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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(310) O “Relatório Final” sobre o presente e o futuro.

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

A América não está preparada para defender ou competir na era da Inteligência Artificial. Esta é a dura realidade que devemos enfrentar, Relatório Final.

 

Apenas os Estados Unidos e a China têm os recursos, o poder comercial, o acervo de talentos e o ecossistema de inovação para liderar o mundo em IA, Relatório Final.

 

Estabelecer uma defesa contra adversários com capacidade de IA sem empregar a IA, é um convite ao desastre. [...] Os humanos não podem estar em todos os lugares ao mesmo tempo, mas o software pode, Relatório Final.

 

A tecnologia em regimes autoritários é usada como instrumento de vigilância, influência e controle político, ao passo que nos regimes democráticos é usada como instrumento de vigilância, influência e controle público.

 

 

 

 

 

A inauguração daquilo que se pensa virem a ser os novos tempos, sem se saber muito bem como eles serão, é uma das características das revoluções. Uma abertura de possibilidades que se desejam, que se adivinham. Exatamente por isso, uma vez iniciadas nunca se sabe bem o que vai acontecer, se virão a ter sucesso, onde pararão.

Como observou Arendt, uma revolução representa um tempo entre o fim de um passado que já não satisfaz e que já não dá respostas, e um novo começo que se oferece como absolutamente imprevisível.

As revoluções não consistem apenas numa mudança, como sucede com um golpe de estado, desobediência civil ou transformação de um governo. Não se tratam de restaurações ou de tentativas de retrocesso a um momento original em que a ordem estaria estabelecida. Pelo contrário, a revolução tem como consequência a instauração de uma novidade absoluta em termos de instituição, até aí não existente.

Podemos, contudo, considerar num sentido mais prático, que mesmo entre as revoluções, há umas mais radicais que outras, há as que não passam de pequenas revoluções, acabando algumas (a maior parte) por terminarem em golpes de estado, em que tudo se muda para tudo permanecer na mesma. Bem sei, não são verdadeiras revoluções, mas é o que mais acontece.

Por tudo isto é que só depois delas feitas se pode ver quem ganhou. Aplica-se aquela quase boutade do futebolista português que quando perguntado sobre a previsão do resultado de um jogo, disse que “prognósticos sobre o resultado só no fim do jogo”.

Com as alterações políticas, sociais e económicas, passa-se o mesmo. Só depois, muitas das vezes só muito tempo depois, é que se vê quem ganhou, ou seja, quem beneficiou com o processo.

Casos interessantes e do conhecimento comum: na Revolução Francesa, quem acabou por beneficiar dela não foram os revolucionários que a iniciaram e conduziram, mas sim Napoleão Bonaparte e as forças que o apoiaram; na Revolução de 1383-85, foi a burguesia nascente que impulsionou o movimento que levou D. João I ao trono de Portugal, iniciando a Segunda Dinastia, mas quem acabou, embora um pouco mais tarde (Alfarrobeira, 1449), por beneficiar dela, foi a aristocracia conluiada com Afonso V.

 

 

 A 23 de fevereiro de 2021, um painel de 15 personalidades nomeadas pelo Congresso dos EUA, o National Security Commission on Artificial Intelligence, apresentou um relatório final com as recomendações para a elaboração de um programa para a transformação total da sociedade americana ancorada à inteligência artificial (IA) e ao desenvolvimento de armamentos autónomos, única hipótese considerada viável para a manutenção do domínio americano. Este Final Report (756 páginas), excelentemente estruturado e minucioso, vem explanar como é possível fazer-se essa ambiciosa transformação, acabando, contudo, por revelar alguns pontos muito interessantes e importantes que convém reter.

 

 

O relatório começa, talvez para espanto de alguns, com a seguinte afirmação:

 

 “A América não está preparada para defender ou competir na era da IA. Esta é a dura realidade que devemos enfrentar.”

 

Esta é a constatação que vai servir de base para justificar a elaboração de todo o programa que visa alterar esse estado de coisas. Seguidamente, reconhece que:

 

 […] O governo dos EUA não pode fazer isso sozinho. Precisa de parceiros comprometidos na indústria, na academia e na sociedade civil. E a América precisa envolver os seus aliados mais antigos e novos parceiros, para conseguir construir um mundo mais seguro e livre para a era da IA.

 

# Ou seja, não mais uma América grande sozinha, mas uma América grande só possível com todos os outros aliados a ajudarem. Este reconhecimento pode ser por pura conveniência tática (contagem de espingardas), ou por esse englobamento se tornar necessário para o aumento de valor que tal expansão irá gerar, a nova conquista de “territórios”, as novas fronteiras sem as quais o sistema tem dificuldades de crescimento.

