(260) Pandemias na globalização
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Já não necessitamos de ratos ou moscas para espalhar a doença, podemos agora fazê-lo nós próprios através das nossas deslocações e das cadeias de fornecimento de bens, David Goodhart.
Estamos a mudar a terra mais rapidamente do que a conseguimos entender […] imersos num dos maiores registos de extinção da história geológica.
Usufruir de água canalisada, ter ensino público e ter uma pequena televisão, no mundo de hoje, não significa que não se viva numa extrema pobreza.
É a desigualdade durante toda a vida que importa.
Podem existir eleições livres, porém, do modo como são apresentadas aos eleitores, não existe uma verdadeira escolha nas questões que realmente lhes interessam: as questões de economia.
Estou certo que quando Henry Ford decidiu criar o seu modelo de automóvel popular, não pensou na enorme expansão que os carros iriam ter ao longo do século, acabando por virem a adulterar o clima do planeta.
Estou certo que quando os eminentes cientistas que permitiram e participaram na criação da bomba atómica, tivessem pensado na sua utilização imediata e no enorme desenvolvimento das armas atómicas que se lhe seguiu e que colocaram o mundo à beira da extinção, não o teriam feito. Fizeram-no apenas por cederem ao medo que lhes foi induzido pela possibilidade de os nazis de Hitler se anteciparem.
Estou certo que tanto Carnot como Watt quando inventaram a máquina a vapor, não pensaram que estavam a entreabrir as portas da industrialização tal como ela se veio a verificar, nem na contribuição que ela teve durante os dois séculos que se lhe seguiram para o irreversível aquecimento global.
Já o mesmo não se passa com aqueles que nos convenceram daquilo que se entendia ser a “globalização”, processo ‘vendido’ acenando a noção romântica da aldeia global, onde todos estaríamos mais ligados uns aos outros do que no passado, onde teríamos muitos mais amigos, teríamos muito mais possibilidades de saber o que está a acontecer no mundo e de participar, muito mais possibilidades de termos muito mais coisas, e onde especialmente viveríamos todos muito mais desafogadamente.
Escondido e sem rabo de fora, encontrava-se o neoliberalismo que incentivava a destruição das forças que estavam a bloquear o desenvolvimento económico, e consequentemente, o progresso: os governos dos países (que pouco ou nada percebendo de economia, deveriam ser retirados da sua gestão ou de interferir nela) e o poço sem fundo da assistência social.
Finalmente ao fim de quarenta anos, assistimos ao eclipse das instituições governamentais em favor de corporações multinacionais, que atuam unicamente para maximizar os seus lucros em benefícios dos seus acionistas.
Mas será mesmo assim?
Aparentemente, para responder a esta questão, bastaria uma simples compilação e comparação sobre o estado do mundo, antes e depois.
O problema está nos cálculos, projeções, previsões. Está ainda na definição de conceitos, na consideração das bases de partida, na recolha de dados, nos algoritmos utilizados, sei lá que mais, tudo com a finalidade de dar crédito e justificar cientificamente coisas como o número de cidadãos da Grécia Antiga, suas rendas, seus índices de saúde, índices de desigualdade, etc. (faz-me sempre recordar aquela história do avião a cair com os motores parados, onde apenas existiam vinte paraquedas para vinte e uma pessoas, entre as quais seguia uma mais escura, muito mais, e se decidiu fazer perguntas para ver quem ficava excluído: quantos motores tem o avião? Em que cidades vamos cair? quantos habitantes tem? e quando chegou ao muito mais escuro a pergunta foi: nomes e números de telefone das pessoas que lá vivem?), para daí se concluir, por exemplo, que afinal está tudo a melhorar (1).
Basta consultar o seu arauto-mor, Steven Pinker (Enlightenment Now, The Case For Reason, Science, Humanism, and Progress), que Bill Gates diz ser “o meu livro favorito de sempre”, para que essa ideia de progresso irreversível, cumulativo e sem alternativa, conforte o nosso espírito de subclasse.
Globalização, industrialização, automóveis, computadores, roubo de dados pessoais só criminalizados se forem feitos por pessoas singulares sem empresas formadas, tudo no sentido positivo e inevitável do progresso. O copo meio cheio. Será que vai parar quando estiver cheio? Claro que há sempre a possibilidade de substituir o copo por um maior.
Vejamos o outro lado. A primeira grande compilação sobre o estado do mundo do ponto de vista ambiental, apareceu em 1970, com a publicação dos cálculos e projeções do Clube de Roma, no Limits to Growth.
Dez anos depois, em 1980, Willy Brandt, alemão europeísta, presidente de uma comissão cujo Relatório se intitulava Norte-Sul, um programa para a sobrevivência, fazia notar que “já são 800 milhões os pobres absolutos e o seu número está a aumentar; a escassez de cereais e outros bens alimentares agrava a perspetiva da fome e penúria; uma população em crescimento acelerado, com mais dois mil milhões nas duas próximas décadas, causará tensões muito maiores sobre a alimentação e os recursos do mundo”.
