(306) Caídos do céu- 2
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É possível imaginar tudo, até o fim do mundo, mas não o fim do capitalismo, Fredric Jameson.
A civilização humana está realmente a arruinar-se.
Cada vez mais existe um setor privado que serve basicamente apenas para ajudar os ricos.
Vamos ter países onde as pessoas desfrutam de bom ar, areia e praias, e países que estão literalmente, literalmente a afogarem-se em lixo.
Em 2050, teremos um mundo que realmente se parecerá com a pior versão da ficção científica chinesa.
Segunda parte da entrevista de Srecko Horvat, “Caídos do céu?”
- Sobre as praias particulares e a privatização do litoral
JS: Um dos princípios básicos da ex-Jugoslávia era a noção de que o litoral não pertencia a ninguém. Pertencia a todos. E sim, havia corrupção no governo, inclusive sob Tito, e havia ilhas privadas e tudo isso, mas no geral, as áreas costeiras da Jugoslávia eram consideradas propriedade comum que qualquer um poderia usar. Agora, o que você encontra são enormes conglomerados de hotéis, e investidores estrangeiros constantemente a chegarem. Que dizem que querem poder ter uma praia particular.
Assim, tudo pode mudar e é exatamente pelos motivos que você está a dizer. É a privatização. É a dependência do turismo e, em seguida, são investidores estrangeiros muito agressivos a trabalharem com empresários croatas corruptos, para privatizarem pela porta dos fundos a costa que pertence ao povo.
SH: Existe já uma privatização do litoral. Quer dizer, já tínhamos essa tendência. Você sabe, as primeiras coisas que foram privatizadas logo após a divisão da Jugoslávia foram as fontes de água. A Coca-Cola comprou várias fontes de água na Bósnia e na Croácia e assim por diante, nos anos 90 ainda durante a guerra, o que era realmente já esse tipo de “doutrina de choque “- sobre o que Naomi Klein fala, no sentido de que numa situação real de choque de guerra, basicamente você vende-se, os políticos croatas corruptos juntamente com os políticos ocidentais corruptos, fazem acordos para venderem os recursos naturais. E o que está a acontecer agora com o litoral é uma consequência lógica disso.
Mas é ainda pior porque precisamente na Croácia você pode ver todos os problemas do capitalismo global. Por um lado, estamos felizes porque agora estamos ligados ao mundo e assim por diante. Mas todos esses voos da EasyJet, essa cultura EasyJet e assim por diante não estão a contribuir apenas para agravar a crise climática. Eu até acho que as pessoas deveriam viajar mais de comboio, mas não há nenhum sistema ferroviário a funcionar na Croácia porque a Europa ou a Croácia não investem nele e assim por diante. Portanto, estamos novamente com os mesmos problemas que tínhamos.
Mas não é apenas a EasyJet. Eu não sei, você provavelmente percebeu que recentemente a Croácia também se tornou num palco para grandes filmes de Hollywood. É o caso de Dubrovnik, que é uma cidade fascinante. A sua história é ainda mais fascinante. Quando recentemente estive em Dubrovnik, vi imensos turistas chineses e americanos. É o efeito da “Guerra dos Tronos”.
A Ilha de Vis, é uma ilha que recentemente se tornou palco do famoso filme “Mamma Mia”. E, você sabe, OK, você poderia dizer que isso está a tornar a Croácia ainda mais popular, o que será bom porque a população local alugará os seus apartamentos e assim por diante. Mas na realidade é mais como uma espécie daquele filme chamado “Idiocracia”, você sabe, em que as pessoas assistem a um filme, e quando elas lá vão e exclamam, “oh, King’s Landing” [a capital dos sete reinos]. Não, não é apenas “King’s Landing”, na verdade a sua história é muito mais importante e muito mais fascinante do que a da “Guerra dos Tronos”.