 

 O porquê da aposta na IA e respetivos armamentos:

 

“Tememos que os armamentos de IA sejam as armas de primeiro recurso a serem utilizadas em conflitos futuros. A IA não permanecerá apenas sob o domínio das superpotências ou no reino da ficção científica. A IA é de uso duplo, geralmente de código aberto e tem-se expandido rapidamente. Os adversários do estado têm já vindo a efetuarem ataques de desinformação apoiados em IA, para semear a divisão nas democracias e abalar o nosso sentido de realidade. Estados, criminosos e terroristas conduzirão ataques cibernéticos baseados em IA e utilizarão software de IA com ‘drones’ já disponíveis comercialmente, criando "armas inteligentes". Não é segredo que os rivais militares dos Estados Unidos têm vindo a integrar conceitos e plataformas de IA, desafiando a vantagem tecnológica de décadas dos Estados Unidos. Não seremos capazes de nos defender contra ameaças conduzidas por IA sem recursos de IA omnipresentes e sem novos paradigmas de combate. “

 

“Estabelecer uma defesa contra adversários com capacidade de IA sem empregar IA, é um convite ao desastre. A IA comprimirá os prazos de decisão de minutos para segundos, expandirá a escala de ataques e exigirá respostas que sobrecarregarão os limites da cognição humana. Os operadores humanos não serão capazes de se defenderem de ataques cibernéticos ou de desinformação capacitados para IA, de enxames de ‘drones’ ou ataques de mísseis sem a ajuda de máquinas capacitadas para IA. O melhor operador humano não se pode defender contra múltiplas máquinas fazendo milhares de manobras por segundo, movendo-se potencialmente a velocidades hipersónicas e orquestradas por IA em todos os domínios. Os humanos não podem estar em todos os lugares ao mesmo tempo, mas o software pode.”

 

# A justificação da aposta na IA e seus sistemas de armas, é simultaneamente realista e ideológica. Gostando-se ou não da vigilância e dos armamentos possíveis propiciados pela IA, é certo que a sua provável utilização por quaisquer forças para obter vantagens, mais tarde ou mais cedo acabará por se verificar. O argumento é, pois, realista. Ideológico, na medida em que esse desenvolvimento provém do tipo de escolhas e atuações que a sociedade tem vindo a fazer, e que nos tem vindo sempre a ser apresentado como única via para o “progresso natural”.

 

O futuro da IA pode ser democrático:

 

“O uso doméstico de IA na China é um precedente assustador para todo o mundo, para qualquer pessoa que preze a liberdade individual. O emprego que ela faz da IA como ferramenta de repressão e vigilância - em casa de cada um e, cada vez mais, no exterior - é um poderoso contraponto ao que acreditamos como a IA deve ser usada. O futuro da IA ​​pode ser democrático, mas conhecermos o suficiente sobre o poder da tecnologia para fortalecer o autoritarismo no exterior e alimentar o extremismo em casa, para saber que não devemos dar como certo que as tendências futuras da tecnologia venham a reforçar a democracia em vez de a erodir. Devemos trabalhar com outras democracias e com o setor privado para construir padrões de proteção de privacidade em tecnologias de IA e promover normas democráticas para orientar os usos de IA para que as democracias possam usar as ferramentas de IA de maneira responsável para fins de segurança nacional.”

 

A tecnologia em regimes autoritários e em regimes democráticos:

 

“A tecnologia em si não possui uma ideologia, mas dependendo do modo como é projetada, onde é empregada e quais as leis que regem o seu uso, refletem as prioridades e os valores daqueles que a projetam e empregam.

 Em breve, mais recursos de vigilância e análise com utilização de IA estarão nas mãos da maioria ou de todos os governos. À medida que a tecnologia se difunde, a principal diferença entre os estados terá menos a ver com a qualidade ou sofisticação da tecnologia e mais a ver com a maneira como ela é usada - para que propósito e sob que regras.

Os regimes autoritários continuarão a usar IA - reconhecimento facial, biometria, análise preditiva e fusão de dados com recursos como instrumentos de vigilância, influência e controle político. A utilização pela China de tecnologias de vigilância movidas a IA para reprimir a minoria uigur e monitorar todos os seus cidadãos, prenuncia como os regimes autoritários usarão os sistemas de IA para facilitar a censura, rastrear os movimentos físicos e atividades digitais de seus cidadãos e para reprimir a dissidência.

 A circulação global desses sistemas digitais cria a perspetiva da adoção mais ampla de uma governança autoritária. Mas as democracias liberais também empregam a IA para fins de segurança interna e pública. Mais de metade das democracias avançadas do mundo usam sistemas de vigilância habilitados para IA. Essas tecnologias têm finalidades públicas legítimas e são compatíveis com o estado de direito.”

 

## Ou seja, a tecnologia em regimes autoritários é usada como instrumento de vigilância, influência e controle político, ao passo que nos regimes democráticos é usada com instrumento de vigilância, influência e controle público.

 

As vantagens da China:

 

“A adoção bem-sucedida da IA ​​em campos e tecnologias adjacentes impulsionará economias, moldará sociedades e determinará quais os estados que exercerão influência e poder no mundo. Muitos países têm estratégias nacionais de IA, mas apenas os Estados Unidos e a China têm os recursos, o poder comercial, o acervo de talentos e o ecossistema de inovação para liderar o mundo em IA. Os Estados Unidos são capazes de inovar mais que qualquer concorrente. No entanto, hoje, há uma diferença fundamental nas abordagens dos EUA e da China para a inovação em IA que coloca a liderança americana em IA em perigo.