Em 2005, a pedido do Secretário-Geral das Nações Unidas, é apresentado o Millennium Ecosystem Assessment, que nos vem dar um resultado mais completo e atualizado, sobre a intervenção feita pelos homens relativamente à sustentabilidade do ecossistema, tendo em consideração a regulamentação da água, da erosão, o tratamento das águas e esgotos, a doença, as pestes, a polinização, o clima, os valores espirituais e religiosos, estéticos, recreação e ecoturismo.
Entre todos estes indicadores, só se verificou uma melhoria na regulamentação do clima.
No respeitante à pobreza, das 37 milhões de pessoas que estavam malnutridas em 1997-99, passou-se para 85 milhões de pessoas em 2000-02; a desigualdade também aumentou, 21 países baixaram de posição segundo o Índice de Desenvolvimento Humano.
Note-se que estes níveis de empobrecimento global seriam muito maiores, aparecendo atenuados devido ao rápido crescimento económico da China e da India, o que significa que a pobreza se mantém profunda e persistente noutras regiões, especialmente na Africa subsaariana.
Para além do aumento substancial no consumo de matérias-primas e recursos vivos, o ritmo e a escala das alterações introduzidas na biosfera não têm comparação com qualquer outra época da história, tendo quase todas impacto negativo. A extinção de espécies atinge valores que vão de 100 a 10.000. “Estamos imersos num dos maiores registos de extinção da história geológica”.
As transformações que a Terra tem sofrido, introduzidas pelo homem, têm-se vindo a acelerar, particularmente nos países com processos de industrialização rápida, de tal forma que se diz que “estamos a mudar a terra mais rapidamente do que a conseguimos entender”.
Esta capacidade para destruir os sistemas essenciais para a vida é algo de novo. A humanidade está rapidamente a queimar os seus recursos naturais bem como a sua capacidade para suportar a vida, sem pensar não só no futuro, mas também nos direitos e necessidades atuais.
Este é o verdadeiro estado do Mundo.
Mas será mesmo? Não é isso que nos dizem nas notícias os órgãos de comunicação social. Não é isso que nos dizem aqueles líderes de opinião especializados e contratados para nos informarem.
Afinal há sempre uns que acabam na miséria e outros que prosperam, não é? Não, não é! É a desigualdade durante toda a vida que importa, e essa é enorme e tem crescido imenso durante os últimos anos.
Afinal, a pobreza não é bem pobreza verdadeira, eles vivem muito melhor do que se estivessem noutro sítio, eles têm televisões, água canalisada, escolas públicas, não é? Não, não é! Usufruir de água canalisada, ter ensino público e ter uma pequena televisão, no mundo de hoje, não significa que não se viva numa extrema pobreza.
Vejamos com atenção o que nos diz o prémio Nobel da Economia, Joseph Stiglitz, no seu livro O Preço da Desigualdade:
“Embora os problemas na zona euro se tenham revelado primeiro na Grécia, outros países como a Irlanda, Portugal, Espanha, Chipre e Itália, não demoraram muito a juntarem-se à lista de países em dificuldades. A extensão da lista devia tornar claro que não se tratava de uma questão de um país estar ‘no mau caminho’. Havia algo sistematicamente errado. Mas o diagnóstico dos líderes europeus era fundamentalmente defeituoso, as receitas seguidas estavam mel pensadas, e ainda vieram agravar mais a situação.”
“O diagnóstico dos líderes europeus focava-se no desregramento fiscal – ignorando o facto de que dois dos países em crise, Espanha e Irlanda, andavam a apresentar excedentes antes da crise. A recessão provocou os défices, e não o contrário.
Mas a receita seguida após o diagnóstico de desregramento fiscal foi a austeridade – que importa que praticamente não houvesse exemplos de países que tivessem recuperado de uma crise através da austeridade?
A não ser que o crescimento das exportações compense as despesas governamentais, a austeridade conduzirá a mais desemprego […], mas […] no meio de uma desaceleração económica global, o aumento das exportações seria, de qualquer modo, difícil.
O resultado foi o esperado: os países que seguiram a austeridade […] entraram em recessões mais profundas e, à medida que estas se aprofundavam, as melhorias esperadas na posição fiscal foram dececionantes.”
“Os bancos sempre receberam implicitamente subsídios dos governos – o que se tornou evidente na crise de 2008, quando governo atrás de governo se envolveu em enormes resgates. A confiança no sistema bancário de um país depende da confiança na capacidade e na vontade dos governos em resgatar os bancos nacionais.
Mas, quando um país é enfraquecido por uma recessão económica, a sua capacidade para resgatar os bancos é enfraquecida […] A confiança no sistema bancário de um país diminui inevitavelmente; mas o sistema europeu tornou mais fácil a saída de dinheiro de um país – exacerbando a recessão, corroendo ainda mais a confiança no sistema bancário e acelerando o declínio da economia […]
Para muitos, gerir bem o risco significava transferir o dinheiro dos bancos […] para instituições alemãs, havia a confiança de ver o dinheiro de volta […] mas enquanto o dinheiro saía do sistema bancário, os bancos ficavam mais fracos, emprestavam menos, o aperto de crédito aumentava, e os efeitos combinados da austeridade e do aperto de crédito amplificaram a recessão.”
