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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(294) A tradição quebrada, segundo Hannah Arendt

Tempo estimado de leitura: 20 minutos.

 

Já antes lhes tinham dito: Tu não deves matar; e eles não mataram. Agora dizemos-lhes: tu matarás; e embora eles pensem que é difícil matar, eles fazem-no porque agora faz parte do código de conduta.

 

O totalitarismo apela para as necessidades emocionais mais perigosas de pessoas que vivem em completo isolamento e com medo dos outros.

 

Temos medo de ter medo. Esta é uma das principais motivações. Mas nós temos medo da liberdade.

 

O que também é peculiar da nossa época, é a intrusão maciça do crime na vida política.

 

Sabemos hoje que o maior perigo de tirania vem do executivo […] A segurança nacional cobre agora todos os tipos de crimes. Por exemplo, o presidente tem todos os direitos. Ele está acima da lei e o seu raciocínio é sempre que tudo o que ele faz, fá-lo em prol da segurança nacional.

 

A América não é um Estado-nação […] Este país não está unido nem pela herança, nem pelas memórias, nem pelo solo, nem pela língua, nem por uma origem idêntica. Não há americanos genuínos aqui, além dos índios.

 

A principal característica de qualquer acontecimento é que não foi previsto.

 

Sempre fomos alfabetizados, porque não se pode ser judeu sem ser alfabetizado.

 

 

Vai ser Hannah Arendt o primeiro filósofo a utilizar o conceito de “quebra de tradição” (e há quebra de tradição sempre que o passado deixar de ser transmitido de geração em geração) sob um ponto de vista histórico, político e moral, como uma das principais caraterísticas da passagem para a contemporaneidade.

Até agora a importância que a ideia de autoridade tem assumido nos vários tipos de governo, desde a fundação de Roma até meados do século XX, a importância da cultura e da educação baseada no conhecimento do passado, a importância da inspiração platónica de princípios de moral cristãos, tem sempre enformado as várias épocas que se têm sucedido.

Na atualidade o que se verifica é que, politicamente, desde o aparecimento do totalitarismo que a autoridade tem vindo a ser desprezada; que eticamente, os princípios da moralidade ocidental têm já falta de vigor; que culturalmente, o que é fomentado é o entretenimento instantâneo em detrimento do conhecimento do passado.

 

A tradição histórica ou política a que Arendt se refere tem que ver com a que nasceu em Roma durante a sua fundação, e sua posterior transmissão de geração em geração, onde se enaltecia a importância da figura da autoridade, no sentido de aumentar o caracter sagrado desse começo fundamental mas onde se supunha o estabelecimento de leis positivas que limitando a liberdade do cidadão também a possibilitam, e, em que por outro lado, se reconhecia a natureza instrumental da violência, ou seja, em que a violência só era reconhecida se se utilizasse como meio para alcançar fins a curto prazo, e não como um fim em si mesmo.

 

Esta tradição perdurou até meados do século XX, quando apareceu a dominação totalitária. O que distingue a dominação totalitária de outros regimes ditatoriais conhecidos?

O aparecimento do conceito de inimigos objetivos (e não inimigos suspeitos), a eliminação da possibilidade de agir (e não limitação da possibilidade de agir), os desejos de um líder (e não ordens de um ditador) e o terror ou violência como fim em si mesmo (e não violência instrumental).

Para Arendt, o total menosprezo pela ideia de autoridade e a generalização da violência entendida como puro terror que caracterizam os movimentos totalitários, constituem os verdadeiros fatores que conduziram à quebra da tradição histórica ou política.

 

Vejamos: a estabilidade das leis da Constituição que garantem a autoridade é perfeitamente dispensada pelo líder totalitário, que vê nela uma limitação à sua intervenção, à variabilidade dos seus desejos. Hitler nunca alterou a constituição de Weimar, nem nunca se incomodou em respeitá-la, o que indica claramente que o que lhe interessava não era a autoridade, mas um poder absoluto.

Se a oposição num regime ditatorial já é difícil, num regime em que o desprezo pela Constituição é total, a oposição não tem qualquer sentido, uma vez que qualquer possibilidade de agir é eliminada.

O fim da autoridade está intimamente relacionado com o aparecimento do conceito de “inimigo objetivo” segundo o qual não é preciso ser suspeito para ser considerado como inimigo. Inimigo é todo aquele que o líder defina como tal. Nenhum membro da população está assim a salvo, pois não se trata só dos adversários políticos, mas até de qualquer cidadão inocente que nem sequer tenha pensado em cometer o “crime” de se opor ao regime.

 

Mas a verdadeira essência onde o regime totalitário mais se diferencia dos regimes anteriores é na utilização de uma violência que se assume como um fim em si mesmo, ou seja, na utilização do terror quotidiano e permanente.

O seu máximo expoente é visível nos campos de concentração e de extermínio, onde os seres humanos não passam de coisas supérfluas e em que a aniquilação vinha indistintamente e sobre as mais variadas formas. Mas tal terror encontrava-se espalhado de forma efetiva a toda a sociedade, para que ninguém se pudesse sentir seguro sobre o que poderia fazer ou poderia ser.

