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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(282) As vidas que os nazis criaram

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

A Sociedade Registada Fonte da Vida (Lebesborn e. V), foi inicialmente criada por Himmler, para oferecer às jovens que fossem “racialmente puras” a possibilidade de darem à luz em segredo. A criança seria depois entregue a uma organização das SS que se encarregaria da sua educação e adoção.

 

A preferência ia para os que tivessem cabelos loiros e olhos azuis (curioso este cuidado em não tornar obrigatório, mas apenas preferencial, o critério de cabelos loiros).

 

A partir de 1939, o programa passou a encorajar o rapto de crianças consideradas “racialmente boas”.

 

Acreditar que essas crianças viessem a ser cidadãos decentes era o mesmo que acreditar que os ratos que viviam num armazém viessem a ser animais domésticos.

 

Centenas dessas crianças foram encarceradas em instituições mentais, onde foram muitas vezes abusadas, violadas e com a pele escovada até sangrar.

 

 

 

As boas intenções nazis acabaram sempre por redundar em crimes contra a humanidade, quer quando planificaram as seletivas e indiscriminadas mortes e destruições, quer quando se propuseram criar e proteger novas vidas. A falta de sorte que os acompanhou ao longo da década e meia, o Inverno que chegou mais cedo e rigoroso que o planeado, a falta de combustível e borracha, os judeus que nunca mais acabavam, etc., adiaram por mais umas dezenas ou centena de anos, a realização dessas boas intenções. Não era ainda a ocasião.

Seguem-se dois pequenos exemplos, que comportam ainda a curiosidade de terem em comum o tempo que levaram a serem revelados (muitas dezenas de anos). Os muitos grãos de areia (chamemos-lhe assim) que se escondem dentro dos sistemas.

 

Na Alemanha, o Gabinete Central da Procuradoria para a Administração da Justiça e Investigação dos Crimes Nacional Socialistas, levou a julgamento, em outubro de 2019, Bruno Dey de 93 anos, guarda no campo de concentração nazi de Stutthof, acusado de cumplicidade no assassinato de 5.232 pessoas no final da segunda guerra mundial, entre agosto de 1944 e abril de 1945.

Devido à pandemia, as sessões que decorreram no tribunal de Hamburgo foram limitadas, pelo que o final do julgamento só agora, em finais de julho de 2020, foi concluído com a condenação a dois anos de prisão com pena suspensa (1).

O argumento da acusação foi que os guardas, tendo conhecimento do que se passava, impediam a fuga dos prisioneiros, desempenhando assim um papel preponderante para o assassinato em massa de 65.000 pessoas.

No caso de Dey, incluíam-se 5.000 prisioneiros que morreram de tifo por lhes ter sido negado o aceso a comida, água, medicamentos, e pelas catastróficas condições de higiene, 200 que foram gaseados com Zyklon B e 30 que foram executados com um dispositivo que permitia serem mortos com um tiro no pescoço.

Acresce ainda que apesar de milhares de guardas das SS terem pedido para serem transferidos para outros serviços, Dey nunca optou por essa possibilidade.

Segundo um dos 40 sobreviventes, Manfred Goldberg, apesar de estar satisfeito por finalmente (75 anos) a justiça ter atuado, entende que a pena é insultuosa, porquanto dois anos de prisão com pena suspensa é o que se dá a quem é apanhado a roubar numa loja. Não desejando que Dey, devido à avançada idade ficasse preso, Goldberg entendia que a pena, mesmo simbólica, deveria ter sido bastante maior.

 

 

Em dezembro de 1935, no mesmo ano em que as Leis de Nuremberg proibiam o casamento com judeus e outros povos considerados inferiores, Heinrich Himmler, dá início ao projeto “Fonte da vida” (Lebensborn), com a finalidade de inverter o declínio da população germânica e nórdica, e permitir alcançar a meta de 120 milhões de alemães.

