(305) 1. Caídos do céu?
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A Europa está realmente a voltar-se para essa direita, não apenas em ideologia, mas na realidade.
Em cada ano a China constrói mais vias férreas para comboios de alta velocidade do que o total das vias férreas existentes na Alemanha.
A China está a usar o fracasso e a total incompetência da política externa europeia, porque não existe tal coisa como política externa europeia.
Vamos ter países onde as pessoas desfrutam de bom ar, areia e praias, e outros países que estão literalmente, literalmente a afogarem-se em lixo.
Durante todas estas décadas, foram-nos convencendo de que somos um homem ou mulher de sucesso se possuirmos um carro, se possuirmos uma casa, se possuirmos, se comprarmos, comprarmos, comprarmos e usarmos os mesmos produtos de merda.
Aqui deixo um excerto de uma interessante entrevista radiofónica concedida a 3 de julho de 2019, por Srecko Horvat, pensador e poeta da Croácia, sobre como ele entende o mundo em que vivemos. Ele é o autor de “O que quer a Europa?”, “Welcome to the Desert of Post-Socialism”, “The Radicality of Love” e “Poesia do futuro: por que um movimento de libertação global é a última hipótese da nossa civilização”. Juntamente com Yanis Varoufakis, é também um dos fundadores do “Movimento pela Democracia na Europa”.
Por conveniência de espaço, raramente inseri as longas perguntas do entrevistador (Jeremy Scahill), substituindo-as pelos tópicos abordados (1. Relação entre Donald Trump e o crescimento da extrema direita e dos movimentos neofascistas na Europa. 2. Sobre a experiência jugoslava e o revisionismo histórico que está a acontecer na Croácia. 3. Sobre os países da ex-Jugoslávia, a União Europeia, a Rússia e a China. 4. Sobre as consequências para a Europa da nova Rota da Seda após a implosão da economia grega. 5. Sobre a Jugoslávia de Josip Broz, conhecido como Marechal Tito, os Partisans e a luta contra o nazismo. 6. Sobre a dependência do turismo. 7. Sobre as praias particulares e a privatização do litoral. 8. Como a crise climática, o desaparecimento dos serviços públicos e sua substituição por privados, tem afetado a Croácia. 9. Sobre a importância do Movimento dos Não-Alinhados hoje. 10. O mundo já não é bipolar, mas a propaganda e a ideologia são muito parecidas com a Guerra Fria. 11. Esperança sem otimismo, como único caminho da resistência à libertação. 12. Sobre os problemas Julian Assange, Chelsea Manning, Edward Snowden, as leis de espionagem e a liberdade de imprensa.).
Optei por manter, até certo ponto, o tom coloquial da conversa tida no estúdio de gravação. Seguir-se-á a parte 2.
- Relação entre Donald Trump e o crescimento da extrema direita e dos movimentos neofascistas na Europa.
SH: Bem, eu começaria por dizer que o que podemos testemunhar hoje na Europa não é apenas uma ascensão da extrema direita, ou como lhe chamou, movimentos fascistas e líderes populistas que já estão no poder, como por exemplo Matteo Salvini na Itália, que não permite que os refugiados entrem nos portos italianos, ou Viktor Orbán, na Hungria. Você sabe, aquele que é famoso por dizer que acabou com a democracia e que estamos a viver na chamada era da "democracia i-liberal". E, claro, existem também outros líderes de extrema-direita, como Strache na Áustria, o que significa que a Europa está realmente a voltar-se para essa direita, não apenas em ideologia, mas na realidade.
Mas como mencionou Donald Trump e as semelhanças deles a Trump, eu diria que sim, eles são semelhantes a Trump. Se você tomar por exemplo a obra de Umberto Eco, o famoso escritor italiano, também um semiótico e muito interessante pensador político que escreveu um texto muito curto denominado “Ur-Fascismo”, ele enumera várias características do fascismo, das quais uma delas é o medo de estrangeiros. A outra é a misoginia, bem como outras características que ele coloca como fazendo parte do fascismo original. E se você juntar essas características, e as aplicar por exemplo, a Trump, Salvini, Bolsonaro, e a outros líderes em todo o mundo, verá que a situação atual hoje se assemelha realmente a esse tipo de Ur-Fascismo.