Foi esta conjugação do fim da autoridade e de uma violência programada para o terror que, abrindo portas ao totalitarismo, provocou a rutura, a quebra de tradição na nossa história.

 

Mas como tudo isto aconteceu no século passado, e como já não vivemos num contexto de dominação totalitária, somos facilmente levados a intuir que estamos bem longe dessa realidade e da possibilidade da sua repetição.

 E, contudo, ainda hoje há uma crise de autoridade (nomeadamente à vista em domínios em que deveria ser natural, como na família e na escola) e, com o aparecimento do terrorismo (como banalização da morte), a fronteira entre a violência e o terror é muito ténue.

E como nos esquecemos da importância da política e da nossa responsabilidade sobre o seu rumo (a necessidade de pensar a política, de reencontrar a sua finalidade que é a da liberdade política apenas garantida pela autoridade de leis positivas), enaltecendo em seu lugar uma preocupação exclusiva com a vida esgotada em necessidades e satisfações “vitais”, tal pode levar-nos a uma distração sobre os verdadeiros problemas, pelo que é muito bem possível que os movimentos totalitários não façam só parte de uma realidade do passado.

 

 

A tradição moral é o conceito segundo o qual se dá a perpetuação social de princípios morais fundamentais desde o passado. Para esta perpetuação contribuem os dispositivos sociais de condutas, ou seja, a moral social. É a moral social que é o garante desta perpetuação. Há, contudo, no domínio moral, algo que ultrapassa a moral social, e que é a moral individual, aquele domínio das questões morais que os indivíduos se colocam a si próprios.

Hannah Arendt distingue entre consciência (consciousness) e consciência moral (conscience), onde a consciência moral é determinada pela moral social, prescrevendo princípios positivos relativamente à conduta humana. Por outro lado, a consciência é a que pertence ao indivíduo quando este se encontra consigo próprio.

Neste diálogo interior, a consciência não prescreve princípios positivos, normas de como se deve agir, impedindo-nos antes de agir de determinado modo. Ou seja, o diálogo silencioso do pensar permite-me não só o olhar retrospetivo sobre os meus atos, como é ainda fundamental no momento anterior à ação moral, porque, não nos dizendo especificamente o que fazer, impede-nos, contudo, de fazer certas coisas.

Ora é a esta consciência moral que os acontecimentos totalitários vão renunciar. Os dois princípios que mais perduraram ao longo da civilização ocidental e que dizem que o matar e o mentir correspondem ao mal, foram exatamente aqueles que mais contrariados foram por Hitler e Estaline.

O que permite concluir que em determinados contextos ideológicos, não é possível garantir que a tradição da força social tenha força suficiente para impedir todos os perigos políticos possíveis. Ou seja, no contexto da dominação totalitária, a ideologia substitui a força da tradição ao ponto de contrariar profundamente os seus princípios morais fundamentais.

 

Quando o The New Yorker envia Hannah Arendt a Jerusalém para relatar o julgamento de Eichmann, ela estava à espera de encontrar um “monstro”, mas para seu espanto, deparou-se com um “palhaço”.

Esperava que Eichmann e outros como ele não fossem demónios capazes de um diálogo interno, simultaneamente indiferentes às consequências que se espera de tal exercício – evitar o mal ou sentir culpa e arrependimento em face dele.

Se estes homens não evitaram o mal ou não sentiram essa culpa e arrependimento foi justamente porque eram palhaços, homens que se recusavam a ser pessoas, a pensar.

Por isso, nem sequer se questionaram sobre as ordens recebidas. Por isso, eram incapazes de assumir qualquer culpa ou arrependimento. Daí a afirmação repetida por Eichmann e muitos outros de que se tinha limitado a cumprir ordens.

Superficialidade e frases feitas, que demonstravam a sua banalidade, a sua incapacidade para pensar independentemente da ideologia que o rodeava, que aliás conferia sustentabilidade aos seus crimes.

Para Arendt, o mal totalitário era radical, não por ser cometido por uma radicalidade demoníaca, mas, pelo contrário, por ser cometido por homens que simplesmente se recusaram a ser pessoas, a pensar e a recordar, preferindo em vez disso, a banalidade própria de quem não pensa.

 

 

 

Em outubro de 1973 (dois anos antes da sua morte), Hannah Arendt vai dar uma entrevista ao escritor francês Roger Errera, onde a vemos abordar temas como totalitarismo e ditadura, a política americana, a razão de Estado e a segurança nacional, o determinismo histórico e a relação dos judeus com Israel.

Reproduzimo-la aqui na íntegra, uma vez que parte dela foi na altura censurada (tudo o que foi cortado aparece agora a itálico). A entrevista pode-se ainda ver gravada no YouTube (1) (2), titulada em francês ou espanhol.

 

A entrevista

 

Roger Errera: O seu primeiro livro, publicado em 1951, é intitulado As Origens do Totalitarismo. Neste livro, quis não apenas descrever o fenómeno, mas também explicá-lo. Daí a pergunta: o que é para si o totalitarismo?

 

Hannah Arendt: Gostaria de começar por fazer algumas distinções com as quais nem todos concordam. Em primeiro lugar, uma ditadura totalitária não é uma simples ditadura, nem uma simples tirania. Sempre que vejo um sistema totalitário, procuro analisá-lo como uma nova forma de sistema político até aí desconhecida. Para isso, procuro enumerar as suas principais características.

