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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(302) A humanização dos vírus

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Desde o princípio, para se situar no mundo, para o poder entender, o ser humano imaginou tudo à sua medida.

 

Falamos hoje dos vírus como se eles se desenvolvessem num quadro humano, atribuindo-lhes propriedades humanas que não têm, projeções de nós próprios e da civilização em que vivemos.

 

Os vírus não sofrem mutações para se tornarem mais infeciosos.

 

As mutações de DNA e de RNA são pré-adaptativas, o que significa que acontecem por acaso, e depois se verá o que acontece.

 

 

 

 

 

No passeio frente à minha janela vejo todos os dias dezenas de cães e cãezinhos a passearem os seus donos, umas vezes puxando pela trela, outras sendo puxados. Para além do ritual diário de transformarem o passeio público em urinol e excretório, o que, segundo já me tentaram explicar, parece ser bastante higiénico e ecológico, na medida em que comunicam às pedras do passeio a quantidade de azoto suficiente para elas acabarem por criar aquela patine amarelada que lhes confere falsa antiguidade acrescentando ainda nutrientes essenciais ao solo, tenho notado também algo muito querido: além de os pequenos animais se parecerem cada vez mais com os donos (vestem-se com os mesmos tons ou com tecidos do forro dos abrigos, alguns com sapatinhos qual pequenas sabrinas, param nos mesmos sítios onde é costume os donos pararem para conversar, aguardam pelos telefonemas dos donos quando os veem tirar o telemóvel do bolso, etc.), também os donos se parecem mais com os pequenos animais (conversam com eles como estão habituados a fazer com os bebés e crianças, dão-lhes beijinhos, zangam-se com eles, dão-lhes ordens, explicam-lhes o passeio, param para os deixarem ‘cãoversar’, etc.).

Interpretam todos os seus gestos corporais como sinais de inteligência e entendimento sobre o pequeno conteúdo do pequeno conceito envolvido, dando mesmo como evidentes o conhecimento que eles têm sobre relações familiares como pais, filhos, irmãos, primos, etc.

É uma ternura assistir a esta troca de impressões, se a entendermos como definitória do comportamento básico do ser humano na sua abordagem do meio envolvente: desde o princípio que, para se situar no mundo, para o poder entender, imaginou tudo à sua medida (o que não é o mesmo que ser a medida de todas as coisas, isso foi bastante mais tarde).

 

Zangar-se com o Sol que desapareceu, temer o escuro, a noite e a Lua, recear o crocodilo (se viver perto de rios) ou o puma (se viver nas florestas), fazia parte da vivência diária. Atribuir-lhes comportamentos, vontades e sentires humanos (não poderiam ser outros), fazer deles deuses bons e maus, foi o caminho seguido. Percebemos hoje, tratava-se de humanizar o meio em que se vivia.

Não espanta que ainda agora na “conquista“ espacial se fale em “terraformar” os planetas para onde nos intentam dirigir, ou seja, alterar deliberadamente o clima, atmosfera e outras propriedades naturais desses planetas à medida do humano, para permitir a colonização.

A nível mais pequeno (que não menos complexo) continuamos ainda hoje a falar dos vírus como se eles se desenvolvessem num quadro humano, atribuindo-lhes propriedades humanas que não têm, projeções de nós próprios e da civilização em que vivemos.

É assim que se admite que eles nascem, crescem, desenvolvem-se e morrem. Que eles escolhem quem infetar, tendo preferências de raça, de idade ou de lugar (ou de religião – como já acontecera com os judeus na Lisboa da peste - e talvez até de partido). Que têm famílias, sendo umas piores que outras. E o que demais se diz.

 

E, no entanto, o mundo existe independentemente de nós. Pensar o mundo é já humanizá-lo, atribuir-lhe caraterísticas humanas, como princípio e fim e leis físicas e outras que funcionam (vão funcionando) à medida que vamos alterando as nossas necessidades e os nossos conhecimentos.