Mas eis o que é importante dizer, porque neste momento Trump está no Reino Unido, em visita o Reino Unido. Como provavelmente sabe, Angela Merkel, fez muito recentemente um discurso em Harvard. E qual é a relação entre estas duas coisas?
A interpretação ingénua que os liberais costumam fazer sobre a ascensão populista da extrema-direita, é apresentarem-na quase como se a ideologia de extrema-direita tivesse na realidade caído do céu.
Mas voltando a Merkel, em Harvard, você provavelmente já se apercebeu da forma como a comunicação social liberal tem escrito sobre isso: “Oh, ora aí está finalmente um líder europeu que irá dá lições a Trump, você sabe, que temos que derrubar as paredes e assim por diante”. Mas sabe onde é que Angela Merkel esteve poucas semanas antes?
Ela visitou a Croácia pouco antes das eleições europeias. E fez um discurso de rejeição, em que falava sobre rejeitar o nacionalismo. Contudo, esse discurso foi feito no comício político do partido conservador croata, que está muito envolvido no revisionismo histórico, tem problemas na fronteira com os refugiados e assim por diante. Ou seja, enquanto ela falava sobre rejeitar o nacionalismo, o que estava de facto a fazer era a apoiar o nacionalismo.
E penso que esse é o problema. Mesmo quando Angela Merkel fala em Harvard, o que temos que rejeitar é o nacionalismo. O que ela e o que o centro político fizeram realmente na Europa nos últimos anos, foi criarem os monstros, você sabe. Eles estavam a criar terreno fértil para o aparecimento dos Salvini, Orbán, Sebastian Kurz. De que forma? Por exemplo, ao impor a austeridade, criando novos buracos na periferia da União Europeia.
Os seus ouvintes provavelmente ainda se lembram do exemplo da Grécia e do referendo do Oxi (não) de 2015. Também aqui existe um paralelo com os Estados Unidos. Donald Trump também não caiu do céu. Acho que a classe liberal nos Estados Unidos tem realmente que se por uma questão muito séria: de onde veio realmente Donald Trump?
- Sobre a experiência jugoslava e o revisionismo histórico que está a acontecer na Croácia.
SH: É uma pergunta muito boa, e fico feliz que a tenha feito. Eu sei que você viajou muito pela ex-Jugoslávia, mesmo durante a guerra, e as pessoas geralmente não entendem a importância da sequência histórica jugoslava e a sua experiência do socialismo real.
Até Jeremy Hunt, o secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, quando visitou a Eslovénia - que era uma das repúblicas da Jugoslávia - na conferência de imprensa com outros líderes eslovenos, chegou a dizer que a Eslovénia era um estado “vassalo soviético”. Você provavelmente também sabe que nos EUA, Donald Trump chegou a afirmar que a Jugoslávia tinha desaparecido do Báltico, e não dos Balcãs. Ou seja, você pode ver que há muita confusão, até sobre geografia, mesmo que a Melania venha da Eslovénia— Na verdade, não sei quantas pessoas nos EUA sabem que a Eslovénia fazia parte da Jugoslávia.
JS: Uma das apresentadoras de um programa da MSNBC nos EUA, Joy-Ann Reid, disse que ela era da Jugoslávia Soviética.
SH: Isso é exatamente o que está sempre a acontecer. Mesmo quando me apresentam, dizem: "Oh, ele é um filósofo da Jugoslávia Soviética." O que nos leva diretamente de volta à sua pergunta, porque eu acho que a experiência jugoslava foi realmente especial precisamente porque não era soviética. Você sabe, a criação de um verdadeiro socialismo real aconteceu depois que Tito rompeu com Stalin e não quis seguir as regras do Comintern.