Entre elas, gostaria de lembrar uma que atualmente está totalmente ausente de todas as tiranias, e que é o papel dos inocentes, das vítimas inocentes. Sob Stalin, não era necessário fazer nada para se ser deportado ou executado. A dinâmica da história atribuiu um papel a essa vítima e ela devia desempenhar esse papel, independentemente do que fizesse. Anteriormente, nenhum governo matava pessoas por elas dizerem sim. Geralmente, um governo ou um tirano mataria as pessoas por elas dizerem não.

 

Um amigo meu lembrou-me que uma ideia muito semelhante foi expressa na China séculos atrás: os homens que tivessem a impertinência de aprovar não eram mais valorizados do que aqueles que desobedecessem e se opusessem. Essa é a essência do totalitarismo, o facto de haver total dominação do homem pelo homem. Nesse sentido, não há totalitarismo hoje, mesmo na Rússia, onde reina a pior tirania que jamais conhecêramos. É preciso fazer alguma coisa para se ser mandado para o exílio, ou para um campo de trabalho forçado, ou para um asilo psiquiátrico.

 

Vejamos por um momento o que é tirania. Os regimes totalitários apareceram sempre após a maioria dos países europeus estar já sob uma ditadura. Ditadura, no sentido original do conceito e da palavra não é tirania, é uma suspensão temporária das leis em caso de emergência, geralmente durante uma guerra ou uma guerra civil. A ditadura é limitada no tempo, a tirania não é

 

O totalitarismo começa pelo desprezo do que você tem. O segundo passo é a noção: "As coisas têm que mudar - não importa como”, “Tudo é melhor do que o que temos." Os governantes totalitários organizam esse tipo de sentimento de massa e, ao organizá-lo, articulá-lo e articulando-o, fazem com que as pessoas concordem de uma certa maneira.

 

Já antes lhes tinham dito: Tu não deves matar; e eles não mataram. Agora dizemos-lhes: tu matarás; e embora eles pensem que é difícil matar, eles fazem-no porque agora faz parte do código de conduta. Eles aprendem a quem matar e como matar e como faze-lo juntos.

 

Este é o ‘Gleichschaltung’, o processo de coordenação do qual se fala muito. Você não está coordenado com os poderes constituídos, mas com o seu vizinho, coordenado com a maioria. Mas, em vez de se comunicar com o outro, você agora está colado a eles. E é claro que você se sente maravilhosamente bem. O totalitarismo apela para as necessidades emocionais mais perigosas de pessoas que vivem em completo isolamento e com medo dos outros.

 

Estas são coisas muito importantes a que se deve prestar atenção. Quando escrevi o meu livro sobre Eichmann em Jerusalém, um dos meus principais objetivos era destruir a lenda da grandeza do mal, da força demoníaca, para retirar às pessoas a admiração que têm pelos grandes malfeitores como Ricardo III. Encontrei em Brecht a seguinte reflexão: “Os grandes criminosos políticos, devem ser denunciados a todo custo e, sobretudo, ridicularizados. Eles não são grandes criminosos políticos, mas homens que cometeram grandes crimes políticos, o que é algo totalmente diferente. O fracasso de Hitler não significa que ele era um tolo.” [1]

Antes de assumir o poder, toda a oposição se equivocava considerando que Hitler era um tolo. De seguida, muitos foram os livros que tentaram justificá-lo e torná-lo um grande homem. Portanto, diz Becht: “O fato de ele ter falhado não indica que Hitler fosse um tolo, e a escala dos seus empreendimentos não o torna um grande homem.” Não é nem uma coisa nem outra, ou seja, toda essa noção de grandeza não se lhe aplica.

 

“Se as classes dirigentes”, continua Brecht, “permitirem que um pequeno vigarista se torne um grande vigarista, tal não lhe dá direito a uma posição privilegiada na história. Ou seja, o facto de ele se tornar um grande vigarista e que o que ele fizer tiver consequências graves, isso não o engrandece.” E acrescenta: "De uma maneira geral e de forma abruta, pode-se dizer que a tragédia lida com os sofrimentos da humanidade de uma forma menos séria que a comédia. "

 

Esta é obviamente uma afirmação chocante, mas, ao mesmo tempo, penso que é perfeitamente correta. Se alguém quiser manter a sua integridade em tais circunstâncias, só poderá fazê-lo se se lembrar: o que quer que ele faça e mesmo que tenha matado dez milhões de pessoas, continua a ser apenas um palhaço.

 

Roger Errera: Quando publicou o seu livro sobre o julgamento de Eichmann, essa obra provocou reações muito violentas. Porquê essa reação?

 

Hannah Arendt: Parte dessa polémica aconteceu porque ataquei a burocracia. Se se ataca uma burocracia, deve-se esperar que ela se defenda, que ela o ataque, tente tornar a sua vida impossível. Este é mais ou menos um assunto político ruim. Até aí eu consigo entender.

