(283) Os rituais da guerra
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Só nos cansamos do novo, não das coisas antigas, Kierkegaard.
Rituais, são aquelas imagens e metáforas geradoras de sentido, fundadoras de uma comunidade, que, face a um vazio simbólico pré-existente, dão estabilidade à vida, Byung-Chul Han.
O simples intercambio de cortesias com o inimigo, caraterístico dos duelos rituais, pressupunha o reconhecimento do outro como adversário com os mesmos direitos.
O vencedor considera a superioridade das suas armas como uma prova da sua justa causa e declarará o inimigo como criminoso, C. Schmitt.
Hoje, matamos pessoas baseando-nos em metadados.
As ações simbólicas que são os rituais, podem ser vistas como a forma que permitiu ao homem libertar-se da contingência, possibilitando-lhe a estabilidade necessária para a vida.
Dizia Hannah Arendt que o que torna as coisas independentes da existência do homem é a sua durabilidade. É neste sentido que os rituais, são aquelas imagens e metáforas geradoras de sentido, fundadoras de uma comunidade que, face a um vazio simbólico pré-existente, dão estabilidade à vida.
Pela sua repetição e pelo facto de serem sempre os mesmos, os rituais fazem do mundo um lugar fiável, em que a vida se possa demorar em algo. Pressupõe coisas que duram.
Daí que os rituais, o simbólico, apareçam como um meio que origina a comunidade e pelo qual ela se transmite.
Esta é a tese defendida por Byung-Chul Han, na sua mais recente obra, A desaparição dos rituais. Uma topologia do presente. É num capítulo destinado à guerra que esta sua tese se torna mais explicita.
Vai ser Johan Huizinga, embora reconhecendo a existência de um excesso de violência e de assassinatos brutais nas sociedades arcaicas, que nos vai chamar a atenção para o caráter lúdico, na esfera do sagrado do jogo, da guerra nesses tempos.
Esse caráter lúdico da guerra arcaica é realçado não só pela proibição da utilização de certas armas, como pelos acordos relativos ao tempo e ao local em que se desenrolaria a batalha. O campo de batalha é limitado com estacas de madeira, assegurando-se que seja plano, por forma a possibilitar o enfrentamento dos guerreiros:
“Um convénio solene, no qual se fixavam as regras do combate […] se regulava o tempo e o local para o encontro. Proibiam-se todas as armas de arremesso como a lança, o arco e a funda, permitindo-se apenas a espada e a lança.”
O simples intercambio de cortesias com o inimigo, caraterístico dos duelos rituais, pressupunha o reconhecimento do outro como adversário com os mesmos direitos. A troca de presentes e galhardetes, faziam parte deste ritual. Pelo que a guerra como duelo ritual refreia a violência indiscriminada substituindo-a por um jogo com regras. A violência dá lugar à paixão pelo jogo.
De igual forma, o duelo aparece como um combate singular, cujo desfecho equivale nas sociedades arcaicas a um juízo divino, o que lhe confere uma dimensão sagrada.
Também o posterior duelo de honra, se pode considerar como uma forma lúdica ritual. Basta recordar as estritas regras a que está submetido para garantir a simetria mais rigorosa entre os duelistas:
“O lugar onde se efetua é um campo de jogos; as armas devem ser idênticas; começa e termina a um sinal; o número de disparos ou de tempos está prescrito”.
Quem se negar a aceitar o repto do duelo é considerado um homem sem honra. Neste duelo ritual não se trata de aniquilar o outro, mas de demonstrar a honorabilidade de cada um. Os duelistas demonstram a sua honorabilidade saindo para o combate, onde põem a sua vida em risco, onde jogam a sua vida. Independentemente da forma como acabar, o juízo social considera ambos os duelistas como homens de honra.
Segundo o código de honra dos cavaleiros, não é honroso atacar-se o inimigo sem o próprio se colocar em perigo. Só é honroso atacar o inimigo no campo de batalha. E é desonroso matar maldosamente o inimigo, por exemplo, envenenando-o.