Voltando à sua pergunta sobre os anos 90, o que aconteceu após o colapso da Jugoslávia foi realmente esse apagar da história, que aconteceu de maneiras diferentes em diferentes repúblicas da Jugoslávia.
Na Croácia, infelizmente, por um lado, tomou a forma de expurgarem das escolas não só livros ligados a Marx, a Engels e assim por diante, mas também de Dostoiévski ou Tolstoi. A maioria dos livros que tenho hoje em casa foram apanhados pelos ciganos, vendidos em feiras da ladra, e assim por diante, onde os comprei.
Outra consequência, eu diria traumática, foi a destruição de monumentos antifascistas. O que aconteceu aqui na Iugoslávia foi a destruição de milhares de monumentos, o que foi realmente um movimento deliberado para apagar a história da luta de resistência dos Partisan a coberto de um grande projeto de modernização.
Esta situação, diria eu, não é apenas específica da Croácia. É muito interessante ver que esse tipo de revisionismo histórico, que na verdade está a transformar os derrotados na Segunda Guerra Mundial naqueles que conseguiram vencer, o que é claro, é falso, mas você pode ver que essa tendência está realmente a acontecer em muitos países pós-comunistas.
Se você for à Polónia, se for à Hungria, o arquivo György Lukács foi fechado, o que considero um grande escândalo. Na Polônia você tem essa ascensão das forças conservadoras cristãs ligadas ao aborto e assim por diante. Da mesma forma que nos Estados Unidos, você encontra o tipo de ficção científica do “Handmaid’s Tale” (A História de uma Serva), tornado realidade, na Polônia e nesses países também. Basicamente a minha interrogação é: porque é que esse revisionismo histórico floresce tanto, mais precisamente nos países pós-comunistas?
Eu diria precisamente porque o chamado “período de transição”, como eles o chamam no meio acadêmico, transição que significa a transição do comunismo para o capitalismo, não teve sucesso. Não teve sucesso porque se você olhar para esses países - Croácia, Sérvia, para não mencionar a Bósnia ou Kosovo - você verá que esses países são agora periferias meio-dependentes da União Europeia, que se encontram numa espécie de situação colonial de empresas alemãs, francesas, italianas, que basicamente se apoderaram de todas as empresas que antes eram estatais, da infraestrutura, dos bancos aos correios, e assim por diante.
E então a questão é a de realmente saber se se tem algum tipo de soberania. E se você realmente não tem nenhum tipo de soberania, que é o que acontece não só nesses países, já se viu isso com uma série de experiências na Grécia, se você não tem soberania real, então a solução é recorrer muitas vezes ao revisionismo histórico, que significa construir uma espécie de identidade no sentido de a “América primeiro”, a “Croácia primeiro”, o que for primeiro. Mas esse é um tipo de identidade falsa de identidade nacional, que acho ser uma ideia muito problemática para o século 21, visto que o próprio conceito de soberania mudará completamente nas próximas décadas.
- Sobre os países da ex-Jugoslávia, a União Europeia, a Rússia e a China.
SH: Eu diria que os Balcãs e a ex-Jugoslávia são a parte da Europa que geopoliticamente se está a tornar num dos lugares mais interessantes. Mas para quem aqui viva, a situação está a tornar-se muito preocupante, podem-se ver várias tendências em diferentes países. E, claro, agora temos novas fronteiras. Alguns países fazem parte da União Europeia, como a Eslovénia, a Croácia, e então, sabe, a União Europeia envia a FRONTEX, que é o exército que trata dos refugiados e protege as fronteiras externas. Portanto, coloca a FRONTEX entre a Croácia e a Bósnia, o que vai criar uma divisão ainda maior.
Mas o que acho mais interessante é a Sérvia. Passei muito tempo na Sérvia, tenho muitos amigos lá, visito-a com frequência. Na Sérvia, você pode ver a forma que assume o fracasso da União Europeia. Fracasso no sentido de que a União Europeia já não é tão atraente para os países que foram candidatos há 10 anos. Penso que todos na Sérvia gostariam de entrar na União Europeia. Se você for lá hoje, já não vê esse entusiasmo. Em vez disso, como você disse, vê capital e influência russa.
