(267) A bondade do homem, a maldade da mulher
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Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher, Pitágoras.
O meu único repouso consistirá em ver o universo comigo confundido na mesma ruína: que tudo desapareça comigo! É doce, ao morrer, arrastar a outrem, Medeia de Sófocles.
Mentalidade primitiva [é] uma designação bastante justa para a conduta mental da maior parte dos homens de hoje, Nilsson.
Quem quer que, tendo no coração um outro sentido religioso, se aproximar destes olímpicos, em busca de elevação moral, de santidade, de imaterialidade espiritual, e procurar nos seus olhos amor e piedade, em breve decerto se afastará deles, irritado e desiludido, Nietzsche.
Mitos, são narrativas fabulosas inicialmente engendradas como explicação totalizante da vivência humana (drama ou tragédia) onde se congregam todos os ingredientes irredutíveis que a uma narrativa emprestam qualidade mítica, nela assumindo a forma de um sentimento, uma estrutura, um estado, um número, uma dificuldade.
Aparecem como um sistema, mais ou menos coerente, de explicação do mundo, em que cada um dos gestos dos intervenientes (heróis) que nele participam pode implicar consequências que se repercutirão em todo o Universo.
Estas elaborações, que muitos creem oriundas de mentalidades primitivas, têm, no entanto, muito pouco de primitivas, sendo antes conceções já bastante evoluídas que devem ter sido formadas em meios sacerdotais e que, pouco a pouco, foram sendo integradas com elementos filosóficos na forma de símbolos.
Os mitos que mais comumente se encontram em todas as civilizações são os que se referem à formação do mundo (mitos “cosmogónicos”) e ao nascimento dos deuses (mitos “teogónicos”).
Seguem-se-lhes os mitos que nos contam séries de episódios ou histórias, em que a única unidade é fornecida pela identidade de uma personagem que é o herói (Heraclito, Gilgamesh e outros). Os especialistas chamam-lhes “ciclos”.
Distinguem-se ainda as “novelas”, nas quais a unidade intrínseca é puramente literária, definindo-se apenas pela intriga. Por esse motivo não há um “ciclo Aquiles”, ou um “ciclo Helena (de Troia)”, mas antes a Ilíada, novela de uma longa aventura com histórias, episódios complexos e personagens variadas.
Só que estas distinções que aparentemente tão bem servem para um processo de arrumação classificativo, não são nem estáticas nem imutáveis. Nem no conteúdo, nem no tempo, nem na utilização. Daí que um mito cosmogónico ou teogónico, possa facilmente transformar-se num ciclo ou novela, conforme a fantasia ou as exigências espirituais da sociedade a que diz respeito lhes vai introduzindo. É esta plasticidade do mito que lhe tem permitido sobreviver desde esses tempos longínquos. Como metamorfose que continua a permitir-lhe sobreviver nos dias de hoje. Como a humanidade.
Um dos mais conhecidos mitos é o que aparece referenciado como “ciclo dos Argonautas”, relativo à procura e roubo do Velo de Ouro, e ao encontro e relação entre Jasão e Medeia. Ele é particularmente importante por, pela primeira vez, nos mostrar a diferença em confronto do papel atribuído pelos deuses ao homem e à mulher.
Muito esquematicamente, trata-se da expedição à Cólquida empreendida pelos Argonautas chefiados por Jasão com o fim de se apoderarem do Velo de Ouro, das dificuldades que tiveram para lá chegar, do encontro entre Jasão e Medeia, da superação de provas e da fuga com o Velo de Ouro, do fratricídio perpetrado por Medeia, do abandono de Medeia por Jasão, da vingança de Medeia, e do filicídio por ela cometido.
Compliquemos: Jasão, filho do rei Aesão de Iolcos, Tessália, vê-se forçado a exilar-se após o pai ter sido destronado pelo meio-irmão Pélias. Chegado à idade adulta, resolve regressar sem ser reconhecido e apresentar-se na corte de Iolcos. Alto, bem constituído, de cabelos loiros, vinha estranhamente vestido: com uma pele de pantera sobre os ombros, uma lança em cada uma das mãos, com o pé esquerdo descalço à maneira dos guerreiros antigos.