 

Mas suponha que eles não tivessem organizado essa campanha. Apesar disso, a oposição a este livro continuaria a ser muito forte porque os judeus sentiram-se ofendidos, e com isto quero dizer pessoas que realmente respeito e posso compreender. Eles ficaram principalmente ofendidos com o que disse Brecht sobre o rir. A minha risada, nesse momento, era mais ou menos inocente. Não pensei sobre isso.

 

O que vi foi que Eichmann era um palhaço. Eichmann, por exemplo, nunca se culpou pelo que fez aos judeus. Ele culpou-se por um incidente: por ter esbofeteado o presidente da comunidade judaica em Viena durante o seu interrogatório. Deus sabe que muitas pessoas foram tratadas de forma muito pior e, no entanto, Eichmann nunca se perdoou por aquilo. Ele cedera a um impulso e pensou que era muito errado ter perdido o seu sangue-frio.

 

Roger Errera: O que é que pensa por estarmos realmente a ver aparecer toda uma literatura que, particularmente no que diz respeito ao nazismo, descreve muitas vezes de forma romantizada os seus líderes, os seus crimes, e tenta humanizá-los, tentando indiretamente justificá-los? Pensa que essas publicações têm apenas uma razão puramente comercial ou pensa que elas têm um significado mais profundo?

 

Hannah Arendt: Eu penso que elas têm um significado. Elas pelo menos mostram que o que aconteceu uma vez pode acontecer novamente. A tirania é conhecida há muito tempo, há muito tempo que ela é um inimigo. No entanto, isso nunca impediu um tirano de se tornar um tirano. Isso não impediu nem Nero nem Calígula. E Nero e Calígula não impediram exemplos recentes, como a intrusão maciça do crime na política.

 

Roger Errera: Você veio para este país [os Estados Unidos] em 1941, vinda da Europa. Está cá a viver à 32 anos. Quando veio da Europa, qual era a sua impressão dominante?

 

Hannah Arendt: A minha impressão predominante é que a América não é um Estado-nação. Os europeus têm dificuldade em compreender este simples facto, que teoricamente deveriam saber. Este país não está unido nem pela herança, nem pelas memórias, nem pelo solo, nem pela língua, nem por uma origem idêntica. Não há americanos genuínos aqui, além dos índios. Todo o resto são cidadãos, e esses cidadãos estão unidos por apenas uma coisa, e isso é muito: é-se um cidadão dos Estados Unidos pela simples aceitação da Constituição.

 

A Constituição, do ponto de vista francês ou alemão, é apenas um pedaço de papel. Podemos modificá-lo. Mas aqui, é um documento sagrado. É a lembrança constante de um ato único e sagrado, o ato fundador dos Estados Unidos. A sua fundação consistiu em reunir num todo minorias étnicas e regiões totalmente díspares, sem, contudo, nivelar e fazer desaparecer essas diferenças.

 

Tudo isso é muito difícil de para um estrangeiro. Podemos dizer, portanto, que neste sistema político, é a lei que reina e não os homens. Até que ponto isso é verdade e precisa de ser verdade para o bem do país, quase disse da nação, para o bem de todos os Estados Unidos da América, para a república, para falar a verdade…

 

Roger Errera: Na última década, os Estados Unidos passaram por uma onda de violência política marcada pelo assassinato do presidente, do irmão, a Guerra do Vietnam, o caso Watergate. Por que é que os Estados Unidos podem superar crises que na Europa teriam resultado em mudanças de regime e até mesmo em distúrbios internos muito graves?

 

Hannah Arendt: O caso Watergate expôs uma das crises constitucionais mais profundas que a América já conheceu. Essa crise constitucional representa pela primeira vez nos Estados Unidos um conflito aberto entre o legislativo e o executivo. Neste caso, é a própria Constituição que é parcialmente responsável.

 

Os fundadores não acreditavam que a tirania pudesse surgir do executivo, porque não viam nela outra coisa que não fosse a simples execução do que o legislador havia decidido, de várias formas. Sabemos hoje que o maior perigo de tirania vem do executivo.

 

Mas se interpretarmos à letra o espírito da Constituição, o que é que os Pais Fundadores pensaram? Eles pensaram que se tinham conseguido livrar do governo da maioria, e é por isso que seria um grande erro pensar que o que temos é uma democracia. Um erro que muitos americanos compartilham. O que temos aqui é um sistema republicano. Os fundadores estavam preocupados acima de tudo em preservar os direitos das minorias porque acreditavam que num corpo político saudável deveria haver uma pluralidade de opiniões.

 

O que os franceses chamam de União Sagrada era exatamente o que não era necessário para eles. Já seria uma espécie de tirania, e o tirano poderia muito bem ser a maioria. Portanto, todo o sistema político está organizado de forma que mesmo após a vitória da maioria, ainda haja uma oposição. Essa oposição é necessária porque representa as opiniões legítimas de uma ou várias minorias.

 

A segurança nacional é um novo conceito no vocabulário americano. Isso é realmente, se posso interpretar um pouco, a tradução de razão de Estado. Esta noção de razão de Estado nunca desempenhou qualquer papel na América. É uma nova importação.

 

A segurança nacional cobre agora todos os tipos de crimes. Por exemplo, o presidente tem todos os direitos. Ele está acima da lei. O rei não pode estar errado, ou seja, ele é como um monarca numa república. Ele está acima da lei e seu raciocínio é sempre que tudo o que ele faz, fá-lo em prol da segurança nacional.