Vladimir Putin visitou recentemente, no ano passado, Belgrado. Havia 100 mil pessoas à espera dele, o que era, claro, um espetáculo de teatro de Vucic, que basicamente pagava às pessoas, pagava as passagens de autocarros de vilarejos da Sérvia e sanduíches, literalmente assim, para virem a Belgrado. Isto dá-lhe para poder imaginar o tipo de situação terrível que a população da Sérvia vive nesses vilarejos, porque eles geralmente não têm a oportunidade de virem a Belgrado.
Mas Putin fez isso por um motivo muito particular, pelo Nord Stream. Nord Stream, que nos mostra que a Europa está no meio de uma nova batalha energética entre os Estados Unidos e a Rússia. Você sabe quem vai fornecer o gás natural à Europa? Serão os russos ou os EUA? O mesmo está a acontecer na Alemanha, onde vivi nestes últimos dois meses. Acompanhei lá o debate. Há um grande debate também sobre precisamente a mesma questão.
Voltando para a Sérvia. Por um lado, você pode ver a influência da Rússia, ligada ao gás natural. Por outro lado, Belgrado como cidade está a mudar completamente. Está a transformar-se numa nova Dubai. Você tem arranha-céus. Você tem os Emirados Árabes Unidos a construir esses projetos feios. E você tem também a China.
E falando sobre a China, torna-se realmente interessante verificar como a China está a usar o fracasso e a total incompetência da política externa europeia, porque não existe tal coisa como política externa europeia, como vocês podem ver. Por um lado, você tem Angela Merkel a fazer um discurso em Harvard, criticando Trump, embora não o tenha nomeado pelo nome, mas nós sabemos. E por outro lado, você tem a família real em Londres, cumprimentando Trump como se fosse um filme mau de Terry Gilliam, do Brasil ou algo parecido.
Portanto, a incompetência da Europa no que diz respeito à política externa criou um campo aberto nos Balcãs para diferentes interesses geopolíticos. Sobre a China, é importante referir um dos maiores projetos de infraestrutura do início do século 21, o projeto One Belt One Road, construindo uma via férrea rápida da China à Europa. Devíamos dar um passo atrás. De forma a evitar que a política externa da Europa, mas também a política econômica, tivessem criado a possibilidade de a China se abalançar desta forma para a Europa, construindo a infraestrutura.
E se você voltar à Grécia, em 2015, àquele momento bastante importante, quando 61 por cento da população grega votou “oxi” [não] no referendo. Eles votaram contra as medidas de austeridade, que foram impostas por instituições europeias, pelo Banco Central Europeu e outros, que constituem a linha oficial da Europa: você sabe que se necessitar mais austeridade, você vai precisar de vender bens públicos - aeroportos, portos. E então o que aconteceu, é claro, é que o governo grego do Syriza foi forçado a vender o porto do Pireu, que é um dos portos mais estratégicos do Mar Mediterrâneo, à empresa chinesa COSCO.
E o que os chineses querem fazer é transportar mercadorias, e já estão a fazer isso diretamente para o porto de Pireu, seguindo depois daí por via férrea que estão a construir até à Macedônia, e da Bulgária para a Sérvia. O primeiro-ministro chinês esteve na Sérvia no ano passado e fizeram um acordo com Vucic e Viktor Orban, o que significa que têm já um projeto, eu acho, para construir uma nova ferrovia, de Belgrado a Budapeste
- Sobre as consequências para a Europa da nova Rota da Seda após a implosão da economia grega.
SH: Bem, acho que as consequências são realmente grandes. Quer dizer, já hoje, é impossível evitar produtos chineses em qualquer parte. Mas o que eles farão, o que eles perceberam, o que a China percebeu é que o transporte de produtos por navios é muito lento. E às vezes você também tem problemas com os piratas somalis e assim por diante. Não sei se eles ainda estão ativos, mas é muito lento. E tempo é dinheiro, como diz a mantra do capitalismo, e eles perceberam que, se forem capazes de transportar os produtos de Pequim, digamos, para Hamburgo, em duas semanas, isso aumentará ainda mais o seu poder geopolítico.