Ao vê-lo, Pélias recordou-se da profecia de um oráculo que o avisara para se acautelar com um parente que lhe aparecesse calçado com uma só sandália. Dirigindo-se ao jovem, perguntou-lhe qual seria o castigo que aplicaria a quem conspirasse contra o seu rei. Sem exitar, Jasão disse que o enviaria à Cólquida para conquistar o Velo de Ouro, máxima aspiração de Iolcos. Pélias faz-lhe ver que ele próprio acabara de se condenar e que, portanto, teria de obedecer e organizar uma expedição nesse sentido.
Segundo se acreditava, o Velo de Ouro era a pele de um cordeiro divino com lã de ouro, que Hermes tinha oferecido a Néfele, a primeira mulher do rei Átamas. Assim que Ino, a segunda mulher do rei, soube que Frixo e Hele, filhos de Néfele, se preparavam para regressar ao reino, organizou um plano para os prender e sacrificar. Para os salvar, Néfele resolve enviar aos filhos o cordeiro divino, que os deveria transportar pelos ares até à Cólquida (no Cáucaso).
Durante o percurso, ao atravessar o estreito, Hele caiu, afogando-se, pelo que desde essa altura o estreito passou a ter o nome de Helesponto (mar de Hele). Frixo conseguiu salvar-se e chegado a terra firme, num bosque sagrado de Ares, resolveu oferecer a Zeus o sacrifício do cordeiro. Aetes, o rei da Cólquida, acabou por se apoderar da pele do cordeiro, guardando-a ciosamente desde então.
Dando início à sua tarefa, Jasão começou por pedir ajuda a Argos, filho de Frixo. Com o aconselhamento de Atena, Argos inicia a construção de uma embarcação, a Nave Argo, que possuiria propriedades maravilhosas (podia falar e profetizar). Durante a construção, Jasão vai reunir uma tripulação de cerca de cinquenta homens, todos de boas famílias: os “navegadores de Argos”, os “Argonautas”.
Entre eles encontramos nomes dos principais príncipes e heróis da idade imediatamente anterior à guerra de Troia, todos eles filhos e netos de deuses: Hércules, Orfeu, o músico-mestre, os filhos de Tíndaro, Castor e Pólux, Peleu, o pai de Aquiles, Lince ou Linceu (“de quem um só golpe de vista descobre os objetos mais afastados”), Cálais e Zetes, ambos filhos do Vento Bóreas, Tífis (“o domador das vagas”).
Segue-se a descrição da tormentosa e aventureira viagem até à Cólquida, onde se contam peripécias como a estadia na ilha de Lemnos só habitada por mulheres (por Afrodite lhes ter morto todos os homens, ou por os homens terem fugido por elas cheirarem mal), os filhos que lá deixaram; o episódio da costa da Mísia onde Hércules perde o seu fiel pajem Hilas para as Ninfas; o auxílio que prestam a Fineu, o velho adivinho cego pelos deuses, combatendo e afastando as Harpias que o impediam de comer; o segredo revelado por Fineu que lhes permitiu a passagem incólume pelos Rochedos Movediços (Simplégades), enormes rochas errantes que se fechavam se um navio tentasse passar por elas.
Após mais algumas escalas, alcançam finalmente a Cólquida. Jasão apressa-se a informar o rei Aeëtes do motivo da sua presença. Aeëtes não se recusa a dar-lhes o Velo de Ouro, mas para isso, Jasão deveria primeiro enfrentar e domar os dois ferozes touros com patas de bronze e que deitavam fogo pelas ventas. Depois, deveria lavrar com os touros um determinado campo, no qual semearia dentes do dragão de Ares.
