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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(292) A Consolação do Dólar

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nas ciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido, J. Cerqueira Gonçalves.

 

Toda a espécie humana é igualmente nobre, dado que descende de uma única e mesma origem, Severino Boécio.

 

Não há prazer que não implique dor.

 

O conhecimento está reservado para os conhecedores, de acordo com as suas capacidades cognitivas.

 

 

A humanidade, ao longo do percurso que tem vindo a percorrer, tem passado por aquilo que parecem ser algumas alterações, quer elas sejam físicas, psicológicas, comportamentais, ou outras, alterações essas que tiveram origem nas sociedades que foram construindo (e que por sua vez também as foram modificando) na tentativa de conseguirem perdurar o mais tempo possível. Indivíduos, sociedades, culturas, nações, civilizações.

Estabelecer diferenciações entre elas, torna-se por vezes difícil, especialmente quando delas fazemos parte, pela curta duração de uma vida, ou pelo tempo transcorrido entre o observador e o que se pretende observar.

Por exemplo, um habitante que fizesse parte da Alemanha durante o período nazi, teria dificuldade em não acreditar nos valores de superioridade instilados por essa sociedade, sociedade que se julgava vir a durar mais de mil anos no comando do mundo.

 

 

Uma sociedade só aparece após um processo mais ou menos elaborado em que se vão selecionando os modos mais eficazes para se resolverem problemas que lhes sejam postos, problemas reais da vida prática e emocional com que aquele conjunto humano se depara, ou seja: uma sociedade não aparece de um momento para o outro a partir do nada.

É por isso que aquela ideia vulgarizada de que quando as sociedades são substituídas por outras desaparecem na totalidade, não corresponde à realidade. Os seus resquícios farão sempre parte do acervo da humanidade, sempre prontos a serem utilizados quando necessários.

Como dizia Joaquim Cerqueira Gonçalves:

 

 “Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nas ciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido.

 

Os mitos, formas não racionais de encarar os problemas que se punham às sociedades de então, entretanto dadas como desaparecidas, ao fim de todo este tempo não desapareceram. Eles constituem como que um refúgio a que nos acolhemos quando tudo for irracional, quando a racionalidade não conseguir resolver os problemas das sociedades. (1)

 

Nestas mudanças, vamos dizer civilizacionais, que se verificam ao longo do tempo, existem sempre momentos charneira de maior ou menor duração, em que uma forma de viver (comportamentos, visão do mundo, valores, etc.) vai dando lugar a outra, pelo que convém estarmos atentos para nos conseguirmos adaptar, resistir ou desistir conforme os casos, sob o risco de sermos marginalizados (postos na prateleira, desempregados, eliminados, etc.).

A sociedade a que pertencemos tem ultimamente vindo a desenvolver um processo de transformação mais acelerado, com várias consequências a nível individual e social. Contudo, contrariamente ao que nos querem fazer crer, as principais alterações não se têm verificado devido à utilização das novas tecnologias, computadores, inteligência artificial.

As grandes alterações estão a dar-se ao nível dos valores, e os valores não são veiculados pela tecnologia.

 

Ao longo dos últimos dois mil anos, os valores da nossa sociedade têm sido valores cristãos. O afastamento desses valores, a tentativa da sua substituição por outros completamente diferentes, talvez se possa melhor aperceber se conseguirmos encontrar um meio credível, qualificado e representativo de comparação, que torne evidente esse afastamento.

 

Severino Boécio (c. 475-524), foi considerado como um dos grandes filósofos, “o maior dos filósofos entre eles” (noster summus philosophus). Para além disso, ficou também conhecido devido às traduções (para latim) de algumas obras de Aristóteles e de Porfírio, sem as quais não teríamos tido conhecimento da lógica clássica.

Devido a uma intriga palaciana (na altura Roma era governada pelo ostrogodo Teodorico, que convidou em 520 Boécio para um cargo importante na sua administração, que o parece ter desempenhado por forma a travar a corrupção instalada, o que lhe criou inimigos que conseguiram convencer Teodorico que Boécio conspirava contra ele), foi preso, julgado por traição e condenado à morte.

Enquanto aguardava a execução, vai escrever cinco cadernos, A Consolação da Filosofia, que se tornaram uma das obras mais lidas em toda a Europa ao longo de mil anos.

 

A “consolação” (consolatio), era um género literário em voga nas classes altas, sendo como que lamentações, últimos escritos antes de morrerem ou após grande desgosto. Estados de alma. Purificações.

 

A forma desta obra aparece como um diálogo entre o Prisioneiro (Boécio) e a Filosofia (personificada por uma respeitável mulher de idade avançada) que lhe aparece na cela.

 

Boécio começa por nos dizer no Livro I que por ter querido ser justo nas suas decisões, acabou por ser caluniado e preso, enfrentando uma morte injusta. O seu único consolo é o que encontra na Filosofia.

Então a Filosofia começa por lhe mostrar que a felicidade não consiste nos bens mutáveis e perecíveis que dependem da Fortuna, mas sim num bem perene a ser encontrado.

Explica-lhe depois em que é que a felicidade não consiste, para lhe demonstrar em que é que consiste a verdadeira felicidade: na posse do Sumo Bem, ser perfeitíssimo e origem dos demais seres.

Passa a equacionar o problema do Destino como resultante da Providência, acabando por se debruçar sobre o problema da articulação entre Providência e livre arbítrio.

 

Interessa aqui sobremaneira o Livro III, aquele em que a Filosofia vai ajudar Boécio na sua procura da felicidade, desvendando as inconsistências e insuficiências dos bens aparentes.

