(265) A insustentabilidade da moda
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Para se fabricar uma simples T-shirt gastam-se 594 galões de água, a mesma quantidade que uma pessoa bebe em dois anos e meio.
Uma fábrica que produz vestuário para exportação, e que necessita de energia para passar a ferro e tingir as roupas, utiliza o equivalente a 2,3 milhões de pés cúbicos de madeira, todos os meses.
A indústria da moda emite mais dióxido de carbono do que todos os voos internacionais e todos os transportes marítimos.
A sustentabilidade, que deveria ser entendida como sustentabilidade para os ecossistemas, para os recursos e para o trabalho humano, é engolida pela gigantesca máquina que exige a superprodução, plenamente convicta que a insegurança do público o leva, e levará sempre, a sobre comprar.
Talvez não seja para nós muito claro, mas o facto é que a moda, a indústria da moda, acabou por influenciar e marcar toda a indústria que se lhe seguiu (1). Ela foi, e continua a ser, a sua precursora, daí a sua importância para os tempos que vivemos e para os que se avizinham.
Tudo começou quando Charles Frederick Worth (1825-95), fez algo que se revelou extremamente importante para toda a indústria futura, para qualquer indústria, ao impor uma organização em pirâmide, em que o vértice era o studio a quem cabia elaborar os modelos, que eram depois enviados para os diferentes ateliers com as suas diversas especializações, cada um com as suas várias hierarquias.
Vai assim separar as funções de direção e execução, de conceção e fabricação, dando origem a uma lógica que irá presidir à organização futura de fábricas, hospitais, escolas e força militares. Ou seja, vai colocar o processo da moda na origem da substituição da ordem artesanal pela moderna ordem burocrática.
Na altura, a diferença para com as outras indústrias é que para a moda, essa substituição é feita em nome do gosto e da novidade:
“Em vez da produção de objetos úteis, a Alta-costura propõe a glorificação do luxo e o refinamento frívolo. Em vez de um traje uniforme, propõe a pluralidade de modelos. Em vez de uma programação e de um código regulamentar, propõe a iniciativa pessoal. Em vez da coerção regular, impessoal e constante, propõe a sedução das metamorfoses da aparência.”
Adiantando-se a todas as outras indústrias, a moda propõe antes um processo de sedução como lógica do poder. Esta sedução, com a teatralização e sobre-exposição do produto, com a multiplicação de protótipos e a possibilidade de escolha individual (a tal “liberdade de escolha”), irá estimular e desculpabilizar a compra e o consumo.
A moda aparece como um dos principais condutores do “progresso”, se o considerarmos como o tipo de mudança que desvaloriza tudo o que deixa para trás e o substitui por algo novo. A moda como precursora da organização do efémero e do superficial.
É apenas tendo em conta esta definição de “progresso”, que a sociedade atual se baseia para nos convencer que nos traz “felicidade”. “Felicidade” como condição segura e permanente, obtida assim pela obsolescência de tudo, levando a uma cada vez mais rápida substituição dos bens (computadores, tablettes, telemóveis, roupas, etc.) e mudança de identidade da pessoa (nem que seja pela alteração do traje ou aparência), e que só se poderá verificar numa sociedade desregulamentada, privatizada e individualizada.
É dessa forma, que as pessoas desejam escapar à necessidade de pensar sobre a sua “condição infeliz”. Procuram apenas ocupações urgentes e que as absorvam, para assim poderem parar de pensarem sobre elas, colocando como finalidades objetos atrativos que as possam seduzir. A vida passa a girar à volta da perseguição constantemente elusiva da moda, não dando qualquer sentido à vida. Aliás, a finalidade é mesmo banir dos nossos pensamentos a questão do significado da vida.
Mas eis que nos tempos que correm, a indústria da moda começa a preocupar-se com a sua “sustentabilidade”. E, se bem que para alguns esta preocupação tenha que ver com a indústria no seu todo, para quase todos os outros a preocupação que têm é tão só a da sua sobrevivência e imposição no mercado.