O que significará isso para os Balcãs e para o futuro da União Europeia, direi da seguinte forma: Por que não é a própria Europa a investir em grandes projetos de infraestrutura? Por que não está a Europa a construir comboios? Você sabia que em cada ano a China constrói mais vias férreas para comboios de alta velocidade do que a Alemanha tem no total?
SH: Há um ano, ou por essa altura, a viagem de comboio entre Zagreb e Belgrado levava cerca de sete ou oito horas. São cerca de 350-400 quilômetros. E de acordo com os dados que encontrei, esta mesma viagem durante o monarquia austro-húngaro que foi, como sabe, muito tempo atrás, demorava menos do que hoje. Então você pode ver que a infraestrutura está completamente ultrapassada. Está devastada, é claro, por causa da corrupção, por causa da austeridade e assim por diante.
E para um comboio chinês, essa viagem levará provavelmente, uma hora, mas há um problema, é claro. Você sabe, há um problema porque nas construções que os chineses fazem, basicamente, esses carris, tanto quanto sei, talvez esteja errado, não serão usados para transporte de passageiros, mas principalmente para o transporte de mercadorias.
Mas voltando à Europa, você sabe, o que você pode detetar aqui com tudo o que falámos, a situação na Sérvia, a situação na Croácia, sem falar, no que está a acontecer na Áustria. Haverá eleições antecipadas em setembro. Agora há eleições antecipadas na Grécia, com a Nova Democracia a crescer. Você pode ver que a Europa está numa crise profunda. E não é apenas esse tipo de crise de identidade, acho que é uma grave crise interna e uma grave crise geopolítica.
E enquanto a Europa está nesta crise, não sendo capaz de encontrar um caminho político comum, que deveria seguir, está a perder terreno para os outros jogadores, para a China, Rússia, árabes e assim por diante, e até mesmo para os EUA. Você pode ver isso na visita de Trump ao Reino Unido.
Então, você tem uma Europa que não está unida. Você tem uma Europa que, na verdade, está a entregar a sua própria infraestrutura em vez de investir na infraestrutura. Você tem uma Europa que talvez do ponto de vista americano, seja ainda a Europa do cinema de Paris, de Roma e todo esse tipo de merda utópica sobre a Europa. Mas a situação aqui é realmente muito preocupante. E o que acontecer na Europa terá consequências profundas nos EUA, como sempre teve no resto do mundo. Não se esqueça que as duas guerras mundiais começaram na Europa, que nos anos 90 tivemos a dissolução da Jugoslávia, o que também, como podemos ver agora, também tem consequências no resto da Europa.
- Sobre a Jugoslávia de Josip Broz, conhecido como Marechal Tito, os Partisans e a luta contra o nazismo.
SH: É uma ótima pergunta e acho que toda a experiência jugoslava tem muitas lições aproveitáveis para a situação hoje. Deixe-me primeiro dizer que definitivamente não sou alguém nostálgico. Sou uma pessoa muito crítica da experiência jugoslava por diversos motivos dos quais podemos falar. Ao mesmo tempo, penso que esta consequência histórica da segunda guerra mundial é tão importante hoje, porque mostra várias coisas.
Em primeiro lugar, para entender melhor, é preciso imaginar um mapa da Europa com a cor vermelha, e a cor vermelha representa os nazistas que ocuparam países. E se você olhar para a Europa nos anos 40, início dos 40 do século passado, verá que a maior parte da Europa é vermelha. Não é vermelho no sentido de comunismo, mas por representar a ocupação nazista.
E a ex-Jugoslávia, naquela época, era a Jugoslávia, mas ainda não era socialista, também estava ocupada. Na Croácia e na Sérvia, com regimes colaboracionistas fantoches. Na Sérvia nessa altura, havia um movimento comunista de guerrilhas. Basicamente, foi realmente um movimento de guerrilha, antes mesmo dos movimentos de guerrilha aparecerem na América Latina e assim por diante. Porque o terreno na Jugoslávia é cheio de montanhas, rios, ilhas e assim por diante.
