(264) O absurdo que está sempre connosco
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A peste está aqui, é a companheira constante das nossas vidas transitórias. Pode até acontecer que nos venha a matar a todos. A peste está em todo o lado e está sempre connosco.
A peste não é nem racional nem justa. A peste representa o absurdo.
E tudo o que podemos fazer é cuidar uns dos outros. Lutar desafiadoramente contra o absurdo, segundo Camus.
É humano ter compaixão dos aflitos, citado por Boccaccio.
É preciso imaginar Sísifo feliz, Camus.
Panorâmica da peste (1350)
Há um autor e obra que, através de uma panorâmica multifacetada, nos descreve quase que cinematograficamente a Peste Negra (1347-1351) da Idade Média, na qual cerca de metade da população europeia morreu. Trata-se de Giovanni Boccaccio (1313-1375) e os seus cem contos sobre mercadores e serventuários contidos no Decameron (1350).
A intenção de Boccaccio era a de despertar os seus leitores para a responsabilidade que todos deveriam de ter para com os outros, dando a conhecer como é que os ricos se relacionavam com os pobres em tempos de desespero, e como os pobres sofriam nesses tempos. Acima de tudo, era uma tentativa para indagar sobre o valor que se dava à vida.
Para isso, recorre a um artifício literário: enquanto a cidade de Florença explodia em degradação física e moral causada pela peste, vai “ouvir” dez jovens (sete mulheres e três homens) que se recolheram numa igreja florentina (Santa Maria Novella) a fim de evitarem a peste, e que resolveram, para passarem o tempo, contar cada um dez histórias, durante os dez dias da quarentena. Toda a vida humana, com seus desencontros, sentimentos, morte e superação, aparece ali narrada como num grande afresco. Da degradação à elevação, tudo ali se vai encontrar.
No seu prefácio, começa por mostrar como os ricos viviam em suas casas, com bons vinhos e boa comida, música e outros entretenimentos, e como, ao menor sinal de peste, abandonavam essas suas casas nas cidades e se refugiavam nas suas luxuosas mansões das suas propriedades rurais, “como se a peste apenas atacasse quem ficasse dentro dos muros da cidade”.
Passa depois a descrever como a classe média e os pobres viveram esses tempos:
“Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda parte.
Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas respetivas casas e punham-nos diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante.
E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes.
Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora [...], abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.”
“[...] foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem por certo que do mês de março a julho [...] mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não se imaginasse que lá haveria tanta gente assim? Oh, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal! Oh, quantas memoráveis linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos sucessores! Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos, que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos, pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no outro mundo com seus antepassados!”
Curiosamente, muito embora logo no início do prefácio Boccaccio comece por citar o provérbio, “É humano ter compaixão dos aflitos”, na grande maioria dos contos que se lhe seguem, as personagens que nos descreve vão se mostrar quase todas indiferentes ao sofrimento dos outros, pondo à frente as suas inclinações e ambições. Leiam os contos. (1)
A comunicação social das mortes (1665)
Durante os surtos epidémicos ocorridos no século XVII, apareceu em Londres uma singela publicação semanal, “Lord Have Mercy Upon Us”, que, além de incluir um histórico sobre as epidemias anteriores, medicamentos, orações, continha ainda os números relativos à mortalidade por paróquias, o que permitia acompanhar mais precisamente a progressão da epidemia, inspirando um pouco de confiança a uma população urbana totalmente amedrontada sobre as partes da cidade que deveriam evitar. (2)
Alguns dos remédios caseiros então usados, ainda hoje se recomendam:
“Num copo de leite colocar dois pequenos dentes de alho, e beber de manhã em jejum (ou ao pequeno almoço), é o bastante para o afastar da infeção”.
No The Truthers Journal de 17 de fevereiro de 2020, no artigo sobre os “Dez melhores tratamentos naturais para o coronavírus”, pode-se ler:
“[…] Alho:
Esta cura natural tem propriedades antibacterianas e antivirais que podem ajudar a combater o coronavírus. Deve-se tomar dois alhos frescos logo pela manhã, ou tomar suplementos de alho.” (https://thetruthersjournal.home.blog/2020/02/17/1575/).
Filosofia da peste (1947)
A ação desenrola-se na cidade de Oran, na Argélia, onde começam a aparecer mortos milhares de ratos. Assustada, a população exige ação por parte das autoridades, uma matança dos ratos. O que é feito, descansando a população, que regressa à vida normal. Contudo, o Dr. Bernard Rieux, médico ateísta, avisa as autoridades de que se está perante uma peste. As autoridades duvidam, são lentas a responder, só mais tarde acabando por declarar uma pandemia. Com os hospitais sobrelotados, muitos começam a morrer.
Decretada a quarentena, as reações das pessoas variam: desde o suicídio ou a fuga encapotada da cidade, ao padre que afirma tratar-se de uma punição divina, ao criminoso que acaba rico com o contrabando, até ao Dr. Rioux que se mantém a tratar os doentes o melhor possível.
Com a situação a agravar-se, as autoridades declaram o estado de emergência, para controlarem a violência e os roubos. Os funerais passam a serem conduzidos sem qualquer cerimónia ou preocupação para com as famílias. Os que fogem são apanhados e fuzilados. Aos poucos, as pessoas, gastas emocional e fisicamente, entram num estado de apatia.