É o caso da Burberry, que apesar de ter como mote “Tornar Circular a Moda” (Making Fashion Circular), com o fim de reduzir os desperdícios e manterem os ativos em circulação, incineraram 38 milhões de dólares de peças não vendidas para que elas ”não caíssem em mãos erradas”. (2)
O mesmo fez a H&M em 2017, quando queimou na Suécia 19 toneladas de roupa obsoleta (equivalente a 50.000 pares de jeans) e 100.000 peças de roupa na Alemanha.
Os donos da Cartier, compraram aos seus revendedores cerca de 575 milhões de dólares de relógios para evitar que eles fossem vendidos a preços mais baratos ou vissem a figurar em vendedores não autorizados. A maior parte era depois destruída, sendo algumas partes recicladas.
A Nike, rasga roupas e ténis não vendidos, para que não possam ser reutilizados.
Estas e outras técnicas similares são seguidas por muitas das principais empresas, numa vertigem de destruição sem paralelo. E continuam sempre a produzir mais: cada ano, mais de 100 biliões de produtos à base de fibras virgens, são lançados no mercado.
A energia necessária para alimentar esta indústria é inacreditável. Por exemplo: uma fábrica em Phnom Penh que produz vestuário para exportação, e que necessita de energia para passar a ferro e tingir as roupas, utiliza o equivalente a 2,3 milhões de pés cúbicos de madeira, todos os meses. Não há floresta que resista.
Segundo a Ellen MacArthur Foundation (3), a indústria da moda emite mais dióxido de carbono que todos os voos internacionais e transportes marítimos.
Para se fabricar uma simples T-shirt gastam-se 594 galões de água, a mesma quantidade que uma pessoa bebe em dois anos e meio. No seu total, a indústria gasta 1,3 triliões de galões de água por ano só para tingir os tecidos (https://www.wri.org/blog/2017/07/apparel-industrys-environmental-impact-6-graphics), sem contar com os químicos e tintas que vão destruir ecossistemas, matar a vida aquática e contaminar os níveis freáticos. E esta poluição continua depois das peças serem fabricadas e compradas: cerca de 15 milhões de microfibras são libertadas no processo de lavagem das roupas, contribuindo para a poluição das águas. (4)
As empresas que verdadeiramente se preocupam com a sustentabilidade da indústria, têm tentado, sem grandes resultados, várias aproximações, desde esquemas de devolução, reciclagem (muito cara e não resolvida), novos materiais mais duráveis mas que consomem grande energia para produzir, como o algodão orgânico (sem pesticidas ou fertilizantes), poliéster reciclado, lyocell, circulose (feito de vestuário reciclado), econyl (espécie de nylon feito com produtos do lixo), etc.
Mas, ao mesmo tempo, as grandes empresas continuam a aumentar a sua expansão. O grupo H&M, que só nos EUA têm 593 lojas, abriram em 2019 mais 281 lojas fora dos EUA, tendo nesse ano fabricado 600 milhões de peças. Em 2018, o valor dos seus produtos atingiu 4,3 biliões de dólares.
A Zara, invade o mercado com 500 novos modelos por semana, mais de 20.000 por ano.
A realidade, é que se continua a impulsionar o sistema de baixo-custo, de grandes quantidades, que torna inevitável a posterior incineração e destruição. Está estimado que compramos anualmente hoje mais 60% de vestuário do que em 2000, e que usamos cada vez menos cada peça antes de a deitarmos fora.
Pelo que a sustentabilidade que deveria ser entendida como sustentabilidade para os ecossistemas, para os recursos e para o trabalho humano, é engolida pela gigantesca máquina que exige a superprodução, plenamente convicta que a insegurança do público o leva e levará a sobre comprar.
Mas tenhamos esperança: a Zara prometeu que em 2025 toda a sua roupa será feita com material 100% sustentável (5). Vem-me à memória uma velha canção da Dalida, “Parole, parole, parole”.
- Blog de 15 outubro de 2015, “Vida da moda, moda da vida”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/vida-da-moda-moda-da-vida-7376).
- (https://www.bbc.com/news/business-44885983).
- (https://www.ellenmacarthurfoundation.org/assets/downloads/publications/A-New-Textiles-Economy_Full-Report_Updated_1-12-17.pdf).
- (https://www.wri.org/blog/2017/07/apparel-industrys-environmental-impact-6-graphics).
- (https://www.theguardian.com/fashion/2019/jul/17/zara-collections-to-be-made-from-100-sustainable-fabrics).