E os guerrilheiros jugoslavos liderados por Tito e muitos outros, e também por mulheres, foi na verdade o único movimento de resistência que eu diria existir na Europa. Como sabemos, tínhamos movimentos de resistência na França. Tínhamos o movimento de resistência grego e assim por diante, mas eu diria que os guerrilheiros jugoslavos foram os únicos que conseguiram usar a situação de guerra e de ocupação total para criar uma revolução social. Não foi só, “ah, saímos da guerra” e depois “tudo tem que mudar para que tudo continue igual”, como diria Lampedusa.
Aqui não foi assim. Não foi apenas uma continuação de um tipo liberal de sistema. Foi uma tentativa de transformar radicalmente a sociedade. E você mencionou Gavrilo Princip, que foi quem atirou em Franz Ferdinand. As pessoas dizem que ele é o responsável pela primeira guerra mundial. Bem, na época em que Gavrilo Princip participou, estávamos no início do século XX. Naquela época, 95% da população da Bósnia donde Gavrilo Princip vinha - quero dizer, ele estava lá - 95% da população da Bósnia era analfabeta.
Agora, a situação é completamente oposta. Você sabe, por causa do projeto de modernização da Jugoslávia, que era construir estradas, construir edifícios, sabe, no MoMA, o museu de Nova York teve recentemente uma muito boa exposição, chamada “Utopia Concreta”, sobre arquitetura jugoslava. E é muito triste que aqui na Croácia, na Sérvia e assim por diante, esses edifícios fantásticos que parecem obras de ficção científica estejam devastados, em ruínas, ninguém realmente se importa. E é o Museu de Arte Moderna de Nova York, que nos mostra que tipo de arquitetura tínhamos. Então era arquitetura, era um projeto de modernização, que incluía todas as esferas da vida.
E bem, eu poderia falar mais sobre isso, mas deixe-me apenas dizer que se há três lições da experiência jugoslava, eu diria que a primeira - três lições para os nossos tempos sombrios e distópicos de hoje - a primeira lição é o antifascismo e de que forma você pode realmente liderar uma luta bem-sucedida contra o fascismo.
Aqui também é importante citar todas as negociações que ocorreram entre Tito e Fitzroy Maclean - por um lado, que foi a verdadeira inspiração para o personagem de James Bond, e que lutou junto com os Partisans, da Bósnia à Ilha de Vis - e Winston Churchill, que não considero a personagem mais positiva da história. Mas, e essa é uma grande lição, Winston Churchill percebeu que a única maneira de vencer a Segunda Guerra Mundial era fazer uma aliança mesmo com aqueles que ele mais desprezava, ou seja, os comunistas, mas ele fê-lo por razões estratégicas.
E eu acho que isso é, você sabe, o fracasso de hoje, onde o establishment liberal, o chamado centro político, tem muito medo de alianças com a esquerda. Em vez de ter alianças com a esquerda, eles fazem de tudo para diminuir a esquerda. A Jugoslávia é uma boa lição, eu diria, para mostrar que, se realmente quisermos sair dessa situação geopolítica muito perigosa de hoje, precisaremos de algumas novas alianças, mesmo que sejam apenas táticas.
A segunda lição - então, a primeira lição é o antifascismo e como derrotar o fascismo. A segunda lição é autogestão. É por isso que fico tão irritado quando todas essas pessoas falam sobre a Jugoslávia Soviética. A principal diferença foi realmente o que Tito fez em 1948, quando rompeu com Stalin e o Comintern, e introduziu o projeto de autogestão que, na prática, bem, realmente não funcionou, mas a ideia era boa.
A ideia era que a mais-valia do trabalho feito pelos trabalhadores não iria para os gestores e banqueiros e assim por diante, mas que voltaria para eles para poderem decidir sobre o seu futuro. Então, não é apenas democracia. Era para ser democracia econômica. Por diferentes razões não deu certo.