“Com as movimentações dentro da Europa tão fáceis, e sem harmonização fiscal, é relativamente fácil para os ricos mudarem-se para jurisdições com impostos baixos. Assim, a livre mobilidade de mão-de-obra, sem harmonização fiscal, é um convite ao nivelamento por baixo – para as jurisdições competirem em atrair os ricos e as grandes empresas mais lucrativas, oferecendo-lhes impostos mais baixos. Deste modo, a concorrência fiscal enfraquece a capacidade de ‘corrigir’ uma distribuição de mercado cada vez mais desigual.”
Sobre a globalização, Stiglitz afirma que “o modo como gerimos a globalização, em benefício das grandes empresas e do capital financeiro, fez aumentar a desigualdade e prejudicou a democracia no nosso país (USA).”
“No século XIX, os países pobres que deviam dinheiro aos bancos das nações ricas eram confrontados com um golpe militar, ou um bombardeamento: México, Egipto e Venezuela foram vítimas.
No século XX, em 1930, a Terra Nova prescindiu da sua democracia na medida em que se encontrava em bancarrota e ficou a ser administrada pelos credores.
A seguir à Segunda Guerra Mundial, o FMI passou a ser o instrumento de eleição da era pós-guerra: os países entregavam a sua soberania a uma agência que representava os credores internacionais.
Uma coisa são estes acontecimentos terem lugar em países pobres em vias de desenvolvimento; outra é ocorrerem em economias industriais avançadas. É isso o que tem acontecido ultimamente na Europa, uma vez que primeiro a Grécia, depois Portugal, Itália, entre outros, permitiram que o FMI, a par do Banco Central Europeu e a Comissão Europeia (todos não eleitos), ditassem os parâmetros políticos, e depois designassem governos tecnocratas para implementarem o programa.
Quando a Grécia propôs submeter-se a um duro programa de austeridade que estava a ser preparado para ser levado a referendo popular, um grito de horror se fez ouvir por parte dos oficiais europeus e dos banqueiros: os cidadãos gregos podiam rejeitar a proposta, e isso poderia significar que os credores não seriam pagos.”
E hoje assiste-se a uma rendição perante os mercados financeiros. “Se o país não faz o que os mercados financeiros desejam, estes ameaçam baixar-lhes os ratings, tirar-lhes o dinheiro de volta, aumentar-lhes as taxas de juro; as ameaças costumam ser eficazes. Os mercados financeiros conseguem o que querem. Podem existir eleições livres, porém, do modo como são apresentadas aos eleitores, não existe uma verdadeira escolha nas questões que realmente lhes interessam, as questões de economia.”
É por tudo isto que hoje já é suficientemente claro que “não podemos manter a democracia e a autodeterminação nacional em simultâneo com uma globalização total e sem restrições”. Quem o afirma é Dani Rodrik, professor da Universidade de Harvard, na sua obra The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy.
Em resumo, pode-se constatar que passados 40 anos, relativamente às condições de vida, o estado do planeta é o seguinte:
1º Incapacidade dos estados nacionais em proteger os seus cidadãos; enfraquecimento do estado contemplando menos direitos sociais básicos; desemprego e ou precariedade do emprego; pobreza.
2º Deixa de haver condições para se exercer a cidadania, o que conduz à redução da cidadania a um direito formal.
3º Crise da democracia com consequente falta de transparência, o que leva a uma descrença generalizada nas suas potencialidades, a um estado de apatia e ao desinteresse pela política.
Foi isto que o coronavírus veio revelar à exaustão. Nada que os mentores desta globalização vendida não soubessem. Nada que não desejassem. Nada que uma vacina cara não cure. Nós pagamos, evidentemente.
Dizem-me que as quarentenas vão comportar a relocalização obrigatória de quem tiver dinheiro em paraísos fiscais: vão ser obrigados a irem viver para lá. Acreditam?
- Ver blog de 20 janeiro 2016, “Tudo azul, tudo muito azul” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/tudo-azul-tudo-muito-azul-11402),
blog de 03 março 2016, “Era uma vez na América” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/era-uma-vez-na-america-12817), blog de 28 setembro 2016, “Salamaleques” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/2016/09/), blog de 21 dezembro 2016, “O faroeste instalado” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/o-faroeste-instalado-24688), blog de 17 de maio 2017, “Madoff ganância sistémica” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/111-madoff-a-ganancia-sistemica-30207), blog de 10 maio 2017, “A ordem natural´ do negócio”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/110-a-ordem-natural-do-negocio-29749), blog de 18 janeiro 2017, “Os revolucionários das massas”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/os-revolucionarios-das-massas-25802).