Tarefa impossível, não fosse a ajuda de Medeia, a filha do rei, que mal vira Jasão logo ficara loucamente apaixonada. Medeia dá-lhe um bálsamo mágico, que o tornaria invulnerável e imune às queimaduras. Explica-lhe também como teria de proceder após ter lançado à terra os dentes de dragão, dos quais iriam surgir guerreiros totalmente armados e prontos a matá-lo: Jasão teria de atirar uma pedra para o meio do círculo que os guerreiros fizessem, que eles logo se voltariam para o local onde a pedra cairia, e matar-se-iam uns aos outros.
Ao ver que Jasão sairia vencedor, o rei não cumpre a promessa de lhe entregar o Velo de Ouro, dirigindo-se antes para o porto para incendiar a Nave Argo. Entretanto, auxiliado por Medeia que consegue adormecer com uma canção de encantamento a terrível serpente que guardava o velo, Jasão apodera-se dele e fogem os dois. Medeia leva consigo o irmão mais novo, Absirto. Aeëtes persegue-os.
Para o retardar, Medeia mata o irmão, esquarteja-o e dispersa pelo mar as partes do corpo. O rei perde tempo a tentar recolher os vários pedaços do filho. Os Argonautas escapam e mudam de rota (há divergências sobre as possíveis rotas seguidas).
A voz da Argo faz-lhes saber que Zeus ficara irritado pela morte de Absirto, pelo que para se purificarem deveriam aportar ao país de Circe (irmã de Ates), na costa italiana. Purificados por Circe, atravessam o mar das Sirenes que, com as suas vozes encantatórias reteriam os Argonautas não fosse Orfeu que, com as suas canções e melodias, a todas elas emudecesse.
Passam o estreito de Messina, e são atirados para as costas da Líbia. Daí intentam prosseguir para Creta, onde o gigante de bronze Talo impede o acesso à ilha arremessando-lhes pedregulhos. Vale-lhes de novo Medeia, que com os seus encantamentos leva Talo a quebrar o seu tornozelo nos rochedos (único ponto em que era vulnerável, acabando por morrer). Finalmente, alguns dias depois, chegam à Grécia, desembarcando com o Velo de Ouro em Iolcos, onde continuava a reinar Pélias.
Durante o tempo em que reinara, Pélias levara o pai de Jasão ao suicídio, tendo a mãe morrido de desgosto. Medeia decide vingar-se de Pélias. Insinuando-se junto das filhas do rei, consegue persuadi-las a rejuvenescer o pai. Mostra-lhes como consegue com um cordeiro velho cortando-o aos bocados e pondo-o a ferver numa poção mágica, transformá-lo num cordeiro novo.
As filhas de Pélias não hesitam. Embebedam o pai, cortam-no aos pedaços, e põem-no num caldeirão a ferver. Quando procuram por Medeia para lhes dar a poção mágica, não a encontram.
Depois deste crime, Jasão e Medeia são banidos de Iolcos, retirando-se para Corinto, onde vivem por uns anos e lhes nascem dois filhos. Para melhor garantir a segurança da sua família, Jasão acede em aceitar para esposa, a filha do rei de Corinto. Fingindo aceitar a combinação, Medeia vai oferecer à noiva um vestido lindíssimo. Quando a noiva o veste, além de morrer envenenada, o vestido pega fogo ao palácio.
Para completar a vingança, sabendo que Jasão não lhe perdoaria, Medeia mata os dois filhos, e foge num carro voador puxado por dragões.
Este é um resumo possível das várias versões desta procura do Velo de Ouro. Convém, no entanto, estarmos atentos às realidades e não nos deixarmos envolver pelas espantosas histórias quase sem fim que tão bem cumprem a sua finalidade de não terem fim.
Estamos certamente perante a primeira narrativa de uma grande empresa ultramarina, fruto da abertura das rotas para o Mar Negro que se verificaram no século VIII a. C., e das expedições marítimas que se aventuraram naqueles tempos à conquista e colonização de novas terras, de regiões bárbaras, longínquas, inóspitas e desconhecidas que ocultavam tesouros magníficos, como o Velo de Ouro. O longínquo Este (far east).