O projeto encorajava os membros das SS e os oficiais das Forças Armadas a terem filhos com mulheres arianas, filhos que viriam a ser os futuros dirigentes da nação nazi-ariana. E cria a “Lebensborn e. V.” (Sociedade Registada), registada em Munique, que oferecia às jovens que fossem “racialmente puras” a possibilidade de darem à luz em segredo. A criança seria depois entregue a uma organização das SS que se encarregaria da sua educação e adoção.

Tanto o pai como a mãe, necessitavam primeiro de passar num teste para atestar a “pureza racial”. A preferência ia para os que tivessem cabelos loiros e olhos azuis (curioso este cuidado em não tornar obrigatório, mas apenas preferencial, o critério de cabelos loiros), e em que a linhagem da família pudesse ser possível de ser traçada até três gerações.

Apenas cerca de 40% das mulheres que concorriam eram aceites para este programa Lebensborn. Até 1939, 57.6% das mães não eram casadas, subindo para 70% em 1940.

No início, as Lebensborn eram levadas para enfermarias das SS. Mas para virem a criar uma “super-raça”, as SS transformaram as enfermarias em “locais de encontro” para as mulheres racialmente puras que queriam ter filhos de oficiais das SS. Às mães grávidas, casadas ou não, era-lhes providenciada casa, meios de alimentação e outros, por forma os filhos ficarem em segurança e conforto.

A primeira instalação Lebensborn abriu em 1936 em Steinhoering, perto de Munique. O mobiliário das casas provinha dos melhores lotes retirados a judeus que tinham sido enviados para Dachau.

Chegaram a existir dez casas Lebensborn na Alemanha, nove na Noruega (a preferência concedida à Noruega vinha do facto de os nazis considerarem os noruegueses como raça pura ariana), seis na Polónia, duas na Áustria, duas na Dinamarca, uma na Bélgica, Holanda, França e Luxemburgo.

Himmler a tudo provia e, sempre atencioso, nunca esquecia especialmente as crianças que nasciam a 7 de outubro, data do seu aniversário.

Contudo, como em 1939 o programa não estava a produzir os resultados desejados, dá ordens diretas para que todos os SS e polícias fossem pais do maior número possível de crianças, para assim compensarem as baixas infligidas pela guerra.

A partir de 1942, o Lebensborn, com o acordo de Hitler, passa a ser estendido a mães não-germânicas, encorajando os soldados a confraternizarem com mulheres nativas no entendimento que os filhos resultantes seriam protegidos. As namoradas ou casos de uma noite de oficiais das SS, eram convidadas para as casas da Lebensborn, para aí terem os seus filhos com toda a privacidade e segurança.

Ainda a partir de 1939, o programa passou a encorajar o rapto de crianças consideradas “racialmente boas” (cabelos loiros e olhos azuis ou verdes) nos países orientais ocupados. Embora algumas das crianças fossem órfãs, muitas eram arrancadas às famílias. Só da Polónia contam-se 100.000 crianças nestas condições.

Eram depois transferidas para centros Lebensborn a fim de rejeitarem e esquecerem os pais (as enfermeiras da SS tentavam persuadir as crianças de que os pais as tinham abandonado), e serem “germanizadas”. As que recusassem a educação nazi, eram açoitadas, acabando parte delas enviadas para campos de concentração e exterminadas. As outras eram adotadas por famílias das SS.

Em 1945, quando as tropas americanas entraram em Steinhoering, encontraram 300 crianças, entre os seis meses e seis anos, a vaguearem pelas instalações. As mães e o pessoal tinham fugido. O mesmo se passou com as tropas russas e inglesas nas casas Lebensborn perto de Bremen e Leipzig.

Calcula-se que durante os dez anos da existência do programa, nasceram pelo menos 8.000 crianças na Alemanha e 12.000 na Noruega. Quanto às crianças raptadas nos países de Leste e enviadas para a Alemanha, estima-se terem sido 250.000. Apenas 25.000 foram recolhidas após a guerra, e entregues às famílias.

