(270) Os bárbaros já cá estão
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O vírus da Covid foi um presente de Deus. O reino de Deus avança através de uma série de vitórias gloriosas, habilmente disfarçadas de desastres, Ken Eldred.
Antes da Segunda Vinda de Cristo, qualquer ensinamento sobre paz é uma heresia, James Robison.
As nossas escolas ensinam às crianças que elas não passam de chimpanzés glorificados que evoluíram a partir do barro primordial, Tom Delay..
“If you can say you can’t breathe, you’re breathing”, Hal Marx.
“À espera dos bárbaros”, é um dos poemas escritos por Constantino Cavafy antes de 1911, traduzido por Jorge de Sena em 1953, publicados pela Centelha em 1986 (Noventa e mais quatro poemas), que, embora sem a vocalização e a cadência da língua grega, vale a pena, aqui e agora, lembrar:
O que esperamos nós em multidão no Forum?
Os Bárbaros, que chegam hoje.
Dentro do Senado, porquê tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?
É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haviam de fazer agora s senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.
Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
No seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?
Porque os bárbaros chegam hoje.
E o imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.
E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
Com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?
Porque os Bárbaros chegam hoje,
E coisas dessas maravilham os Bárbaros.
E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
Para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?
Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.
Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?
Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.
E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.
Quando em 1536, João Calvino publicou A Instituição da Religião Cristã (Christianae Religionis Institutio), ou como é mais conhecido As Institutas (ensinos doutrinários próprios para a formação de um cristão), provavelmente estava longe de imaginar as repercussões que tais “verdades da religião cristã” acabariam por ter, ainda hoje.
Na linha de intenções agora saído do tronco do calvinismo, o teólogo americano Rousas Rushdooney (1916-2001) publica em 1973, os seus Institutos da Lei Bíblica (Institutes of Biblical Law), onde vai defender que a sociedade americana deveria ser governada de acordo com os preceitos bíblicos dos Dez Mandamentos, pois só assim Deus daria aos americanos, o domínio total sobre a Terra, tal como acontecera com Adão e Noé. Esse domínio implicaria também a subjugação de todos os não-crentes, possibilitando assim a nova vinda do Messias.
Seria certamente o fim dos tempos atuais. No fim destes tempos, instalados o caos e as guerras, os não-crentes sofrerão tormentos e morte, apenas se salvando os eleitos que serão arrebatados para o céu (o Arrebatamento) pelo regresso do Messias.
A sociedade desses chamados Estados Unidos Cristãos, preconizada e prevista nos Institutos, é uma sociedade dura, violenta e que não perdoa. O adultério, a bruxaria, a blasfémia, a homossexualidade, o incesto, a bestialidade, a apostasia, o rapto, o estupro e o mentir sobre a virgindade de outrem, serão crimes puníveis com pena de morte.
Será, ainda e também, uma sociedade eminentemente branca, pois, segundo Rushdooney:
“O homem branco tem atrás de si séculos de cultura Cristã, bem como a disciplina e a seleção resultante dessa fé” […] “O negro é um produto com um passado radicalmente diferente, e a sua hereditariedade tem sido governada por considerações radicalmente diferentes.”
Ao governo federal pouco mais deve caber do que a defesa nacional. A educação e os serviços sociais devem ser entregues às igrejas. A lei bíblica deve substituir a legislação secular. A ideologia deve tudo comandar.
Tal será conseguido através das escolas cristãs a que o estado deve entregar os meios financeiros suficientes, bem como aos serviços sociais da igreja em substituição das repartições do estado. Dinheiro em quantidade deve ser disponibilizado a organizações religiosas fundamentalistas e para programas que promovam a abstinência sexual.
Os leaders religiosos mais relevantes, como Tony Evans, Tom Delay, Pat Robertson e Zell Miller, acreditam que foram escolhidos por Deus para este combate contra as forças do mal encarnadas no “humanismo secular”, para assim criarem a nação verdadeiramente cristã. O teólogo Francis Schaeffer, não se coíbe em apontar os “humanistas seculares”, como sendo “a maior ameaça, jamais vista pelo mundo, à cristandade”.