Era o início de tempos novos que punham fim a uma época em que “cada um estacionava preguiçosamente sobre a sua própria costa, envelhecendo na terra dos avós, contente com o pouco que possuía e ignorante de quaisquer riquezas que não fossem as do solo natal” (Séneca, Medeia)
Esta gesta, foi contada, cantada e assumida naqueles tempos antigos por mais de centena e meia de autores, acabando, inclusivamente, por ser tida como verídica por alguns: Heródoto, outorgava valor histórico à viagem do Argo, bem como ao rapto de Medeia; o mesmo acontecendo, séculos mais tarde com Estrabão, que chega a aduzir como razões para a expedição a procura de riquezas minerais. Para alguns arqueólogos, a própria existência do velo poderia estar relacionada com o costume típico verificado na região do rio Fásis onde se utilizava a pele de um carneiro para peneirar as areias auríferas.
Estamos também perante uma grande narrativa anterior às de Homero, já que os heróis que participam na expedição pertencem cronologicamente a uma geração que precede a dos grandes heróis homéricos, onde também os deuses imortais, seja por suscetibilidade de amor, por capricho ou por misteriosa eleição, procuram, independente de qualquer forma carnal (cisne, touro ou homem) o ente humano, dando assim vida a Perseu, Aquiles, Eneias, Helena, Clitemnestra, Hércules, etc.
Nestes mitos helénicos, os heróis são sempre apresentados como seres assimétricos, não só pelo seu nascimento, por provirem do encontro entre dois entes que não guardam entre si proporção no valor, no estado, na finalidade de cada um (entre um deus ou deusa e um vulgar humano), como ainda pela influência que tal assimetria induz no seu comportamento.
É isso que faz com que o herói esteja condenado a não conciliar a afetividade natural (onde cabem o enamoramento, o desejo, a gratidão, a piedade) e um destino implacável, a que o seu impassível estado divino se conforma.
Píndaro (522 a.C.-443 a.C.), numa das primeiras referências escritas sobre Jasão, descreve-o como o arquétipo do herói, fazendo alusão à sua grande beleza física e à sua natureza virtuosa, a todos sobranceiro pela estirpe, pelo mando e pelo extremo vigor, com uma olímpica ataraxia que tudo lhe faz parecer natural, o primus inter pares, filho do rei deposto, o vingador, o designado da fortuna para a chefia da aventura portentosa, “aquele que à mera inspeção logo se distingue, e logo merece o descompassado arfar do peito de Medeia”. Mas também o que possui a impavidez de um coração de mármore, quando soa a hora do abandono de Medeia.
Já Medeia, aparece tratada pelo mesmo Píndaro com uma certa subalternidade e indulgência devida a uma jovem enamorada, de caráter crédulo (seduzida e enganada por Jasão), com dotes de feitiçaria, e pronta a trair.
Este esquema de mulher traidora já aparecera repetido noutras histórias, mas, neste caso de Medeia, a conotação vai alargar-se devido ao facto de ela ser vista como mulher bárbara por ser oriunda de uma região muito afastada da civilização grega e oriental e, portanto, a quem se atribui um caráter impulsivo e irracional.
Eurípedes, que com a sua Medeia representada pela primeira vez em 431a.C., ficou nesse ano em terceiro lugar no concurso de teatro, é, contudo, o primeiro a dotá-la de uma profundidade psicológica que a partir daí vai ser seguida pela maioria das recreações posteriores.
Antes de Eurípedes, o mito já continha o capítulo sobre o infanticídio dos filhos de Medeia, só que o ato não aparecia feito por ela, sendo antes levado a cabo como vingança pelo povo de Corinto. Ou então aparecia como resultado de uma ação involuntária de Medeia ao querer transmitir aos filhos o dom da imortalidade.
