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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(283) Os rituais da guerra

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Só nos cansamos do novo, não das coisas antigas, Kierkegaard.

 

Rituais, são aquelas imagens e metáforas geradoras de sentido, fundadoras de uma comunidade, que, face a um vazio simbólico pré-existente, dão estabilidade à vida, Byung-Chul Han.

 

O simples intercambio de cortesias com o inimigo, caraterístico dos duelos rituais, pressupunha o reconhecimento do outro como adversário com os mesmos direitos.

                    

O vencedor considera a superioridade das suas armas como uma prova da sua justa causa e declarará o inimigo como criminoso, C. Schmitt.

 

Hoje, matamos pessoas baseando-nos em metadados.

 

 

 

As ações simbólicas que são os rituais, podem ser vistas como a forma que permitiu ao homem libertar-se da contingência, possibilitando-lhe a estabilidade necessária para a vida.

Dizia Hannah Arendt que o que torna as coisas independentes da existência do homem é a sua durabilidade. É neste sentido que os rituais, são aquelas imagens e metáforas geradoras de sentido, fundadoras de uma comunidade que, face a um vazio simbólico pré-existente, dão estabilidade à vida.

Pela sua repetição e pelo facto de serem sempre os mesmos, os rituais fazem do mundo um lugar fiável, em que a vida se possa demorar em algo. Pressupõe coisas que duram.

Daí que os rituais, o simbólico, apareçam como um meio que origina a comunidade e pelo qual ela se transmite.

 

Esta é a tese defendida por Byung-Chul Han, na sua mais recente obra, A desaparição dos rituais. Uma topologia do presente. É num capítulo destinado à guerra que esta sua tese se torna mais explicita.

 

Vai ser Johan Huizinga, embora reconhecendo a existência de um excesso de violência e de assassinatos brutais nas sociedades arcaicas, que nos vai chamar a atenção para o caráter lúdico, na esfera do sagrado do jogo, da guerra nesses tempos.

Esse caráter lúdico da guerra arcaica é realçado não só pela proibição da utilização de certas armas, como pelos acordos relativos ao tempo e ao local em que se desenrolaria a batalha. O campo de batalha é limitado com estacas de madeira, assegurando-se que seja plano, por forma a possibilitar o enfrentamento dos guerreiros:

 

Um convénio solene, no qual se fixavam as regras do combate […] se regulava o tempo e o local para o encontro. Proibiam-se todas as armas de arremesso como a lança, o arco e a funda, permitindo-se apenas a espada e a lança.”

 

O simples intercambio de cortesias com o inimigo, caraterístico dos duelos rituais, pressupunha o reconhecimento do outro como adversário com os mesmos direitos. A troca de presentes e galhardetes, faziam parte deste ritual. Pelo que a guerra como duelo ritual refreia a violência indiscriminada substituindo-a por um jogo com regras. A violência dá lugar à paixão pelo jogo.

De igual forma, o duelo aparece como um combate singular, cujo desfecho equivale nas sociedades arcaicas a um juízo divino, o que lhe confere uma dimensão sagrada.

 

Também o posterior duelo de honra, se pode considerar como uma forma lúdica ritual. Basta recordar as estritas regras a que está submetido para garantir a simetria mais rigorosa entre os duelistas:

 

O lugar onde se efetua é um campo de jogos; as armas devem ser idênticas; começa e termina a um sinal; o número de disparos ou de tempos está prescrito”.

 

Quem se negar a aceitar o repto do duelo é considerado um homem sem honra. Neste duelo ritual não se trata de aniquilar o outro, mas de demonstrar a honorabilidade de cada um. Os duelistas demonstram a sua honorabilidade saindo para o combate, onde põem a sua vida em risco, onde jogam a sua vida. Independentemente da forma como acabar, o juízo social considera ambos os duelistas como homens de honra.