 

Roger Errera: Porque pensa que essas implicações modernas de razão de Estado, "intrusão do crime na esfera política" como lhe chama, são específicas de nosso tempo? Isso é específico do nosso tempo?

 

Hannah Arendt: É peculiar ao nosso tempo, é o que realmente penso. Assim como o comércio apátrida é caraterístico do nosso tempo e se perpetua de diferentes maneiras, em diferentes gêneros e em diferentes cores. Mas se chegarmos a estas questões gerais, o que também é peculiar da nossa época, é a intrusão maciça do crime na vida política. Estou a falar de algo que vai muito além daqueles crimes que sempre tentamos justificar como razão de Estado a pretexto de serem exceções à regra. Aqui, ao contrário, somos repentinamente confrontados com um estilo de ação política que em si é criminoso.

 

Isso não é uma exceção à regra. Eles não dizem: "Estamos numa tal emergência que temos que nos sentar todos a uma mesa, incluindo o próprio presidente." Aqui, as escutas fazem parte do processo político normal. Eles também não dizem: "Nós invadimos o consultório de um psiquiatra excecionalmente e nunca o voltaremos a fazer”, absolutamente não. Pelo contrário, afirmam que tal arrombamento é absolutamente legítimo.

 

Esta questão de segurança nacional origina-se diretamente da noção de razão de estado. Essa noção de segurança nacional invocada é importada diretamente da Europa Central. Claro, os alemães, os franceses e os italianos reconhecem isso como sendo totalmente justificado, porque sempre viveram sob essa regra. Mas foi precisamente a herança europeia que a Revolução Americana pretendeu quebrar.

 

Roger Errera: No seu ensaio sobre os Documentos do Pentágono [2], descreve a psicologia do que chama de "especialistas em solução de problemas", que eram à época conselheiros do governo dos Estados Unidos. E diz: "Os especialistas da solução de problemas têm sido definidos como homens muito seguros de si próprios e que raramente parecem duvidar da sua capacidade de se imporem. Não se contentavam em fazer gala da sua inteligência, mas ao mesmo tempo orgulhavam-se do seu racionalismo, do seu amor pela teoria, pelo universo puramente intelectual, fazendo com que rejeitassem todo o sentimentalismo até um ponto bastante assustador. "

 

Hannah Arendt: Posso interrompê-lo aí? Eu acho que é o suficiente. Eu tenho um exemplo muito bom. Nos documentos do Pentágono, há um exemplo muito bom dessa mentalidade científica difusa. Você conhece a teoria do dominó, que foi a teoria oficial durante a Guerra Fria, de 1950 a 1969, logo após os documentos do Pentágono.

 

A “teoria do dominó” é um bom exemplo do tipo de mentalidade científica que esmaga todas as outras ideias.

 

A verdade é que entre os intelectuais muito sofisticados que escreveram os documentos do Pentágono, poucos acreditavam nessa teoria do dominó. Nos altos cargos do governo havia apenas duas ou três pessoas que realmente acreditavam nisso, W. Rostow e, não sei, o general Taylor, e eles não estavam exatamente entre os mais inteligentes. Na verdade, eles nem mesmo acreditaram, mas todas as suas ações seguiram essa teoria.

 

Eles não estavam a agir com base em mentiras ou porque se queriam mostrar perante os seus superiores, mas porque isso lhes dava uma estrutura na qual poderiam trabalhar. Eles adotaram essa estrutura sabendo que ela estava em desacordo com os acontecimentos e análises que lhes provavam todas as manhãs que esse ponto de vista era muito simplesmente falso. Adotaram-no porque não tinham outra estrutura.

 

    As pessoas adotam essas teorias para se desembaraçarem da contingência e do imprevisível. O bom e velho Hegel disse certa vez que toda contemplação filosófica apenas servia para eliminar o acidental. Um facto deve ser atestado por testemunhas oculares que não são as melhores testemunhas; nenhum facto é incontestável. Mas não há dúvida que dois mais dois são quatro. E as teorias produzidas no Pentágono eram todas muito mais plausíveis do que o que realmente estava a acontecer.

 

Roger Errera: O nosso século parece-me dominado por uma persistência de formas de pensar baseadas no determinismo histórico.

 

Hannah Arendt: Existem boas razões para essa crença na necessidade histórica.

 

    A principal característica de qualquer acontecimento é que não foi previsto.

 

Nós não conhecemos o futuro. Todos agem tendo em vista o futuro e ninguém sabe o que está a fazer porque o futuro faz-se. A ação é realizada por nós e não por mim. Só quando ajo sozinho, se eu fosse o único, posso prever o que acontecerá como resultado de minhas ações. Portanto, parece que o que realmente aconteceu estava inteiramente no reino da contingência e, de facto, a contingência é um dos maiores fatores da história. Ninguém sabe o que vai acontecer só porque há tantas coisas que dependem de uma enorme quantidade de fatores variáveis ​​- ou seja, ao acaso.

 

Por outro lado, se olharmos para a história em retrospetiva, podemos dizer que a história faz sentido.