E, contudo, o vírus não nos pensa, porque o pensar (este tipo de pensar) é caraterístico dos humanos e até porque provavelmente não precisa de o fazer. O seu referencial (se o tem, ou se o necessita de ter) é outro. No entanto, muito antes de nós aparecermos, já cá estava. E certamente, cá ficará muito depois de nós desaparecermos. Talvez tenhamos mesmo de mudar de paradigma. (1)

 

Esta humanização está de tal maneira enraizada que até os cientistas têm dificuldade em escapar-lhe. Como se pode notar neste excelente artigo, “Porque sofrem os vírus mutações?”, de Miguel Pita, geneticista, professor e pesquisador da Universidade Autónoma de Madrid, autor de Um dia na vida de um vírus (Periférico), que aqui deixo:

 

 “Tudo o que depende do material genético está sujeito a sofrer mutações e mais mutações. Tanto o SARS-CoV-2, que é um vírus de RNA (2) quanto nós, seres humanos de DNA e RNA, mudamos progressivamente. O DNA (como o RNA) é uma macromolécula formada pela união de muitas outras moléculas menores que, quando colocadas em linha, geram uma enorme sequência. A ordem de colocação das peças na sequência produz um texto, semelhante a uma palavra composta por milhões de letras. Este texto contém as instruções para o funcionamento de seu portador, seja uma partícula viral (cada membro do exército do vírus) ou uma célula de um ser humano.

Chamamos de mutação a uma mudança numa ou mais letras dentro dessa megapalavra. Essa mudança às vezes altera o significado de uma mensagem e outras vezes não, da mesma forma que num texto escrito, alguns erros dificultam a compreensão e outros não.

 

O RNA do SARS-CoV-2 tem cerca de 30.000 letras (3), e uma das etapas fundamentais na disseminação do vírus é fazer cópias dessa megapalavra para cada uma de suas futuras partículas virais. Para fazer isso, uma vez dentro de uma célula infetada, ele usa uma copiadora molecular bastante precisa, só que tudo tem um limite. Cada partícula viral pode-se replicar milhares de vezes numa célula, podendo infetar milhões de células no mesmo indivíduo e, se ocasionar uma pandemia, infetar milhões de pessoas simultaneamente.

 É lógico que, com tanta atividade, ocorram erros na cópia do RNA, é uma questão de probabilidade. Quanto mais cópias se fizerem de algo, maior será a probabilidade de se cometerem erros. Podemos recitar de memória os nossos primeiros oito sobrenomes, mas se o fizermos cem vezes, ficaremos confusos.

 

A mutação, portanto, não é um acontecimento inesperado, o DNA e o RNA são moléculas dinâmicas que são frequentemente copiadas para desempenhar as suas funções. Eles passam por mudanças, eles sofrem mutações, como parte da sua existência orgânica. O nosso DNA também sofre mutações: as manchas na nossa pele ou as células cancerosas vêm desses erros inevitáveis. Na verdade, embora não as chamemos de mutações, as alterações progressivas no DNA são responsáveis ​​pelas transformações que fomos sofrendo relativamente às fotos que temos de nós há dez anos atrás.

 

O DNA e o RNA sofrem modificações sem nenhum propósito. Podemos ouvir afirmações como: “Não é de estranhar que os vírus sofram mutações para se tornarem mais infeciosos”, mas devemos entender que essas modificações não ocorrem com qualquer finalidade. As mutações são pré-adaptativas, o que significa que acontecem por acaso, e depois se verá o que acontece.

Se as novidades tornam o portador um melhor sobrevivente e facilitam a sua reprodução, terão a tendência a espalharem-se, mas se representarem um peso, um travão, a tendência será desaparecerem. Portanto, o fato de as mudanças serem aleatórias não contradiz a ideia de que mais variantes virais infeciosas possam aparecer com frequência. O RNA dos vírus sofre mutações e alguns produzem partículas de vírus mais contagiosas e outras menos.