Estes países são meio-assim como uma representação visual, acabando por se tornarem novamente numa espécie de colónia ou apenas num cenário de um filme. E isso é mau, claro, quero dizer, é mau para a cultura local. Não estou a dizer que devemos recuar e voltar para a cultura local. Não sou assim tão ingênuo. Não acredito nisso. Mas sim, há costumes que estão a perder-se. As línguas locais estão a perder-se, sem mencionar o aumento vertiginoso dos preços das propriedades em cidades como Dubrovnik ou outras no litoral, precisamente por causa de um filme de Hollywood e assim por diante.
Se você for a Dubrovnik ou a qualquer outra cidade turística da Croácia no inverno, não encontrará pessoas no centro da cidade. As cidades estão basicamente desertas, até mesmo divididas e assim por diante. Porque a maioria das pessoas está apenas a fazer turismo. Já ninguém mora no centro. É como Veneza, por exemplo, veja Veneza, veja o recente acidente que aconteceu com aquele grande cruzeiro em Veneza. Quer dizer, é nojento.
Você sabe, a civilização humana está realmente a arruinar-se. Não sou contra o turismo. Não estou a dizer que as pessoas não deveriam viajar. Eu até acho que elas deveriam viajar muito mais, precisamente para conhecer outras culturas. E algumas pessoas também precisam de férias de vez em quando. Mas acho que temos que repensar radicalmente o turismo global e o que ele significa e de que forma poderia ser mais sustentável, como pode ser ligado a um New Deal Verde, a investimentos maciços de infraestruturas públicas - comboios, outros tipos de transporte. Há muito que fazer quando se trata de turismo.
- Como a crise climática, o desaparecimento dos serviços públicos e sua substituição por privados, tem afetado a Croácia.
SH: O exemplo dos incêndios florestais da Califórnia (onde as pessoas têm que contratar ou ter seguro de empresas privadas, porque se a minha casa estiver a arder, terei um corpo de bombeiros privado que vai garantir que o meu incêndio será o primeiro a ser apagado, em vez de esperar que os despachantes do 911 enviem um carro de bombeiros) que você deu é excelente porque prova que a mantra de Margaret Thatcher está hoje completamente certa, infelizmente. Você sabe, Margaret Thatcher ficou famosa quando disse que “não existe sociedade, apenas indivíduos”. E você pode ver isso na Califórnia e noutros países e assim por diante, onde cada vez mais existe um setor privado basicamente apenas para ajudar os ricos. Quero dizer, é assim de simples.
Quando se trata da Europa, o que você pode ver relacionado com a crise climática não são apenas incêndios florestais. A Croácia, por exemplo, a costa e as ilhas da Croácia, têm um grande problema com os plásticos e resíduos. Sabe, eu vou todos os anos para uma ilha da Croácia e se for na primavera, as praias estão cheias de plástico. Então, eu e amigos locais vamos à praia, limpamo-la, e assim por diante. Mas no dia seguinte o plástico volta.
Se você verificar de onde vêm os produtos, metade deles é albanesa e outros são franceses ou alemães – resíduos médicos franceses ou alemães, por exemplo. Então você pergunta-se: "OK, por que é que há lixo albanês, francês e alemão nas ilhas croatas?"
E chega à origem do problema. Por um lado, a Albânia, após o colapso do regime comunista local, não tem realmente um sistema sustentável de gestão de resíduos. Por outro lado - e aqui chegamos a um problema mais global - os países ricos da União Europeia, incluindo a Alemanha, a França e assim por diante, estão basicamente a enviar uma grande quantidade de lixo, incluindo resíduos médicos, para a Albânia. E depois, seguindo as correntes marítimas, os resíduos da Albânia, juntamente com os resíduos da Europa Ocidental, chegam às ilhas croatas.
E qual é a lição a tirar da Jugoslávia? A lição é que mesmo que eu limpe a praia todos os dias, no dia seguinte os plásticos voltarão. Mesmo que não haja plástico nas praias, todos estamos já a comer microplástico, sabe. Cientistas encontraram microplásticos desde os Alpes suíços até à Antártica.