A história judaica, por exemplo, teve de facto seus altos e baixos, inimizades e amizades, como qualquer história de todos os povos. A ideia de que existe uma história unilinear está obviamente errada. Mas se você olhar depois da experiência de Auschwitz, parece que toda a história - ou pelo menos a história desde a Idade Média - não teve outro propósito além de Auschwitz ...

 

Como foi isso possível? Este é o verdadeiro problema de qualquer filosofia da história. Como é possível que depois do acontecimento pareça sempre que as coisas não poderiam ter-se passado de outra forma? Todas as variáveis d​​desaparecem, e a realidade tem um impacto tão poderoso que não vale a pena preocuparmo-nos em considerar uma variedade infinita de possibilidades.

 

Roger Errera: Mas se os nossos contemporâneos conservam esse apego a formas de pensar deterministas, apesar dos desmentidos da história, isso acontece porque eles têm medo da liberdade, porque têm medo do imprevisto?

 

Hannah Arendt: Sim, claro, mas eles não o dizem. Se o dissessem, poderíamos abrir imediatamente o debate. Se ao menos dissessem: "temos medo", por exemplo. “Temos medo de ter medo.” Esta é uma das principais motivações. Mas nós temos medo da liberdade.

 

Roger Errera: Consegue imaginar um ministro na Europa, vendo a sua política à beira do fracasso, encomendar a uma equipa de especialistas externos à administração a realização de um estudo com o objetivo de saber as decisões ...

 

Hannah Arendt: Exteriores à administração, não. Eles vêm de todos os lados, e também de ...

 

Roger Errera: É isso, mas também com pessoas de fora da administração. Então, consegue imaginar um ministro europeu na mesma situação, encomendando um estudo para descobrir como isso aconteceu?

 

Hannah Arendt: Claro que não.

 

Roger Errera: Porquê?

 

Hannah Arendt: Por causa da razão de Estado. Ele começaria imediatamente a encobrir os seus erros. A atitude de McNamara foi diferente. Citei no início do meu ensaio sobre os documentos do Pentágono uma de suas palavras: "Não é uma visão muito bonita ver a primeira das superpotências matar ou ferir milhares de não combatentes todas as semanas. Como chegámos a isso?” [3] Esta é uma atitude americana e mostra que a situação ainda era sã porque ainda havia um McNamara que queria aprender com ela.

 

Roger Errera: Você acha que atualmente os dirigentes americanos que enfrentam outras situações hoje ainda querem saber?

 

Hannah Arendt: Não. Eu acho que não sobrou nenhum. Não sei. Não, não, não, retiro o que disse. Acredito, se não me engano, que McNamara estava na lista dos inimigos de Nixon, li hoje no New York Times. Julgo que isso é correto. Só isto serve para mostrar que toda essa atitude já não existe na vida política americana ao mais alto nível. Essas pessoas, ao dizerem delas próprias “por que não conseguimos criar uma imagem de nós mesmos?”, e passam a acreditar na imagem que criaram. Poder-se-á dizer que não passava de imagem. Só que agora eles querem que todos acreditem na sua imagem e que ninguém olhe para além dela. Pelo que entramos assim num universo político completamente diferente.

 

Roger Errera: E assim depois do que o senador Fullbright chamou de "arrogância do poder", depois do que se poderia chamar de arrogância do conhecimento, entrou-se num terceiro estágio que seria simplesmente o da arrogância.

 

Hannah Arendt: Sim. Não sei se isso é simplesmente arrogância. Talvez seja a vontade de dominar. Até agora, isso não teve sucesso. Hoje ainda me posso sentar a esta mesa e falar livremente consigo, pelo que eles ainda não me dominaram e não estou com medo. Posso estar errada. Sinto-me perfeitamente livre neste país. Alguém, Morgenthau, acredito, chamou a toda o ciclo de Nixon de "revolução fracassada". Não sabemos ainda se ela abortou, ele pode ter dito isso prematuramente, mas podemos certamente dizer uma coisa: ela não foi coroada de sucesso.

 

Roger Errera: Mas o que ameaça nosso tempo é a ideia de que os objetivos da política são ilimitados. O liberalismo, no entanto, repousa, creio eu, na ideia de que a política tem objetivos limitados. Não é a chegada ao poder de homens, de movimentos, que se propõem objetivos ilimitados, a maior ameaça em nosso tempo?

 

Hannah Arendt: Espero não o chocar se disser que não tenho a certeza de ser liberal. Verdadeiramente eu não tenho nenhum credo neste assunto. Não professo uma filosofia política que pudesse resumir com um termo em "ismo".

 

Roger Errera: Certamente, mas de qualquer forma é dentro dos fundamentos do pensamento liberal, com recurso à antiguidade, que se situa a sua reflexão filosófica.

 

Hannah Arendt: Você diria que Montesquieu é um liberal? Diria que todos por quem tenho consideração e que têm um pouco de valor ... Eu, eu sirvo-me onde posso. Eu agarro o que posso e o que me é conveniente. Uma das grandes vantagens do nosso tempo é o que disse René Char: “A nossa herança não está garantida por nenhum testamento."

 

Roger Errera: “precedido de qualquer testamento. "

Hannah Arendt: “Não é precedida por qualquer testamento."[4] Isso quer dizer que somos completamente livres para usar as experiências e pensamentos do passado como quisermos.