Segundo o código de honra dos cavaleiros, não é honroso atacar-se o inimigo sem o próprio se colocar em perigo. Só é honroso atacar o inimigo no campo de batalha. E é desonroso matar maldosamente o inimigo, por exemplo, envenenando-o.

Ou seja, um problema de simetria e de reciprocidade. Se o inimigo só tiver uma espada, é reprovável o uso de uma besta. Tudo isto vai constituir a base para a noção europeia de honra militar. Daqui Clausewitz (Da guerra) concluir que “a guerra não seja outra coisa que um combate singular amplificado”. A que se lhe segue aquela sua conhecida afirmação de que “a guerra é a política com outros meios”.

Ou seja, como a guerra continua a ser a política, é sempre possível regressar a ela por outros meios não violentos. Daí que depois da guerra fica sempre espaço suficiente para a política. As regras são estas.

Quando não se seguem estas regras, sucedem-se as matanças indiscriminadas, a violência pura, que destroem o espaço político. A guerra como combate singular ampliado distingue-se fundamentalmente da operação militar que redunda numa matança sem escrúpulos.

Com a introdução dos aviões de combate, o reconhecimento do inimigo cara a cara deixa de ser feito. O simples facto de estar por cima do adversário, induz uma atitude mental de superioridade sobre o inimigo. Ou seja, a assimetria do meio de destruição faz com que o seu proprietário valorize o adversário de forma distinta. A superioridade técnica torna-se superioridade moral.

 

O vencedor considerará a superioridade das suas armas como uma prova da sua justa causa e declarará o inimigo como criminoso.” (C. Schmitt).

 

O inimigo, deixa de ser um adversário a que se lhe reconhecem os mesmos direitos, passando a ser considerado como um criminoso que tem de ser eliminado por qualquer meio.

Esta degradação do adversário a criminoso é o pré-requisito para a matança de objetivos selecionados: com a utilização dos drones desaparece o conceito de reciprocidade que era a base da guerra como combate singular ou duelo ritual.

É substituído pela matança através de um clic do rato, o que a torna ainda mais brutal que a caça de animais selvagens.

A própria caça, apesar de tudo, está sujeita a regras de jogo para que não se transforme numa matança sem escrúpulos. Observam-se alguns rituais, com a finalidade de permitir uma certa  reciprocidade e simetria entre o caçador e o animal; o animal só pode ser morto cara a cara; o animal não pode ser morto se estiver a dormir; só pode ser ferido em determinadas partes do corpo; não pode ser ferido nos olhos, para que possa ver o adversário até ao fim.

Já mesmo na guerra aérea, Carl Schmitt, explicava:

 

A guerra de ambos os lados tem que incluir uma certa probabilidade, um mínimo de possibilidade de conseguir uma vitória. Quando não é assim, o inimigo não é mais que um objeto de uma medida coercitiva.”

 

Pelo que a total assimetria da guerra com drones faz com que o próprio conceito de guerra resulte obsoleto.

Para além de se perder completamente o caráter de jogo, nesta guerra com drones a morte produz-se maquinalmente. Os pilotos de drones trabalham por turnos em que a matança não passa de mais um trabalho. Acabado o serviço, entregam uma folha de registo com a pontuação (scorecard) onde constam os homens que mataram.

E como em qualquer outro trabalho, o rendimento é aferido pelos homens que mataram. Há algoritmos que ajudam a melhorar a produção, transformando o inimigo aniquilado numa soma de dados. Dissolve-se o humano morto. Como dizia um antigo responsável:

 

Matamos pessoas baseando-nos em metadados”.

 

A matança produz-se sem combate, sem dramatismo, sem destino. Tudo maquinal, com base no fluir de dados. “Aspira-se a uma transparência dadaísta da matança”.

Hoje tudo se ajusta ao modelo da produção. A guerra que produz a morte é diametralmente oposta à guerra como duelo ritual. A produção e os rituais excluem-se entre si. A guerra com drones reflete aquela sociedade em que tudo passou a ser uma questão de trabalho, de produção e de rendimento”.

 

 

 

 

 

 

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