 

Por pura competição, os mais transmissíveis tendem a impor-se aos menos transmissíveis. Para dizer de forma gráfica, se uma partícula de vírus colocou a sua toalha para ocupar um lugar na praia, não há lugar para outra, ou pelo menos torna-se mais difícil. Ou seja, os vírus não sofrem uma mutação para serem mais infeciosos. Os vírus sofrem mutação e, se produzirem variantes mais infeciosas, notaremos a sua presença porque são mais bem-sucedidos.

 Assim, para analisar a importância de uma mutação, antes de mais nada, é necessário ter claro se ela tem ou não efeito. Por exemplo, mudar numa frase a palavra “carro” por “automóvel” pode considerar-se que é uma mudança sem efeito. Uma mutação equivalente num vírus, não seria nem um benefício nem um peso ou travão para o vírus.

 

Recentemente, foi descrita a variante VUI - 202012/01 do SARS-CoV-2 (4), que tem aumentado a sua presença relativa, sugerindo poder ser mais contagiosa. Tudo parece indicar que as mutações que sofreu têm um efeito claro. Uma das mudanças no seu texto provoca uma modificação subtil na peça que permite que as partículas virais se unam às nossas células, a proteína S. Nas partículas virais que carregam esse novo texto, a sua nova proteína S é mais eficiente para se ligar às nossas células, facilitando a sua entrada. Podemos imaginá-lo mais pegajoso, e por isso mais contagioso: na sua circulação pelas vias respiratórias adere imediatamente a uma de nossas células para iniciar a infeção.

 

Até ao momento não podemos garantir que as mutações desta variante tenham outros efeitos, mas podemos propor um desfecho lógico possível: se for demonstrado que é realmente uma cepa mais contagiosa, ela continuará a comer o chão das outras e aumentará a sua presença e, potencialmente, o número de indivíduos infetados. Felizmente, a capacidade de contágio não está associada a uma maior agressividade.

 De facto, quando surge uma variante muito agressiva, ela tende a diminuir a sua capacidade de contágio, pois como o infetado poderá acabar acamado, isso impedi-lo-á de levar um estilo de vida que lhe permita estar rodeado de pessoas para contaminar. Por isto, a agressividade e a capacidade de contágio costumam equilibrar-se, mas ainda não sabemos se é esse o caso com essa variante. Na verdade, os resultados preliminares não mostram diferenças significativas na sua agressividade.

 É claro que o acumular progressivo de mutações também pode tornar um vírus irreconhecível quando comparado com os seus antecessores, da mesma forma quando nos compararmos como com quando tínhamos cinco anos de idade.

 

O SARS-CoV-2 não é um vírus particularmente mutável; outros, como o vírus da gripe, sofrem mutações muito rapidamente e em cada ano tornam-se num novo inimigo. Mais uma vez, felizmente, nenhuma das variantes do SARS-CoV-2 que apareceu, parece ter sofrido uma grande reforma no seu RNA. Mas num momento de grande expansão do vírus, como o atual, aumentam as probabilidades de continuarem a aparecer novas mutações. Em resumo, podemos dizer que o SARS-CoV-2 é um vírus muito contagioso e, até o momento, aparentemente pouco mutante.

 No entanto, o grande número de casos é o melhor aliado das mudanças futuras, e a melhor maneira de combatê-las é diminuindo a taxa de cópias. No momento não é fácil de evitar que, se infetar nossas células, venha a ser copiado milhares de vezes e possa sofrer mutações. Mas podemos evitar com o nosso comportamento que o número de indivíduos infetados cresça, garantindo assim que mude menos.”

 

 

 

(1)https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/2018/01/.

(2)https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/301-o-achatamento-cultural-85134

(3)https://elpais.com/elpais/2020/05/09/ciencia/1589059080_203445.html

(4)https://elpais.com/ciencia/2020-12-21/bendita-mutacion.html

 

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