 

Roger Errera: Mas essa liberdade extrema não corre o risco de assustar muitos de nossos contemporâneos que prefeririam encontrar uma teoria pronta, uma ideologia, pronta a ser aplicada?

 

Hannah Arendt: Claro. Sem dúvida.

 

Roger Errera: Essa liberdade que define, não corre o risco de ser a liberdade de poucos, daqueles que terão a força para inventar novas formas de pensar?

 

Hannah Arendt: Não. Não. Baseia-se apenas na crença de que todo ser humano, como ser pensante, pode pensar tão bem quanto eu e pode formar o seu próprio julgamento, se quiser. O que não sei é como fazer nascer esse desejo nele. Não sou uma propa ...

 

A única coisa que verdadeiramente nos pode ajudar é refletir verdadeiramente. Refletir significa sempre pensar criticamente. E pensar criticamente significa que todo pensamento saiba que existem regras rígidas e convicções gerais. Tudo o que se passa no pensamento está sujeito a um exame crítico. Isto é, não existe pensamento perigoso, pela simples razão de que pensar é em si um trabalho muito perigoso. Mas não pensar é ainda mais perigoso. Não estou a negar o facto que refletir é perigoso, mas não refletir é ainda mais perigoso.

 

Roger Errera: Voltemos a esta observação de René Char: “A nossa herança não é precedida por nenhum testamento.” O que pensa que seja o legado do século 20?

 

Hannah Arendt: Ainda estamos aqui. Você é jovem, eu sou mais velha, mas ainda aqui estamos os dois para lhes deixar alguma coisa.

 

Roger Errera: Exatamente, o que vamos deixar para o século XXI? Já se passaram três quartos de século.

 

Hannah Arendt: Não sei. Tenho certeza de que haverá arte moderna, que está um tanto estagnada agora. Mas depois da grande criatividade dos primeiros quarenta anos deste século, especialmente na França, é natural que haja um certo esgotamento. Este século XX provavelmente será um dos grandes séculos da História, mas não da política.

 

Roger Errera: Tratou várias vezes nos seus trabalhos a história moderna dos judeus e o antissemitismo. No final de um de seus livros diz que o nascimento do movimento sionista nos fins do século XIX foi a única resposta política que os judeus encontraram ao antissemitismo. [5] Em que é que a existência do estado de Israel mudou o contexto político e psicológico em que os judeus vivem no mundo?

 

Hannah Arendt: Acho que isso mudou tudo. Hoje o povo judeu está verdadeiramente unido no apoio a Israel. [6] Eles sentem que têm um Estado, uma representação política, assim como os irlandeses, os ingleses ou os franceses. Eles não apenas têm uma pátria, mas também um Estado-nação, e toda a sua atitude relativamente aos árabes depende em grande parte de uma identificação que os judeus da Europa central sempre fizeram de forma instintiva e irrefletida. O Estado deve ser necessariamente um estado-nação.

 

As relações entre a diáspora e Israel, ou o que antes era a Palestina, mudaram porque Israel não é mais simplesmente um refúgio para judeus polacos. Na época, um sionista era um homem que tentava obter dinheiro dos judeus ricos para os pobres judeus polacos. Mas hoje Israel é o representante do povo judeu em todo o mundo. Que isso nos agrade ou não, é outra questão. Isso não significa que o judaísmo da diáspora tenha sempre que concordar com o governo israelita. Não é uma questão de governo, é uma questão de Estado. Enquanto esse Estado existir, ele obviamente será o que nos representa aos olhos do mundo.

 

Roger Errera: Precisamente, um autor francês, Georges Friedmann escreveu, há dez anos, um livro intitulado Fim do povo judeu? [7] onde concluiu que no futuro haveria de um lado um novo Estado, a nação israelita, e do outro lado, nos países da diáspora, judeus que se assimilariam e perderiam pouco a pouco as suas características próprias.

 

Hannah Arendt: Essa hipótese parece muito plausível e acredito que é totalmente errada. Nos tempos antigos, quando o Estado judeu ainda existia, já havia uma grande diáspora judaica. Ao longo dos séculos, através de tantas formas diferentes de governo e Estado, os judeus, o único povo antigo que sobreviveu ao longo dos milênios, nunca foram assimilados.

 

Se os judeus pudessem ter sido assimilados, já o teriam sido há muito tempo. Houve uma ocasião durante o período espanhol, houve outra durante o período romano, e mais evidentemente nos séculos XVIII e XIX. Um povo, uma comunidade, não se suicida. M. Friedmann engana-se porque não compreende que o sentimento dos intelectuais que podem realmente mudar de nacionalidade e absorver outra cultura, não corresponde ao sentimento do povo como um todo, e particularmente não ao de um povo que foi criado por leis que conhecemos.

 O "talento" - por assim dizer - de pelo menos uma certa parte do povo judeu é um problema histórico, um problema de primeira ordem para os historiadores. Posso arriscar uma explicação especulativa: somos o único povo, o único povo europeu, que sobreviveu desde a Antiguidade e praticamente intacto.