A peste mantém-se durante meses. Um medicamento contra a peste acaba por aparecer, mas não é sequer suficiente para salvar uma criança. O padre diz que o sofrimento da criança é um teste à fé, mas, muito em breve também ele morre.
Gradualmente, as mortes oriundas da peste começam a diminuir, e as pessoas apressam-se a celebrar. Muitas pessoas morreram, algumas sem terem qualquer relação com a peste, como foi o caso da mulher do dr. Rieux. Apesar de tudo isto, o narrador conclui que há mais para admirar nos humanos do que para depreciá-los.
Este é um breve resumo de A Peste, obra que Albert Camus (1913 – 1960) publicou em 1947, e na qual, de certa forma, Camus se vai servir da peste numa demonstração literária em como o mundo não tem nem sentido nem razão, que a vida é absurda e vã, e tentando ainda responder ao problema filosófico sério de julgar se a vida merece ou não ser vivida.
A peste, ao não poupar nem distinguir ninguém, quem vive e quem morre, está para além da justiça. Não é possível de a explicar através de mitos religiosos ou deuses desvairados. Nem através de qualquer significado racional ou moral. Os deuses limitam-se a observá-la de braços cruzados, sem nada fazerem, por não poderem ou por não quererem. A peste não é nem racional nem justa. A peste representa o absurdo.
Ao estar por todo o lado, ao atingir todos independentemente do estatuto ou das proteções que julgavam ter, a vulnerabilidade é total e acontece a qualquer momento: não é só ao fim do túnel, mas aqui, agora.
A peste está aqui, é a companheira constante das nossas vidas transitórias. Pode até acontecer que nos venha a matar a todos. A peste está em todo o lado e está sempre connosco.
O que devemos então fazer? Aquilo que o dr. Rieux faz: aceitar o absurdo do sofrimento, da morte, e do sem significado da vida, tentando ajudar os nossos companheiros de viajem o melhor possível, com cuidado e preocupação. É tudo o que podemos fazer: cuidar uns dos outros. Lutar desafiadoramente contra o absurdo.
Que é a posição filosófica defendida por Camus, porquanto ele defendia que nos devemos revoltar contra o absurdo, não cometendo suicídio ou procurando refúgio em fés religiosas, mas assumindo a responsabilidade pelas nossas vidas, disfrutando da bondade e beleza que nos rodeiam, e criando a nossa própria razão de ser num mundo sem qualquer razão de ser. Lutar desafiadoramente contra ele. (3)
Em O Mito de Sísifo ensaio sobre o absurdo, publicado em 1943, já Camus escrevia:
“O seu (de Sísifo, herói do absurdo) desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra.”
E termina:
“Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil […] A própria luta para atingir os píncaros basta para poder encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.”
O futuro presente que vivemos (2020)
Sem se saber porquê (ou melhor, sem se querer saber porquê, sendo sempre mais fácil atribuir a culpa aos chineses, aos russos, aos islamitas, aos cubanos, aos morcegos, aos pangolins, ele há tantos que uma vida inteira não dá para nada concluir mesmo porque se for para concluir perde-se a conclusão antes de chegar à conclusão) vamos quase todos sermos voluntariamente obrigados a viver e a sermos enterrados de máscara, mas sempre muito felizes por cumprirmos as diretivas que nos fazem pertencer a nações valentes e imortais, elas, nós não.
Os poucos outros que sobram, aristocraticamente prescindirão da máscara (para além da que são), mas serão também enterrados. Aqui na Terra.
Vem-me à lembrança uma visão daquele samba brasileiro, em que bamboleando e saltando, vamos alegremente cantando “Tristeza não tem fim, Felicidade sim”.
Tem razão Camus:
“É preciso imaginar Sísifo feliz”.
Só acrescentar, ao fim destes milhares de anos de progresso, a recomendação altamente tecnológica que nos dão: “Não esqueça de lavar as mãos com água e sabão”.
Notas:
- Para o Decameron, consultar Decameron Web, https://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/dweb/texts/e The Decameron of Giovanni Boccaccio, https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxjaWFzY3VuZGVsbGFicmlnYXRhfGd4OmVmZGZiNTYyZTBhMzczZg.
- “Londons Lord Have Mercy Upon Us”, https://deriv.nls.uk/dcn23/1880/2792/188027929.23.pdf e https://books.google.pt/books?id=13krDwAAQBAJ&pg=PA28&lpg=PA28&dq=Lord+Have+Mercy+broadsides,&source=bl&ots=4R6vlMenx4&sig=ACfU3U3q8zNolFJMiqzbSG_YMmuIMNrXkg&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwjMtbCHofLoAhUIkhQKHXXsAVIQ6AEwE3oECAsQKQ#v=onepage&q=Lord%20Have%20Mercy%20broadsides%2C&f=false.
3) Aconselho este excelente pequeno vídeo de 10 minutos da The School of Life, “Camus, The Plague”, https://www.youtube.com/watch?v=vSYPwX4NPg4&list=PLwxNMb28Xmpfv2COuuJaKzy6E2n8nSMdi&index=16&t=0s