Então, essa não é a saída. A única saída é, e essa é uma das lições da Jugoslávia que tem que ser repensada seriamente, é um Movimento dos Não-Alinhados, movimento do século 20 que foi fundado por Nehru, Tito e Nasser, com a ideia básica de que os países do Sul teriam de cooperar juntos. Claro, vivia-se numa situação de Guerra Fria, onde a principal razão para a fundação do Movimento dos Não-Alinhados fora tentar criar uma terceira opção genuína para não se terem de juntar à Rússia Soviética ou aos Estados Unidos. Acho que hoje precisamos disso cada vez mais.
Você provavelmente viu recentemente nas notícias que a Malásia estava a devolver o lixo que os países ocidentais lhe enviava. Acho isso muito bem feito e também mostra porque acompanho o debate nos Estados Unidos. Respeito muito Alexandria Ocasio-Cortez. Embora pense que ela deveria falar muito mais sobre Chelsea Manning e Julian Assange, mas esse é outro assunto. Mas o que ela está a fazer é realmente bom ao impulsionar o New Deal Verde.
Mas é também importante perceber o que é o New Deal Verde, e que normalmente é esquecido com muita frequência, como agora após as eleições europeias em que todos falam sobre a chamada “onda verde”. Como sabe, o Partido Verde saiu-se muito bem. Esta é a prova de que a Europa está a caminhar numa melhor direção. Bem, eu tenho idade suficiente, porém, não sou assim tão velho. Mas tenho idade suficiente para recordar que o Partido Verde apoiou a guerra no Afeganistão, e assim por diante, e recordar que eles realmente não fizeram muito pela chamada transição verde na Alemanha.
Portanto, a lição disto é que mesmo com a Malásia ou o lixo que chega à Albânia e depois à Croácia, a lição é que não há New Deal Verde apenas num só país e que o New Deal Verde não deve ser apenas social, mas anticapitalista ou mais precisamente pós-capitalista. Portanto, você não pode ter um New Deal Verde apenas na Alemanha, que agora está a exportar carros a diesel para a periferia da União Europeia, para a Hungria, que é o segundo país no mundo em número de mortes prematuras por causa da poluição do ar.
Então, você sabe, hoje já se pode imaginar o tipo de mundo que vamos ter, assemelhando-se à China como ficção científica, que eu até acho que é uma das melhores, a mais interessante ficção científica, onde você encontra um mundo que está basicamente dividido. Vamos ter países onde as pessoas desfrutam de bom ar, areia e praias, e países que estão literalmente, literalmente a afogarem-se em lixo.
É assim que para o New Deal Verde vejo dois perigos. Um dos perigos é que em breve ele se torne numa espécie de novo capitalismo verde, e isso o capitalismo vai rapidamente perceber, dizendo que talvez seja melhor recorrer aos painéis solares e assim por diante. É o que já está a acontecer.
Veja o que se está a passar com os Verdes na Alemanha. O que é que querem? O mesmo, e isso é um grande perigo. O capitalismo está já a trabalhar na cooptação e a lucrar com isso.
E o outro medo que tenho é o que se está a passar com Le Pen durante as eleições europeias, algo que deveríamos chamar de eco-fascismo. E não é algo completamente novo, se voltarmos a Hitler - para a Alemanha de Hitler - se você olhar para as fotos, você verá, por exemplo, Eva Brown, que era a sua amante, a fazer ioga num lindo lago e então toda a ideologia é como uma espécie de retorno ao blut und boden [sangue e solo].
E também pode ver hoje que são precisamente os fascistas que estão a usar os seus - OK, eles não estão a falar sobre o New Deal Verde, mas estão também a falar sobre o regresso à natureza e assim por diante, que é uma tendência muito, muito perigosa, eu diria. Portanto, esses são os dois perigos para o New Deal Verde.