 Isso significa que conservámos a nossa identidade, e que somos os únicos que nunca conhecemos o analfabetismo. Sempre fomos alfabetizados porque não se pode ser judeu sem ser alfabetizado. As mulheres eram menos alfabetizadas do que os homens, mas mesmo elas eram muito mais alfabetizadas do que suas contrapartes noutros lugares. Não apenas a elite sabia ler, mas todo o judeu tinha que ler - o povo inteiro, em todas as classes e em todos os níveis de talento e inteligência.

 

Roger Errera: O que significa para os judeus a assimilação na sociedade americana?

 

Hannah Arendt: No sentido de assimilar os judeus ao seu ambiente, não há assimilação à cultura. Você poderia, por favor, dizer me como os judeus deveriam de ser aqui? Aos ingleses, aos irlandeses, aos alemães, aos franceses, a qualquer um que viesse?

 

Roger Errera: Quando dizemos que os judeus americanos são muito americanizados, não só americanos, mas americanizados, a que nos referimos?

 

Hannah Arendt: Pensamos no estilo de vida. Todos esses judeus são excelentes cidadãos americanos. Isso tem que ver com a sua vida pública, não a vida privada, não a vida social. A vida privada e social é mais judaica hoje do que nunca. Assim, um grande número de jovens aprende hebraico, embora os seus pais o tenham esquecido durante muito tempo.

 

Mas o essencial, é Israel. Somos a favor ou contra Israel? Considere, por exemplo, os judeus alemães de minha própria geração que imigraram para os Estados Unidos. Em muito pouco tempo, eles tornaram-se judeus muito nacionalistas, muito mais nacionalistas do que eu jamais fui, apesar do facto de eu mesmo ser sionista, e eles não eram. Eu nunca disse "sou alemã", sempre disse "sou judia". Mas agora,a que é que eles se assimilam? À comunidade judaica. Como estavam acostumados à assimilação, eles integraram-se à comunidade judaica da América. Com o fervor dos novos convertidos, tornaram-se ultranacionalistas e pró-israelitas.

 

Roger Errera: Ao longo da história, o que garantiu a sobrevivência do povo judeu foi principalmente uma ligação de natureza religiosa. Estamos numa época em que todas as religiões passam por uma crise e o vínculo religioso tende a enfraquecer. Nessas condições, o que, na contemporaneidade, une o povo judeu?

 

Hannah Arendt: Acho que você se engana um pouco. Quando você diz "religião", obviamente quer dizer a religião cristã, que é um credo, uma crença, uma fé. Esse não é absolutamente o caso da religião judaica. Ela é uma religião nacional em que religião e nação coincidem. Você sabe que os judeus, por exemplo, não reconhecem o batismo dos judeus convertidos ao cristianismo? Tudo acontece como se esse ato não existisse.

 

De acordo com a lei judaica, um judeu é sempre um judeu. Sempre que alguém nasce de mãe judia, a procura da paternidade é proibida, ele é judeu. O conceito de religião é completamente diferente. É muito mais um modo de vida do que uma religião no sentido particular e específico da religião cristã. Tive uma educação judaica e lembro-me que quando tinha cerca de 14 anos revoltei-me contra o nosso professor e quis chocá-lo. Levantei-me e disse: “Não acredito em Deus." Ele respondeu-me: “Ninguém te o está perguntando. "

 

Notas

 

[1] Bertolt Brecht, “Bemerkungen” em Der aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui, cf. Brecht, Werke (GroBe kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe), v. 24, pp. 315-319.

 

[2] Hannah Arendt, "Lying in Politics: Reflections on the Pentagon Papers", The New York Review of Books (18 de novembro de 1971), pp. 30-39; Para a edição francesa, cf. nota 6 em “Entrevistando Hannah Arendt”; Edição alemã: “Die Luge in der Politik: Uberlegungen zu den PentagonPapieren”, Die neue Rundschou (v. 83, no. 2 [1972]), pp. 185-213.

 

[3] A citação de Robert S. McNamara que Arendt tomou como slogan em "Lying in Politics" diz: [" A imagem da maior superpotência do mundo matando ou ferindo gravemente mil não-combatentes por semana, enquanto tentava submeter uma pequena nação atrasada em uma questão cujos méritos são calorosamente contestados, não é bonita. "]

 

[4] René Char: “A nossa herança não é precedida por qualquer testamento.” O aforismo é retirado de "René Char, Feuillets d´Hypnos ", no. 62 ver R. Char, Oeuvres completes (Paris: Gallimard, 1983), p. 190; cf. Hannah Arendt no seu “Prefácio” para Between Past and Future: Eight Exercices in Polirical Thought, (New York: Viking), 1968.

 

[5] Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, nova edição com prefácios adicionados (San Diego etc.: A Harvest I HBJ Book, 1979), p. 120

 

[6] Esta declaração e as seguintes devem ser lidas no contexto dos acontecimentos do dia. Em 6 de outubro de 1973, o Egito e a Síria atacaram Israel, dando início à Guerra de Outubro [Guerra do Yom Kippur].

 

[7] Georges Friedmann, Fin du peuple juif? (Paris: Gallimard, 1965).

 

 

 

 

 

  1. https://www.youtube.com/watch?v=3OFKx3yqJvw
  2. https://www.youtube.com/watch?v=AScblSGKAC8

 

 

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