Podemos falar sobre isso também, mas acho que hoje continua a ser uma ideia muito importante, em que um gerente numa empresa como CEO tem um salário 400 ou 1.000 vezes maior do que um trabalhador da mesma empresa e essa tendência dos anos 70 e assim por diante que começou com Margaret Thatcher e Ronald Regan,.
SH: Sabe, acabei de voltar de Berlim e em Berlim há, como em todas as cidades europeias, uma enorme crise habitacional, que é, por um lado, consequência do capitalismo monopolista. Você sabe, as grandes empresas compram muitos apartamentos numa cidade e os preços sobem e, por outro lado, é uma consequência do chamado capitalismo de plataforma que significa a AirBNB-ificanização (Uber-ização) de tudo.
O que de uma forma muito simples significa que se um estudante de uma pequena aldeia croata ou espanhola quiser vir para Barcelona ou Zagreb, é muito difícil encontrar um apartamento para morar no centro da cidade porque é muito mais lucrativo alugar um apartamento ao Airbnb, e isso constitui um grande problema.
Em Berlim, eles tiveram um problema enorme quando uma empresa conseguiu comprar mais de 3.000 apartamentos e com isso mudou completamente todo o mercado de habitação em Berlim. Porque se você tem 3.000 apartamentos, basicamente, é você quem pode decidir os preços. É o chamado capitalismo monopolista.
Na Jugoslávia, tínhamos habitação social. Isso não só o pode surpreender, porque soará como notícia falsa que eu a tivesse inventado agora, mas venha à costa croata, você saberá, você já esteve na costa croata. Você verá até hotéis onde os trabalhadores iam de férias, o que fazia parte do contrato.
- Sobre a dependência do turismo.
SH: Sim, mas é exatamente isso que é fascinante. Acho que a maioria das pessoas que nos estão a ouvir agora vão pensar que viemos de um passado comunista, sabe, esse tipo de departamento de propaganda, mas não é. Você sabe, eu não sei se está aberto, mas a exposição “Utopia Concreta” no Museu de Arte Moderna de Nova York, também mostra esses hotéis como bangalôs, e assim por diante. E além de dar a todas essas pessoas, aos trabalhadores, a oportunidade de irem passar férias no litoral, sabe, também acho que foi muito importante para a diversidade e o intercâmbio entre os diversos países da Jugoslávia.
A Europa teve ou ainda tem o programa Erasmus, que se destina principalmente a alunos que depois obtêm uma bolsa para viajar pela Europa. Mas acho que o que precisamos hoje é uma espécie de Erasmus universal, você sabe. E se, por exemplo, um funcionário dos correios britânico pudesse ir para a Croácia e o funcionário dos correios croata pudesse ir para Londres e houvesse um sistema organizado de trocas e assim por diante?
Eu diria que você veria imediatamente a queda do populismo de direita e assim por diante, porque a maioria das pessoas simplesmente não viaja, isso é um grande problema. É claro que, com a mudança climática e a crise climática, também poderíamos colocar questões como a de saber se as pessoas deveriam viajar tanto.
Você mencionou o turismo. Um grande problema para esses países da periferia da União Europeia - Espanha, Portugal, Grécia, Croácia inclusive - é o turismo. Porque é um problema? É um problema porque - vou dar-lhe apenas os números da Croácia - Croácia e Malta são os dois principais países do mundo quando se trata de participação no PIB do turismo - para a Croácia, acho que está acima de 18% agora, o que significa que basicamente você tem uma economia que é totalmente dependente do turismo.
E você sabe, quando você está totalmente dependente do turismo, você também está dependente do clima, ou por exemplo, se alguma situação geopolítica muda ou se acontece um ataque terrorista como na Tunísia, tudo pode mudar e então não há mais 18 por cento do PIB e não há mais indústria porque não temos mais indústria depois do chamado período de transição do comunismo para o capitalismo. Isto é um grande problema.