- Sobre a importância do Movimento dos Não-Alinhados hoje.
SH: Eu acho que a lição do Movimento dos Não-Alinhados do século 20, que foi fundado por Tito, Nehru, Nasser, a que muitos países aderiram ao invés de seguirem os países ocidentais que são os países com maiores responsabilidades pela crise climática, é o exemplo que deveria levar todo o sul a construir novas formas de cooperação. E que deve mandar o lixo de volta para os países ocidentais.
Definitivamente, eu diria que precisamos hoje de algo semelhante, embora o problema seja que toda a situação mudou. Já não estamos numa guerra fria. Já não temos, você sabe, esse tipo de mundo bipolar onde por um lado estavam os Estados Unidos, e do outro lado, a Rússia Soviética -
- O mundo já não é bipolar, mas a propaganda e a ideologia são muito parecidas com a Guerra Fria.
SH: Hoje não são apenas os bolcheviques, são também os chineses. Já não são apenas os russos com a guerra comercial contra os chineses. Mesmo quem veja apenas televisão, verá que agora existem diferentes jogadores. Eu diria que tal reflete o facto de hoje vivermos num mundo multicêntrico, que é um pouco diferente, mas em que, contudo, a propaganda e a ideologia são muito parecidas com a Guerra Fria.
Embora seja muito mais perigoso, porque hoje não se trata apenas de se apropriar dos meios de produção. Eu diria que hoje, trata-se de apreender as ‘imitações’ da produção. Você pode ver que essa propaganda tem muito mais sucesso, por causa da tecnologia e das ‘imitações’, que é essa criação de imagens que servem para prenderem a atenção por um período muito curto, bastante popular, como se viu com o Bolsonaro, por exemplo, e a função do What's App. E por outro lado, você tem uma espécie de pré-programação da política, como se viu no caso da Cambridge Analytica, com o Facebook.
Então, isso é muito perigoso, mas é precisamente neste tipo de situação que você precisa de uma espécie de um novo movimento de libertação global, que absorveria as lições do Movimento dos Não-Alinhados. O que foi bem-sucedido e quais foram as falhas? Existindo ainda hoje nominalmente o Movimento dos Não-Alinhados, com que frequência você ouve falar dele? Isso diz muito.
Eu diria que um dos problemas, e uma coisa que devemos realmente repensar, é que o Movimento dos Não-Alinhados era formado por estados-nação do século XX. Eu acho que mesmo que hoje se assista em toda parte a uma tentativa de regresso ao estado-nação, com a “América primeiro”, “Hungria primeiro”, “Somália primeiro”, qualquer que seja primeiro, acho que o conceito de estado-nação, com a tendência atual para uma crise climática ainda maior, possa ser um conceito do passado.
O que quero dizer com isso? Se você tem o nível do mar a subir, de acordo com as estatísticas do Banco Mundial. Se em 2050, você tiver centenas de milhões de refugiados, principalmente do Sul, tentando vir para a Europa, o próprio conceito de estado-nação terá de mudar. O próprio conceito de soberania tem de mudar e precisaremos de mais cooperação global.
Infelizmente, não vejo regularmente a televisão dos EUA. Adoraria assistir. Amo observar a ideologia e desconstruí-la. Mas ultimamente estive a ver ficção científica chinesa e na Netflix. Eles também têm feito coisas boas, não só o “Roma” de Alfonso Cuarón, que por lá apareceu. Na Netflix vi recentemente um filme chinês de ficção científica de grande sucesso. E é incrível, na verdade, independentemente sobre o que quer que você pense sobre a qualidade e a narrativa, e assim por diante.