Ou seja, um problema de simetria e de reciprocidade. Se o inimigo só tiver uma espada, é reprovável o uso de uma besta. Tudo isto vai constituir a base para a noção europeia de honra militar. Daqui Clausewitz (Da guerra) concluir que “a guerra não seja outra coisa que um combate singular amplificado”. A que se lhe segue aquela sua conhecida afirmação de que “a guerra é a política com outros meios”.
Ou seja, como a guerra continua a ser a política, é sempre possível regressar a ela por outros meios não violentos. Daí que depois da guerra fica sempre espaço suficiente para a política. As regras são estas.
Quando não se seguem estas regras, sucedem-se as matanças indiscriminadas, a violência pura, que destroem o espaço político. A guerra como combate singular ampliado distingue-se fundamentalmente da operação militar que redunda numa matança sem escrúpulos.
Com a introdução dos aviões de combate, o reconhecimento do inimigo cara a cara deixa de ser feito. O simples facto de estar por cima do adversário, induz uma atitude mental de superioridade sobre o inimigo. Ou seja, a assimetria do meio de destruição faz com que o seu proprietário valorize o adversário de forma distinta. A superioridade técnica torna-se superioridade moral.
“O vencedor considerará a superioridade das suas armas como uma prova da sua justa causa e declarará o inimigo como criminoso.” (C. Schmitt).
O inimigo, deixa de ser um adversário a que se lhe reconhecem os mesmos direitos, passando a ser considerado como um criminoso que tem de ser eliminado por qualquer meio.
Esta degradação do adversário a criminoso é o pré-requisito para a matança de objetivos selecionados: com a utilização dos drones desaparece o conceito de reciprocidade que era a base da guerra como combate singular ou duelo ritual.
É substituído pela matança através de um clic do rato, o que a torna ainda mais brutal que a caça de animais selvagens.
A própria caça, apesar de tudo, está sujeita a regras de jogo para que não se transforme numa matança sem escrúpulos. Observam-se alguns rituais, com a finalidade de permitir uma certa reciprocidade e simetria entre o caçador e o animal; o animal só pode ser morto cara a cara; o animal não pode ser morto se estiver a dormir; só pode ser ferido em determinadas partes do corpo; não pode ser ferido nos olhos, para que possa ver o adversário até ao fim.
Já mesmo na guerra aérea, Carl Schmitt, explicava:
“A guerra de ambos os lados tem que incluir uma certa probabilidade, um mínimo de possibilidade de conseguir uma vitória. Quando não é assim, o inimigo não é mais que um objeto de uma medida coercitiva.”
Pelo que a total assimetria da guerra com drones faz com que o próprio conceito de guerra resulte obsoleto.
Para além de se perder completamente o caráter de jogo, nesta guerra com drones a morte produz-se maquinalmente. Os pilotos de drones trabalham por turnos em que a matança não passa de mais um trabalho. Acabado o serviço, entregam uma folha de registo com a pontuação (scorecard) onde constam os homens que mataram.
E como em qualquer outro trabalho, o rendimento é aferido pelos homens que mataram. Há algoritmos que ajudam a melhorar a produção, transformando o inimigo aniquilado numa soma de dados. Dissolve-se o humano morto. Como dizia um antigo responsável:
“Matamos pessoas baseando-nos em metadados”.
A matança produz-se sem combate, sem dramatismo, sem destino. Tudo maquinal, com base no fluir de dados. “Aspira-se a uma transparência dadaísta da matança”.
“Hoje tudo se ajusta ao modelo da produção. A guerra que produz a morte é diametralmente oposta à guerra como duelo ritual. A produção e os rituais excluem-se entre si. A guerra com drones reflete aquela sociedade em que tudo passou a ser uma questão de trabalho, de produção e de rendimento”.