Apesar de ser rico, Boécio admite que lhe faltava algo, pelo que a Filosofia lhe faz ver que tal significava que não era autossuficiente. E isso acontecia porque a riqueza não garantia a autossuficiência, pois esse património podia ser arrebatado, pelo que aqueles que o têm tornam-se dependentes da ajuda alheia para o conservarem. A riqueza pode diminuir a necessidade, mas nunca a elimina: logo, não garante a felicidade.

Também as honras são um engano. Frequentemente dispensadas a quem as não merece, não tornam os contemplados dignos de reverência e honra. Tornam até mais visível o desmerecimento.

Quanto ao poder, por ser efémero e ter a propensão para atrair a discórdia, é também uma ilusão da verdadeira felicidade.

A glória, tal como a fama, é enganosa, pois, na maioria das vezes, a multidão não atribui a glória a quem verdadeiramente a merece. E é também efémera.

A nobreza é outra ilusão. O prestígio da nobreza é oco e fútil, pois não resulta do mérito próprio, mas do mérito dos antepassados. A Filosofia declara, ainda, que toda a espécie humana é igualmente nobre, dado que descende de uma única e mesma origem, de um só e mesmo pai.

Quanto ao prazer, o seu desejo implica ansiedade. Por isso, os que a ele se abandonam sofrem depois, arrependendo-se, mais não seja porque a satisfação desenfreada dos prazeres comporta riscos físicos reais. Para mais, tal critério de felicidade não é especificamente humano. Nem mesmo uma esposa e filhos podem assegurar a felicidade, já que constituem por si mesmos, fontes de cuidados. Comparando-o a uma abelha, conclui que não há prazer que não implique dor:

 

“Isto tem toda a luxúria:

espicaça com agulhões os que dela gozam,

semelhante à alada abelha

que mal acaba de derramar o delicioso mel

foge e fere com picada demasiado pungente

os corações que tocou.”

 

Nem mesmo a beleza merece que lhe seja devotada uma vida, ela é frágil e muito rapidamente se desvanece por qualquer acidente ou doença. E se o nosso olhar fosse mais penetrante, cedo descobriríamos a nossa própria fealdade.

 

Após concluir que todos esses bens não conduziam à felicidade, eis o resumo das opções de vida que a Filosofia coloca perante o Prisioneiro:

 

Tencionas esforçar-te para amealhar riquezas? Terás de as subtrair a quem a tem. Queres brilhar com honrarias? Suplicarás a quem tem o poder de as outorgar e tu, que desejas ultrapassar os outros homens, tornar-te-ás vil ao rebaixares-te a uma situação de pedinte. Desejas o poder? Sujeitar-te-ás a expor-te aos perigos próprios dos que estão sujeitos às intrigas. Procuras eventualmente a glória? Renuncias a estar tranquilo, arrastando-te por tribulações de todo o tipo. Levas uma vida de prazeres? Mas quem não há-de desprezar o escravo da mais vil e frágil das coisas, o corpo? Ora os que têm em grande conta os bens do corpo em que se apoiam essa pobre e frágil propriedade! Porventura sereis capazes de superar os elefantes em peso, os touros em força, porventura ultrapassareis os tigres em agilidade?

 

Os valores que na nossa sociedade atual estão a tentar fazer prevalecer são, na maior parte dos casos, completamente diferentes: individualismo exacerbado, sentido quase inexistente de comunidade, rejeição da existência do bem comum, exibição ostentadora da riqueza como símbolo de sucesso merecido devido a qualquer dom superior concedido ou inato, etc.

Se bem que a comparação não possa ser estabelecida na sua totalidade, ela é suficientemente clara para nos apercebermos das diferenças sobre os valores que os nossos mandantes, donos, influenciadores, querem para as suas vidas.

Não se trata de valores que querem para a vida, mas sim de valores que querem para as suas vidas. Como já lapidarmente Margaret Thatcher tão bem definira sobre o que para ela eram os tempos de hoje:

 

"Não existe essa coisa de sociedade, o que há são indivíduos."

- no such thing as society [...] There are individual

 

 

Menos conhecida que Thatcher, diz-nos Lokas Cruz, medicado SNS a trabalhar em campos de refugiados:

 

Criminalizar quem faz a travessia é a punição. Na Europa em 2020, culpabilizamos quem é refugiado e esta é a maneira como o fazemos.

Esta também é uma mensagem que é intencionalmente passada para que mais pessoas não venham, para que passem a mensagem e a ideia de que as condições são tão más que ninguém queira vir. Há pessoas a suicidar-se no campo diariamente. Se as sujeitarmos a condições que as façam preferir morrer nas bombas da Síria, pelos talibã no Afeganistão ou na travessia, se as desumanizarmos ao ponto de quererem morrer, certamente que os contactos que têm na Turquia ou nos países de origem serão persuadidos a não vir – é uma tática consciente e política.”(2)

 

 

 

Não está ainda claro que os valores “antigos” venham a ser derrotados, ou que os “novos” valores venham a constituir os valores da sociedade futura. Nem por quanto tempo.

 

Regressando a Boécio, numa discussão entre o Prisioneiro e a Filosofia, um dos problemas levantado pelo Prisioneiro foi este:

Como apenas pode ser conhecido o que é certo e fixo, então a contingência dos acontecimentos futuros é, pela sua natureza própria, incerta e não fixada. A ser assim, a afirmação que Deus está sempre certo na predição que faz de acontecimentos futuros, assenta num conhecimento que é falso.

Ao que a Filosofia respondeu:

 

Tudo o que é conhecido é adquirido não de acordo com o seu poder, mas de acordo com a capacidade daqueles que efetivamente conhecem”.

 

Ou seja, o conhecimento está reservado para os conhecedores, de acordo com as suas capacidades cognitivas. Nada de novo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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