Mas a história é realmente muito interessante, muito incomum, com uma situação em que o sol está a transformar-se numa gigante vermelha, pelo que o mundo inteiro se tem que unir. Eles formam uma espécie de governo mundial, sabe, a ideia do velho Emmanuel Kant de que os candidatos, os estados se uniriam e criariam um governo mundial. Após criarem um governo mundial - parece completamente louco o que direi agora - eles montam 10.000 motores na parte de trás do planeta Terra e, em seguida, tentam tirar o planeta Terra de sua órbita em direção a um novo sol. E, você sabe, “OK, é ficção científica”, mas não poderia ter imaginado isso - Você sabe, acho que não podemos nem imaginar o que pode estar a acontecer por causa da crise climática.
Por exemplo, veja o Ártico e o aproveitamento do gelo derretido, que está a tornar verdade o que Fredric Jameson disse, que é possível imaginar tudo, até o fim do mundo, mas não o fim do capitalismo. Ou seja, você pode imaginar o fim do mundo. O gelo está a derreter e assim por diante, mas o capitalismo continuará.
No ano passado, Donald Trump autorizou a perfuração no Ártico. Você também viu que a OTAN efetuou um dos seus maiores exercícios militares – na altura eu estava na Noruega, pelo que me recordo disso. Fez os maiores exercícios militares precisamente no Ártico. Então, há um grande interesse por essa área e vocês vão verificar que a crise climática vai criar novas rotas não só para o transporte de mercadorias, mas também para a exploração dos combustíveis fósseis.
Outro exemplo, o permafrost. Poucas pessoas falam sobre o permafrost, mas o desaparecimento do permafrost, pode ser ainda mais perigoso do que a mudança climática. E não podemos nem prever o que pode acontecer por causa disso.
Então, se a essas tendências juntarmos centenas de milhões de refugiados nas próximas duas ou três décadas a chegar aos Estados Unidos ou à Europa e assim por diante, acho que precisaremos de um tipo de cooperação global que ainda nunca existiu na história da humanidade, digo eu, porque você também vai precisar de usar, por exemplo, o exército, não para liderar guerras, mas para ajudar as pessoas, para abrir rotas de salvamento, para salvá-las e assim por diante. E, infelizmente, vejo que já estamos a caminhar nessa direção.
A menos que sejamos capazes de criar uma comunidade global que seria o resultado de um movimento de libertação global e uma espécie de novo movimento realinhado, eu diria, que seria realinhado contra o capitalismo, contra a exploração dos recursos naturais, contra a mercantilização dos humanos, as suas emoções e livre arbítrio - o que está a acontecer com a tecnologia - a menos que tenhamos sucesso em criar este movimento global e sociedade global, que seria a primeira sociedade verdadeiramente global, temo que em 2050, teremos um mundo que realmente se parecerá da pior maneira com a versão da ficção científica chinesa.
- Esperança sem otimismo, como único caminho da resistência à libertação-
JS: Quero terminar perguntando onde devemos ir buscar esperança. Você escreveu: “O que precisamos mais do que nunca hoje é esperança sem otimismo. Este é o único caminho da resistência à libertação.” Explique o que quis dizer.
SH: Conservar o otimismo, porque o pessimismo é um conceito muito perigoso. Porque se você for um pessimista, então você nem tem vontade de acordar, de estar ativo na sociedade. O otimismo também é perigoso porque promete falsas esperanças. E é por isso que acho que precisamos de esperança, mas sem otimismo.
Penso que para o século 21 este é o conceito mais crucial. Esperança, no sentido em que acho que os progressistas ao redor do mundo devem parar de criticar apenas o capitalismo, a ascensão do populismo de direita, autoritarismo e assim por diante. Eles devem oferecer não apenas esperança, mas a visão de uma sociedade na qual nós queiramos viver, sabe, devem ir na direção de imaginar coisas que são inimagináveis.
Por exemplo, se você for aos Estados Unidos, e sempre que lá vou fico imediatamente deprimido assim que saio do aeroporto, quando vou na autoestrada, e vejo a enorme quantidade de carros. E quando você vê que em cada carro vai apenas uma única pessoa, em vez de quatro pessoas, pergunta-se porque não vão de comboio.