Um dos livros que melhor retrata a finalidade destes movimentos é America’s Providential History, livro importante porque serve de base ao ensinamento em grande parte das escolas cristãs. Começando por citar o Genesis 26, “os homens têm domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves do ar, sobre o gado e sobre toda a terra e sobre todas as coisas que existam sobre a terra”, vai pretender provar que na Bíblia se acredita que a América foi escolhida por Deus para vir a ser “a primeira verdadeiramente nação cristã”, tendo como obrigação dominar todo o mundo.
Como se chega lá? O genro de Rushdooney, Gary North, fundador do Instituto de Economia Cristã, diz abertamente (“Christianity and Civilization”, Spring, 1982):
“Sejamos francos: Devemos usar a doutrina da liberdade religiosa como forma para obtermos essa independência para as escolas cristãs até conseguirmos ter doutrinado uma geração de pessoas que sabem que não existe a neutralidade religiosa, que não existem leis neutrais, nem educação neutral, e nem governo civil neutral.”
Esta seria a forma com que os “dominionistas” teriam para operarem numa “sociedade secular contaminada”, num estado liberal. Ou seja, teriam de se mascararem de bonzinhos, aprenderem a falar em código, única forma que lhes permitia manter essa dicotomia entre a face pública e a privada. Aliás nada que não tivesse já sido usado por certas vanguardas políticas ou por terroristas islâmicos que cortavam as barbas, que se vestiam à ocidental, viam filmes pornográficos nos quartos de hotéis antes de no dia seguinte assaltarem aviões para um ataque suicida.
Essa dicotomia é bem expressa pelo conhecido tele evangelista e ex-candidato presidencial Pat Robertson, quando no panfleto, “How to Participate in a Political Party” (Como participar num partido político), distribuído aos seus seguidores no Caucus Republicano de Iowa (Iowa Republican County Caucus) para as eleições (1986) dentro do partido Republicano, os incentiva a:
“Dar a impressão de que lá está para trabalhar para o partido, e não para impor uma ideologia.
Esconda a sua força.
Não exiba a sua Cristandade.
Os Cristãos necessitam de ter posições de liderança. Os oficiais do Partido controlam os partidos políticos e por isso é muito importante que os verdadeiros Cristãos obtenham sempre que possível a maioria dessas chefias, se Deus quiser.”
A justificação para esta ideologia, vai a “Direita Cristã” buscar a algumas partes apocalíticas da Bíblia (Livro das Revelações, Evangelho segundo João, conversão de Paulo na estrada para Damasco no Livro dos Atos dos Apóstolos), únicas em que Jesus sanciona a violência, e em que Cristo aparece como o comandante de um exército de vingadores celestiais.
O Jesus dos outros três Evangelhos, o Jesus que dá a outra face e abraça os inimigos, ideia radical e espantosa naquele mundo romano, a mensagem de amor, perdão e compaixão, é totalmente expurgada da narrativa selecionada pela Direita Cristã, que opta por se focar na mensagem de destruição e perdição para os não crentes, dividindo radicalmente o mundo entre o bem e o mal, entre os que são agentes de Deus e todos os outros que são agentes do Diabo.
Não é de admirar que segundo esta visão, o culto da masculinidade invada a ideologia. O feminismo e o homossexualismo são as forças sociais que tornaram os machos americanos fisicamente e espiritualmente impotentes. Jesus é o batalhador contra o Anticristo, atacando hipócritas e castigando os corrutos. O culto da masculinidade vai glorificar a força, a violência e a vingança. Apregoa-se a guerra santa:
“Antes da Segunda Vinda de Cristo, qualquer ensinamento sobre paz é uma heresia”, expressa o evangelista James Robison.
