ciro, jardim que ele reservava para si e seus nobres, para a caça de animais selvagens.
É no Económico que Xenofonte vai descrever um ‘paradeisos’ mais parecido ao Jardim ocidental, ao referir-se ao jardim que o jovem Ciro (c. 590-530 a. C.) possuía em Sardes, onde as” árvores se encontravam plantadas a intervalos regulares, segundo linhas perfeitamente retas, com uma tal harmonia geométrica e uma tal variedade e suavidade” que levaram Lisandro de Esparta a exclamar: “Admiro-te, Ciro, por tanta beleza, mas admiro ainda mais aquele que concebeu e ordenou tudo isto.”
O ponto de viragem decisivo deste neologismo greco-iraniano vai dar-se quando na Septuaginta, (Bíblia resultante da primeira versão para grego feita por 70 especialistas), na tradução do Génesis 2,8 e seguintes, do hebraico ‘gan’ para o grego, em vez de se utilizar ‘kepos’ (jardim) optou-se por ‘paradeisos’: “ E Deus plantou um paraíso em Éden.”
Segundo Agamben, esta alteração talvez se tenha dado por o termo ‘paradeisos’ estar mais associado a uma ideia de realeza e de prestígio, e à presença de animais e de água, o que conviria mais a um jardim plantado por Deus.
Significativo foi também o gesto de S. Jerónimo (347-420) quando decidiu traduzir o termo ‘Éden’ do texto hebraico, por ‘voluptas’: “Deus começou em princípio por plantar um paraíso de delícias “, onde os frutos não são somente “bons para olhar”, mas também “bons para comer”.
Ao que parece, talvez tal se tenha verificado devido à dificuldade em explicar ao povo comum, em que local ficava situado Éden, conforme constava na Septuaginta. Seja como for, a partir dessa altura, na tradição da Igreja latina, o paraíso passou a ser associado ao prazer.
Nos primeiros tratados sobre o paraíso, comuns à tradição dos padres gregos, o paraíso terrestre ainda não se tinha separado do paraíso celeste. Era no jardim de Éden que o justo deveria de entrar: “enquanto viveres, forja por ti mesmo a chave do paraíso: essa porta deseja-te, espera com alegria a tua chagada” (Éphrem, De Paradiso Eden, II [VII],2)
Já para a tradição latina, o paraíso era interpretado como uma alegoria da alma humana. Como dizia o douto S. Ambrósio (340-397): “O paraíso é uma terra fértil, o mesmo quer dizer que é uma alma fecunda, plantada no Éden, o que quer dizer, no prazer”. Assimilava Adão e Eva às duas faculdades da alma: o intelecto (nous) e a sensação (aisthesis). A fonte que irrigava o jardim era Cristo, e os quatro rios entre os quais se dividia eram as quatro virtudes cardiais, e também as quatro idades da história sagrada.
E o homem “que estava na terra onde tinha sido modelado” foi colocado no paraíso “sabendo-se assim que dessa forma tinha recebido o espírito divino da virtude”. Incumbia ao homem assim colocado no paraíso, conservar “o dom da natureza perfeita e a graça da plena virtude, do qual o paraíso era o símbolo”.
E é exatamente deste relacionamento entre a visão alegórica do paraíso e a natureza humana, que se estabelece aquilo que virá a ser o conteúdo teológico específico do paraíso terrestre: a justiça original da criatura, a sua perca devido ao pecado e o seu restabelecimento salvífico propiciado por Cristo.
Na interpretação de Ambrósio, não há ainda a consideração de que tenha sido o homem que tenha sido amaldiçoado, mas sim a serpente. Não é a terra que tenha sido amaldiçoada, mas antes “as suas obras”. Ou seja, da mesma forma que a natureza humana não se encontra ainda dividida pelo pecado, também o paraíso não está ainda dividido, como acontecerá mais tarde, entre um paraíso terrestre (nunca perdido) e um paraíso celeste (num futuro longínquo).
Tal só virá a acontecer mais tarde, a partir de Santo Agostinho e da sua teoria do pecado original, ou seja, um pecado que terá corrompido irremediavelmente a própria natureza humana. Vai ser Tomás de Aquino, que na Suma teológica, 1ª, quaestio 102, retira as dúvidas sobre a morada original do homem, ao considerar que o paraíso era o lugar que lhe estava destinado no seu estado original.
Mas o que se vem a revelar ser mais importante que esta questão do local original de permanência, (ainda que apenas por seis horas, segundo a interpretação então dominante) é o facto de o homem daí ter sido expulso.
“O homem é o ser vivo que foi expulso do seu próprio domicílio, que perdeu a sua ligação ao seu lugar de origem.” Ele é duplamente peregrino sobre a terra: não só porque a sua vida eterna será no paraíso celeste, mas também, e sobretudo por ter sido exilado da sua pátria edénica.
Daqui Agamben afirmar que o” mitologema original da cultura ocidental não ser o do paraíso, mas o da sua perca. É isso que provoca o traumatismo originário que marcou profundamente a cultura cristã e moderna, condenando ao fracasso toda a procura de felicidade na terra.”
Em 2003, Sofia Coppola, realiza o filme, Lost in translation, (Perdido na tradução), com Bill Murray e Scarlett Johanson, onde mais sofisticadamente, mais esteticamente de acordo com a contemporaneidade, vem abordar o tema da desconexão com a realidade existente, quando coloca dois americanos no Japão, em que mesmo quando as traduções são as aparentemente corretas, constata que algo se perde, muitas vezes o mais importante. Mesmo sem necessidade de tradução, mesmo falando a mesma língua, o problema da incomunicabilidade entre humanos mantém-se. Versão atualizada da Torre de Babel. Perdido na tradução.
Parecendo concluídos e encerrados, estes problemas não só se mantêm presentes no nosso tempo, mas continuam a desenvolver-se.
Num artigo publicado no Jornal Notícias de 6 de março de 2021, “Fim do cristianismo na Europa?”, o padre Anselmo Borges, vem alertar-nos:
“A fé não pode agredir a razão. Por exemplo, o modo como se tem apresentado o pecado original é incompatível com a evolução. Não se pode continuar a baptizar para "apagar a mancha do pecado original". A morte de Jesus na cruz não foi querida por Deus, ofendido pelo pecado e exigindo uma reparação infinita. Isso contradiz o Evangelho: Deus é Amor.”