Isso é - como dizer? É uma ofensa à racionalidade humana ainda conduzirmos todos esses carros, eu diria. E no futuro que está a chegar, com a automação e o avanço tecnológico, o que vai acontecer com os camionistas nos Estados Unidos é que 3,5 milhões deles na próxima década perderão os seus empregos. Eu não acho que a solução seja voltar a este tipo de capitalismo verde ou algo assim, mas sim a de realmente criar novos meios de transporte, que seriam ao mesmo tempo públicos e não privados.
Até certo ponto, poderia dizer que o que Elon Musk está a fazer com a Tesla, ao forçar os outros concorrentes no mercado a implantarem também essa tecnologia de carros elétricos, possa ser bom. Embora possa criticar Elon Musk por muitas, muitas coisas, como muitas pessoas fazem. Mas pode ser bom porque você pode imaginar, e isso é uma ideia que Yanis Varoufakis me deu enquanto conversávamos, infelizmente num carro na Alemanha, durante a campanha eleitoral que tivemos algumas semanas atrás. E então ele disse-me para imaginar um futuro onde basicamente um governo nacionalizasse todos esses carros elétricos que existirão em cinco anos.
Eu sei que nacionalização e desapropriação não são realmente algo popular, mas por que não imaginar um transporte público elétrico, 100% limpo, que não fosse propriedade de ninguém, você sabe, esse tipo de situação estúpida onde os humanos realmente se parecem com os atores do filme, “Idiocracia”. Uma pessoa, um carro, combustíveis fósseis e apenas dirigindo por aí, ou nem mesmo conduzindo. Quer dizer, se você olhar para as autoestradas dos EUA, as pessoas nem estão a conduzir. Elas estão apenas paradas e sentadas, você sabe, nesses carros estúpidos, e em que têm que ser os donos do carro. Por que têm eles que possuir o carro?
Bem, é a ideologia capitalista, porque durante todas estas décadas, foram-nos convencendo de que somos um homem ou mulher de sucesso se possuirmos um carro, se possuirmos uma casa, se possuirmos, se comprarmos, comprar, comprar e usar os mesmos produtos de merda.
- Sobre os problemas Julian Assange, Chelsea Manning, Edward Snowden, as leis de espionagem e a liberdade de imprensa.
JS: Como sabemos, Julian Assange, um dos fundadores do WikiLeaks, está agora numa prisão britânica. Sabemos que a sua saúde está a piorar. Ele foi transferido para a enfermaria de Belmar. Ele enfrenta 17 acusações de espionagem nos Estados Unidos. Os EUA exigem a sua extradição. Esta é claramente uma guerra contra todos os editores, não apenas contra Assange. Ao mesmo tempo, Chelsea Manning está mais uma vez na prisão por se recusar a prestar depoimento no processo do grande júri que conduziu às novas acusações sob a Lei de Espionagem a Julian Assange. Você, Ai Weiwei e outras figuras internacionais têm protestado contra a prisão de Assange, e agora contra as novas acusações de espionagem. Por que dedica tempo de sua vida para protestar contra o tratamento de Julian Assange?
SH: Preocupo-me com Julian Assange porque ele tirou tempo da sua vida para lutar por nós. E quando digo por lutar por nós, para que lutemos pela própria possibilidade de termos informações. Ter informações sobre o que os governos mais poderosos ou organizações ou empresas secretas estão a fazer no mundo, da guerra no Afeganistão à guerra no Iraque. Não seria ótimo, por exemplo, agora com todas essas tensões com o Irão, alguém nos conseguisse mostrar o que realmente o Pentágono e o que Bolton e Pompeo e todos esses guerreiros brancos estão realmente a conspirar contra o Irão?