Para estes líderes que acreditam piamente que Deus os escolheu para criarem a Nação Cristã, na batalha contra as forças do mal, representadas pelo “humanismo secular”, a marcha para a guerra global, ou mesmo para a guerra nuclear, não deve ser temida, deve antes ser acolhida como um sinal que a Segunda Vinda está perto: a vinda do Messias à frente de um exército que chacinará milhões de não crentes.
Os desastres naturais, ataques terroristas, instabilidade em Israel, a guerra no Iraque, tudo isso não passam de sinais. A guerra no Iraque já tinha sido prevista de acordo com os crentes no capítulo 9 do Livro das Revelações, quando quatro anjos “são encaminhados para o rio Eufrates para chacinarem terça parte da humanidade”.
Tudo o que possa impedir este caminho para a confrontação final, atrasando-a, deve ser atacado. Daí, Pat Robertson, no seu livro, The New World Order, dirigir os seus ataques contra as Nações Unidas e outras organizações internacionais.
Não é por acaso que esta Direita Cristã tem vindo a impor que o criacionismo, ou o “desígnio inteligente” face parte dos programas de grande parte das escolas, a ser ensinado em pé de igualdade científica com o evolucionismo. O descrédito das disciplinas racionais, pilares do Iluminismo, é fundamental para destruir a indagação intelectual honesta e desapaixonada. A partir daí, os factos passam a poder ser intermutáveis com as opiniões.
O conhecimento da realidade não necessita já de ter por base a colheita elaborada de factos e evidências. Só por si, a ideologia é a verdade. Os factos que se interponham no caminho da ideologia podem ser mudados. As mentiras passam a ser verdades.
Segundo o criacionismo, as espécies animais cabiam todas na arca de Noé. O Grand Canyon foi criado em alguns milhares de anos pelas águas do dilúvio que levantaram a arca de Noé. E a Terra tem apenas alguns milhares de anos, tal como vem no Genesis.
A quando do massacre de Columbine, o político republicano Tom Delay, durante o seu discurso no Congresso (16 junho 1999) disse que aquelas mortes aconteceram porque “as nossas escolas ensinam às crianças que elas não passam de chimpanzés glorificados que evoluíram a partir de barro primordial”.
“Este movimento não para até todos sermos regidos pela Lei Bíblica, uma igreja autoritária que se imiscuirá em todos os aspetos da nossa vida, as mulheres ficarem em casa a cuidarem dos filhos, os homossexuais a serem curados, o aborto considerado como assassínio, os meios de comunicação e as escolas a promoverem os valores Cristãos “positivos”, o governo federal domado, e em que a guerra será a única forma de comunicação com o resto do mundo e os recalcitrantes não crentes serão eviscerados ao som da voz do messias”, (Chris Hedges, “The Rise of Religious Right in the Republican Party”).
Quaisquer tentativas de debater racionalmente problemas com estes movimentos não levam a nada. E isto porque eles não querem nenhum diálogo. As únicas opiniões que contam são as deles. As únicas certas. Têm sempre resposta para tudo. (1)
Exemplo muito curto e recente: Hal Marx, presidente da câmara de Petal, cidade perto de Jackson, justificando o incidente em Minneapolis da morte filmada do americano negro Floyd pelo polícia Derek Chauvin, escreveu no Twitter que não viu nada de anormal na ação do polícia, porquanto se o submetido podia dizer que não podia respirar é porque estava a respirar (“if you can say you can’t breathe, you’re breathing”. (https://www.yahoo.com/news/t-breathe-breathing-mississippi-mayor-231418722.html).
Toda aquela mensagem de amor e compaixão de Cristo, desaparece perante esta mensagem de violência e ódio. Pelo que qualquer acontecimento tido como catastrófico pode vir a servir, ser aproveitado, como desculpa para o desmantelamento acelerado da sociedade que conhecemos.