Algumas das famílias alemãs que tinham recebido crianças dos centros Lebensborn, recusaram-se a devolvê-las às famílias verdadeiras. Em alguns casos, foram as crianças que se recusaram serem entregues às famílias verdadeiras: vítimas da propaganda nazi, acreditavam serem alemães puros.

 

 

O governo democrático norueguês do pós-guerra, tudo fez para ser visto como distante das posições nazis.  Neste caso, vilipendiando publicamente as crianças nascidas de mães norueguesas e pais nazis. Estão documentados os casos de intimidações, perseguições, abusos físicos e mentais, para com essas crianças e suas mães.

Aliás, pouco antes da guerra acabar, o governo norueguês exilado em Londres, começou a transmitir avisos e ameaças aos colaboradores nazis:

 

Já antes avisámos e repetimos que essas mulheres pagarão o preço para o resto das suas vidas: elas serão desprezadas por todos os noruegueses pela sua falta de contenção”.

 

Mal a guerra terminara e já a muitas dessas mulheres se lhes rapava o cabelo, chamando-as de “putas alemãs”, exibindo-as ao longo das avenidas e praças. O governo norueguês tentou deportar as Lebensborn para a Alemanha, mas os Aliados opuseram-se.

A comunicação social agitava o espantalho de essas crianças “transportarem o vírus das características masculinas típicas dos nazis que o mundo já vira mais do que o suficiente”.

Um conhecido psiquiatra alertava para o facto de grande parte dessas 8.000 crianças terem maus genes, sendo por isso atrasadas mentalmente, “geneticamente más”, pelo que deviam ser “internadas em instituições especiais”.

Como resultado, centenas de crianças foram encarceradas em instituições mentais, onde foram muitas vezes abusadas, violadas e escovadas até a pele sangrar (2).

Como dizia em julho de 1945 um membro do Ministério dos Assuntos Sociais:

 

Acreditar que  viessem a ser cidadãos decentes era o mesmo que acreditar que os ratos que viviam num armazém viessem a ser animais domésticos”.

 

Apesar de ao longo de vários anos as vítimas terem procurado obter uma compensação do governo norueguês pela discriminação a que foram sujeitas, o governo nunca aceitou a culpa:

 

O governo tem conhecimento que várias crianças de guerra foram sujeitas a perseguição na sociedade. Mas é muito difícil que agora, passados 50 anos, que o governo seja responsabilizado por esses acontecimentos”.

 

Em 2007, 157 dessas então crianças, apelaram para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Perderam a ação, exatamente porque o caso já se passara há muito tempo.

 

Recordo Cleobulo de Lindos (600 a. C.) quando dizia que “A ocasião é o mais importante da vida” ou, mais prosaicamente, aquele capitão instrutor de cavalaria que, quando lhe expusemos que um nosso colega tinha partido um braço numa daquelas aulas loucas de montaria após um almoço bem regado, o que tinha sido um azar, se voltou para nós e, furibundo, nos instruiu sobre o significado de “azar”:

“Azar!! Azar é cair do cavalo, bater com o cu no chão e partir o caralho!”.

 

A ocasião, o azar e a sorte, como explicação simplista, propalada, cavalgada e aceite, para o que constitui vida e morte.

 

 

 

 

 

 

 

Sobre “nazismo”, consultar blogs de 9 de março de 2016, “Nazis nas escolas”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/nazis-nas-escolas-13204)

 de 16 de março de 2016, “Nazis fora das escolas”,   (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/nazis-fora-das-escolas-13370)

 de 27 de setembro de 2017, “Os ovos da serpente”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/130-os-ovos-da-serpente-34914),

 de 14 de agosto de 2019, “Raízes do ecofascismo”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/228-raizes-do-ecofascismo-as-boas-60056)

de 15 de janeiro de 2020, “O nazismo nada tem de banal”,(https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/250-o-nazismo-nada-tem-de-banal-65589).

 

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