A maior parte do progresso da IA ​​nos Estados Unidos deve permanecer com o setor privado e as universidades. Não devemos perder uma cultura de inovação que é de baixo para cima e difundida com uma mentalidade de ‘startup’ de garagem. No entanto, uma abordagem totalmente distribuída não é uma estratégia vencedora nesta competição estratégica. Mesmo as grandes empresas de tecnologia não podem competir com os recursos da China ou fazer os grandes investimentos de que os EUA precisarão para se manter à frente. Precisaremos de uma abordagem híbrida que mescle os esforços do governo e do setor privado para vencer a competição de tecnologia.

A China é organizada, tem recursos e está determinada a vencer a competição de tecnologia. A IA é fundamental para a expansão global da China, poder econômico e militar e estabilidade doméstica. Ela tem uma vantagem inicial na execução de um plano nacional de IA como parte de planos maiores para liderar o mundo em vários campos de tecnologia emergentes e críticos.

 A partir de 2017, a China estabeleceu metas, objetivos e estratégias de IA vinculados a cronogramas específicos com recursos apoiados por uma liderança comprometida para liderar o mundo em IA até 2030. A China está a executar um plano sistemático dirigido centralmente para extrair conhecimento de IA do exterior por meio de espionagem, recrutamento de talentos, transferência de tecnologia e investimentos.

Ela tem planos ambiciosos para construir e treinar uma nova geração de engenheiros de IA em novos ‘hubs’ de IA. Ele apoia empresas "campeãs nacionais" (incluindo Huawei, Baidu, Alibaba, Tencent, iFlytek e SenseTime) para liderar o desenvolvimento de tecnologias de IA em casa, promover prioridades dirigidas pelo estado que alimentam programas militares e de segurança sob a rubrica de fusão civil-militar e mercados de captura no exterior. Financia projetos de infraestrutura digital massivos em vários continentes. A China desenvolveu uma estratégia de propriedade intelectual (PI) e está a tentar definir padrões técnicos globais para o desenvolvimento de IA. E as suas leis tornam quase impossível que uma empresa na China consiga proteger os seus dados das autoridades.”

 

“Na próxima década, a China pode vir a ultrapassar os EUA como a maior potência mundial em IA.”

 

 

### Resumidamente: Os EUA estão com um problema de difícil resolução. Por um lado, encontram-se atrás do que consideram ser o seu principal adversário, no domínio daquilo (IA) que sabem vir a ser o conhecimento e as tecnologias que dominarão o futuro.

Por outro lado, sabem que não conseguem apanhar e ultrapassar a China sem um planeamento centralizado em que o estado desempenhe um papel fundamental para o controle e desenvolvimento de todas as forças da sociedade, o que implica como que uma economia de guerra coordenada com as empresas privadas, organismos de segurança, militares e academia, quase idêntico ao feito durante muito pouco tempo na Segunda Guerra. Só que agora, terá de ser por tempo ilimitado. O “Relatório Final” é a resposta apresentada. Está lá tudo. Ser como a China convencendo-nos que não são a China.

Para nós, as implicações são interessantes: democraticamente, patrioticamente ou voluntariamente, seremos obrigados a escolher entre um capitalismo de estado de um Estado socialista, e um capitalismo de estado de um Estado capitalista.

 

#### Outro ponto muito elucidativo que se extrai do Relatório, tem que ver com a composição do painel:

O presidente é Eric Smith, ex-“dono” da Google; o vice-presidente é Robert Work, diretor da Raytheon (empresa líder em tecnologia e inovação, especializada na defesa e soluções de cibersegurança) e conselheiro da Govini (empresa de big data e analítica especializada em transformar os negócios de governança recorrendo à utilização da ciência de data); Andrew Moore, é vice da Google e chefe da divisão da Google Cloud; Safra Catz, é diretora da Oracle; Andrew Jassy, é diretor da Amazon; William Mark, é chefe de Computing Sciences na SRI.

Ou seja, pouco mais de um mês depois do novo presidente chegar ao poder, as forças que estavam por detrás revelam-se como as grandes vencedoras:  as empresas de alta tecnologia.

É para essas grandes empresas privadas que fluirão os biliões de dólares dos grandes contratos do estado. Veremos daqui por uns tempos quem controla o quê e quem.

 

 

. Importante ver vídeo sobre armamentos autónomos, file:///C:/Users/HELDER~1/AppData/Local/Temp/VID-20171212-WA0007.mp4.

. Ver blog de 19 de junho de 2019, “O abismo da liberdade e a liberdade do abismo”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/220-o-abismo-da-liberdade-e-a-57952.

. Ver blog de 24 de fevereiro de 2021, “O Grande Recomeço”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/308-o-grande-recomeco-88658-

 

 

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