Ken Eldred, importante doador de campanhas evangélicas e republicanas, líder da UIP (United in Purpose), para o lançamento da coligação “Evangélicos por Trump”, disse a propósito do covid19:
“O vírus da Covid foi um presente de Deus. O reino de Deus avança através de uma série de vitórias gloriosas, habilmente disfarçadas de desastres”.
Ainda segundo ele, milhões de americanos estão se voltando para Cristo, o Walmart está vendendo Bíblias e as transmissões online das igrejas atingiram números recordes.
Hannah Arendt, dá-nos uma explicação sobre o comportamento das massas, quando nas Origens do Totalitarismo, escreve:
“Aquilo que convence as massas não são os factos, nem mesmo os inventados, mas apenas a consistência do sistema de que eles presumidamente fazem parte. A repetição, muitas vezes sobrevalorizada por se acreditar na capacidade inferior das massas para a perceber e recordar, é, contudo, importante porque as convence da consistência ao longo do tempo.”
- Recomendo leitura do blog de 15 nov 2015, “A cartilha do fundamentalismo”,(https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-cartilha-do-fundamentalismo-8885).
Retiro algumas passagens:
“[…] Uma vez criado este meio social, torna-se impossível quebrá-lo pela persuasão. Se algum indivíduo de opinião contrária abrir a boca para persuadi-los, eles comportam-se como surdos, não ponderam as razões que lhes são oferecidas, e a tudo respondem repetindo as palavras de João: ‘Nós somos de Deus; aquele que conhece Deus nos ouve’.
Eles são assim impermeáveis a quaisquer argumentos e têm respostas bem treinadas. Caso lhes sugiram que são incapazes de julgar tais matérias, responderão: ‘Deus escolheu os simples´. Caso se lhes mostre que estão dizendo coisas sem sentido, dirão: ‘Até mesmo os Apóstolos de Cristo foram considerados loucos´. Caso se lhes acene com um mínimo de disciplina, dissertarão sobre a ´crueldade dos homens sanguinários’ e apresentar-se-ão como a inocência perseguida por dizer a verdade. Em suma, não há argumento que possa abalar a rigidez psicológica da sua atitude [..].
[…] Mas Hooker vai mais longe na desarticulação do gnosticismo, chamando a atenção para os perigos que ele representava para a destruição da ordem racional estabelecida e para a utilização da função social da persuasão.
Segundo ele, a posição dos puritanos, contrariamente ao que defendiam, não se baseava nas Escrituras: eles usavam as Escrituras apenas quando certas passagens delas, retiradas de contexto, corroboravam a causa, ignorando-as nos outros casos.
Esta colagem que faziam às Escrituras fora inicialmente necessária, porquanto não se poderiam apresentar abertamente como um movimento anticristão. Mas essa camuflagem, a partir de certa altura, começou a ser incómoda.
Para evitarem as críticas embaraçosas, vão servir-se de dois recursos técnicos, que ainda hoje são utilizados pelos movimentos fundamentalistas:
O primeiro era a escolha padronizada de seleções efetuadas das Escrituras, bem como pela interpretação das mesmas. A reforma de Lutero, ao dar a liberdade de interpretação das Escrituras feita por cada um de acordo com as suas preferências, conduzia ao caos; além do mais, uma vez que todas as interpretações seriam assim possíveis e equivalentes, não se poderia argumentar contra a interpretação da Igreja, porquanto essa também seria válida.
Quando Calvino publica os Institutes, uma formulação sistemática das Escrituras para a nova doutrina, o seu propósito foi o de oferecer orientação para uma leitura correta das Escrituras que evitasse o recurso a todas as obras anteriores, partindo do princípio que era nos trechos escolhidos que residia a verdade.
Esta obra de Calvino foi o primeiro Livro/Lei gnóstico criado de modo deliberado por alguém capaz de romper com a tradição intelectual da humanidade, porque estava imbuído da crença, da fé, de que com ele se iniciaria uma nova verdade e um novo mundo […]”