A atribuição do infanticídio a Medeia, vai permitir a Eurípedes “introduzir um clímax dramático realmente espetacular que produziria no espetador uma tensão máxima do seu pathos: o assassinato intencional dos seus próprios filhos”. A eleição de uma mulher estrangeira, feiticeira, abandonada e infanticida, seria bem o exemplo “das possibilidades e dos limites (ou falta deles quando a paixão é desmedida) do comportamento humano”.
Mais tarde, nas Metamorfoses, no primeiro, mais popular e difundido compêndio de todos os mitos heroicos da Grécia, Ovídio (43 a.C.-17 d.C.), vai assumir toda esta herança milenar, mostrando-nos Medeia como uma mulher estrangeira, bárbara, vingativa e malvada.
Posteriormente, Séneca, ao escrever a sua Medeia (60-61 d.C.), baseando-se sobretudo na versão de Ovídio, vai carregar mais nos adjetivos, apresentando-a como uma mulher malvada, sanguinária, rancorosa, vingativa e determinada, assassina fria, irracional e quase demente.
Esta versão de Séneca é importante por vir a ser a principal fonte de conhecimento utilizada pelos escritores que se lhe seguiram, perpetuando assim para as gerações futuras as “caraterísticas” da Medeia mulher.
Medeia passou a representar o protótipo feminino que leva ao abandono de tudo: do povo – ela a princesa da Cólquida; dos pais e do irmão, Absirto -o inocente que é por Medeia esquartejado e oferecido a Poseidon; do avô e deus, Hélio – Medeia era a sacerdotisa que velava pela conservação do Velo de Ouro, e que sacrificava cruelmente no altar todo o forasteiro; da sagrada hospitalidade de Pélias – morto graças a um expediente de feitiçaria; e do infanticídio dos seus filhos.
Medeia de tudo se despoja, a sua oferta de mulher não sofre restrições pela imolação do amor de um homem. Invocadora, “com voz sinistra do caos da eterna noite, reino oposto ao céu” (Séneca).
Esta tem sido a dramaturgia que até hoje tem prevalecido ao longo das várias épocas. Daí a importância deste “ciclo dos Argonautas” que, através das figuras de Jasão e Medeia, vai permitir desde então constatar a assimetria radical que define a condição masculina e a feminina:
“o desencontro sem remédio entre a compleição que pode ascender à mais olímpica ataraxia, e aquela outra na qual sobrenadam as noturnas potências do sentimento”, e que pode chegar a “uma total inconsciência da infâmia”. “Medeia não sabe moderar nem as iras nem os ímpetos amorosos” (Séneca).
É este comportamento atribuído a Medeia que justifica porque Jasão não tem que se dar à constância e à fidelidade para com ela. Alguma coisa nele escapa inelutavelmente ao domínio dos afetos comuns: a sua melhor parte, aquele “quê” divino herdado dos imortais.
Não é de estranhar que Séneca acabe a peça com Medeia a dizer:
“O meu único repouso consistirá em ver o universo comigo confundido na mesma ruína: que tudo desapareça comigo! É doce, ao morrer, arrastar a outrem.”
Até num pequeno estudo de Maria Helena da Rocha Pereira, “O mito de Medeia na poesia portuguesa”, se pode constatar desta permanência negativa da magia e do filicídio como fazendo parte do caráter da mulher Medeia.
Não é, pois, também de admirar que no pórtico do seu livro O Segundo Sexo, Fatos e Mitos, Simone de Beauvoir tenha inscrito esta sentença atribuída a Pitágoras:
“Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher”.
Não podemos esquecer que, tal como o teorema de Pitágoras não é dele, também a sociedade em que ele vivia e que tantas obras tidas como belas produziu, era eminentemente patriarcal, religiosa, machista e esclavagista.
Não podemos também esquecer que é possível que em todo o humano subsista um fundo impercetível e inescrutável de mentalidade primitiva, o que pode permitir considerar-se a “mentalidade primitiva uma designação bastante justa para a conduta mental da maior parte dos homens de hoje, exceto nas suas atividades técnicas ou conscientemente intelectuais”. (M.- P. Nilsson, The Minoan-Mycenean religion and its survivals in Greek religion).