E o que o WikiLeaks fez foi, pela primeira vez na história moderna, criar um sistema em que você possa proteger corajosos delatores como Edward Snowden, Chelsea Manning e outros, para que pudessem publicar essas informações e tornarem-nas disponíveis para todos nós. Precisamente neste mundo de notícias falsas e imitações e nesta situação em que a verdade não importa mais. A detenção arbitrária na Embaixada do Equador é um grande escândalo para as democracias ocidentais.
Visitei frequentemente Julian na Embaixada do Equador e o espetáculo da sua entrada na Embaixada do Equador em Knightsbridge, Londres, diz tudo sobre o que há de errado com o mundo de hoje. Você sabe, ele esteve arbitrariamente detido durante sete anos num espaço muito pequeno da embaixada do Equador. Antes de entrar na embaixada do Equador, você passa pelo mais luxuoso shopping center, o Harrods. Você vai ver Ferraris, Lamborghinis, bem à frente da embaixada do Equador com chapas de matrícula da Arábia Saudita.
Você sabe que um editor está, para todos os efeitos, preso há sete anos. Ele conseguiu asilo político do então corajoso governo equatoriano, ao contrário do atual, que está a vender Julian por empréstimos do FMI e assim por diante. E isso já era um escândalo. O que está a acontecer agora, eu acho, é um escândalo ainda maior porque a democracia no Ocidente começa a morrer se alguém como Julian Assange continuar na prisão.
Descobri que Jeremy Hunt disse recentemente que Julian Assange poderia ter saído a qualquer momento. Acho, quero dizer, acho Jeremy Hunt o pior secretário de Relações Exteriores da história do Reino Unido. Não só porque disse que a Eslovênia era um estado vassalo, prova que obviamente não sabe nem mesmo geografia ou história quando comparado com líderes como Churchill que pelo menos tinha uma compreensão de geografia e geopolítica, mas também pela sua posição sobre Julian Assange.
O que está a acontecer hoje é que todos esses governos do Equador, agora até do Reino Unido, se reúnem com John Bolton, com Pompeo, e com as autoridades americanas que querem que Julian Assange seja extraditado para os Estados Unidos o mais rápido possível.
E por que é que isso é perigoso? Se isso acontecer, então, até mesmo falar sobre democracia será impossível porque não há democracia sem liberdade de expressão. Não há democracia sem a Primeira Emenda nos EUA. Não há democracia sem liberdade de imprensa. E não há democracia se você não tiver a capacidade de verificar as informações, de ter informações, que é o que está a acontecer no dia a dia, não só em países estrangeiros, como Iraque, Irão, Afeganistão, mas no seu próprio país [os EUA].
Quão profundamente, por exemplo, o Partido Democrata foi corrompido? Em vez de terem Bernie Sanders como candidato, escolheram Hillary Clinton, e Hillary Clinton divertia-se com a escolha de Trump como opositor pensando que ele era para ela o melhor candidato porque ele não tinha hipótese de vencer. Quer dizer, isso foi revelado pelo WikiLeaks, sem mencionar também todas as outras revelações sobre o papel de uma das corporações globais mais poderosas, a Google, nas eleições dos Estados Unidos, ou o que, por exemplo, a Palantir estava a fazer nos campos de detenção para crianças. Não seria então ótimo termos uma organização que publicasse todas essas informações que ainda são secretas?
Se a extradição de Julian Assange acontecer, acho que será impossível falar mais em democracia. Muitas outras pessoas, incluindo jornalistas, podem acabar na prisão também. E isso não está a acontecer na China. Isso não está a acontecer na Rússia. Isso está a acontecer no centro da civilização europeia, em Londres. Está a acontecer na Europa. E eu acho que este é o maior escândalo do início do século 21. Para além do próprio facto de alguém que não matou ninguém ser mantido numa prisão com assassinos em massa, com terroristas e outras pessoas basicamente 23 horas na sua cela.