E, sobretudo, não esquecer o que nos disse Nietzsche, A origem da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo, sobre os olímpicos que nos propõem como modelo:
“Quem quer que, tendo no coração um outro sentido religioso, se aproximar destes olímpicos, em busca de elevação moral, de santidade, de imaterialidade espiritual, e procurar nos seus olhos amor e piedade, em breve decerto se afastará deles, irritado e desiludido”.
Do outro lado da história, a bíblica, também consta a serpente, a maldade de Eva e a bonomia de Adão. Não há muito por onde escolher.
Encantatório
Ao reler alguns escritos relacionados com encantamentos, como que hipnoses, estupores inibitórios, estados de paralisia geral, do fascínio que outro nos causa, do olhar da serpente que assim imobiliza as suas presas, das falas suaves e cadenciadas que nos adormecem, recordei aquela figura mítica presente em quase todas as civilizações, a esfinge, corpo alado de animal, rosto parado de mulher que nos mira (julgamos nós) interrogando.
Conseguir verter todos estes sentimentos, emoções, estados de alma, para prosa escrita é tarefa só para alguns. Como é o caso de Jean Cocteau e a sua peça de teatro, La machine infernale, (1934), na parte em que Édipo encara a Esfinge. Aqui deixo a cena, sem sequer me atrever a traduzi-la:
LE SPHINX
Inutile de fermer les yeux, de détourner la tête. Car ce n'est ni par le chant, ni par le regard que j'opère. Mais, plus adroit qu'un aveugle, plus rapide que le filet desgladiateurs, plus subtil que la foudre, plus raide qu'un cocher, plus lourd qu'unevache, plus sage qu'un élève tirant la langue sur des chiffres, plus gréé, plus voilé, plus ancré, plus bercé qu'un navire, plus incorruptible qu'un juge, plus vorace que les insectes, plus sanguinaire que les oiseaux, plus nocturne que l'œuf, plus ingénieuxque les bourreaux d'Asie, plus fourbe que le cœur, plus désinvolte qu'une main qui triche, plus fatal que les astres, plus attentif que le serpent qui humecte sa proie de salive; je sécrète, je tire de moi, je lâche, je dévide, je déroule, j'enroule de telle sorte qu'il me suffira de vouloir ces nœuds pour les faire et d'y penser pour les tendre ou pour les détendre; si mince qu'il t'échappe, si souple que tu t'imagineras être victime de quelque poison, si dur qu'une maladresse de ma part t'amputerait, si tendu qu'un archet obtiendrait entre nous une plainte céleste; bouclé comme la mer, la colonne, la rose, musclé comme la pieuvre, machiné comme les décors du rêve, invisible surtout, invisible et majestueux comme la circulation du sang des statues, un fil qui te ligote avec la volubilité des arabesques folles du miel qui tombe sur du miel.
ŒDIPE
Lâchez-moi!
LE SPHINX
Et je parle, je travaille, je dévide, je déroule, je calcule, je médite, je tresse, jevanne, je tricote, je natte, je croise, je passe, je repasse, je noue et dénoue etrenoue, retenant les moindres nœuds qu'il me faudra te dénouer ensuite sous peinede mort ; et je serre, je desserre, je me trompe, je reviens sur mes pas, j'hésite, jecorrige, enchevêtre, désenchevêtre, délace, entrelace, repars ; et j'ajuste, j'agglutine, je garrotte, je sangle, j'entrave, j'accumule, jusqu'à ce que tu te sentes, de la pointe des pieds à la racine des cheveux, vêtu de toutes les boucles d'un seul reptile dont la moindre respiration coupe la tienne et te rende pareil au bras inerte sur lequel un dormeur s'est endormi.
Podem ler toda a peça em:
(http://docplayer.fr/23892301-La-machine-infernale-jean-cocteau.html)