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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(258) Cassetete: a mulher de um meu conhecido, Descartes, Espinosa e Leibniz.

 

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Substância é aquilo de que uma coisa é feita, sabedoria popular.

 

Embora não tivesse uma alma imortal, o corpo de um papagaio morto também não seria igual ao de um papagaio vivo: porque não seria já um papagaio.

 

Substância é aquilo que pode ser pensado como necessitando apenas de si mesmo para existir, para Descartes.

 

Segundo a teoria da unidade da substância de Espinosa, todas as coisas são Deus, ou então Deus é idêntico a cada uma das coisas.

 

Substância é aquilo que age, que possui força ativa, segundo Leibniz.

 

 

 

 

 

Durante uma daquelas conversas de café pós-almoço, a mulher de um meu conhecido, advogava convictamente que antigamente havia menos doenças do que agora, e que os culpados pelo aparecimento das novas doenças eram os médicos. Diagnosticavam imensas doenças cujos tratamentos eram os mesmos.

De igual forma também a filosofia e especialmente os filósofos são tidos como uns chatos que inventam problemas onde eles não existem, sem qualquer interesse prático.

É o caso, por exemplo, do conceito e definição de “substância”, que todos estamos fartos de saber que é “aquilo de que uma coisa é feita”.

 

Etimologicamente, “substância” é o que está por baixo, o que está dentro, o que suporta (do latim substantia, de substare). Ou seja, o que se mantém permanente na coisa e que a define, a sua essência. Exemplo: o caso da água quando se transforma em gelo. A teoria da substância diz que nesta transformação a água não é substituída pelo gelo, pois a matéria é a mesma. A humidade da água, a dureza do gelo, não lhe mudam a essência: são apenas “formas” com que ela se pode apresentar, são acidentes.

Cedo se começou a manifestar esta sensação da necessidade do conhecimento da noção da existência de uma substância individual ou que se mantivesse estável, como única forma para se conseguir fazer que o mundo em que vivíamos tivesse sentido. De onde tudo viera. Do começo de tudo.

 

Para Tales, tudo era primordialmente constituído por água. Para Anaxímenes, tudo era uma forma de ar. Para Anaximandro, a essência das coisas era indeterminada, por forma a que ela pudesse transmutar-se em água, ar, terra ou fogo. Para Demócrito, a substância única eram os átomos, que não eram em si nem cães nem gatos nem mesas nem cadeiras, mas que não mudavam de propriedades intrínsecas.

Platão ficava à parte, porquanto não tentava explicar o todo com base em conceitos materialistas sobre como as coisas eram feitas. Para ele, havia princípios que tudo governavam, as “Formas”, e que os objetos materiais tentavam copiar.

As Formas não eram substâncias, mas apenas princípios norteadores que davam estrutura e significado a tudo o demais. Se assim não fosse, tudo o demais seria um caos ininteligível. Eram eternas, não eram predicáveis (dizíveis), nem se alteravam. O facto de não se conseguirem alcançar as exigências das Formas não era culpa de Platão nem das Formas, mas dos critérios e das formas terrenas, por serem tão básicas.

Aristóteles, que tudo vai compilar e expandir, ao ponto de ainda hoje ser referência obrigatória nas Categorias e Metafísicas, Livro Z e H, com as suas definições e divisões ao considerar substâncias primárias e secundárias, conceitos de substância e outras propriedades, análises da forma (o que é o objeto) e matéria (de que é feito o objeto) de diversas substâncias e suas inter-relações (um animal apenas pode ser feito de tecido vivo, e não de pedra ou fogo, pelo que a matéria depende também da forma em que se apresentar), e muito mais.

Ao eliminar a possibilidade de a matéria poder ser substância, resta agora ter de a acomodar a ser ou só forma, ou a ser um compósito (o indivíduo) de forma e matéria, Aristóteles vai dar a primazia à forma, e tudo se complica: a matéria é uma componente essencial da substância, mas não em igualdade; apenas como catalisadora, de modo a que a forma venha a ser uma substância individual!

 

E isto porque Aristóteles acreditava que o mundo era eterno e que todas as espécies existiriam eternamente. Ou seja, mesmo que certos objetos particulares estivessem sujeitos a degeneração e envelhecimento, as espécies eram eternas.  Assim, a degeneração e o envelhecimento dependiam do material que compunha os compósitos.

 Pelo que, qualquer forma que não necessitasse de matéria para a sua atividade, seria, por natureza, eterna. Daí que o intelecto, a característica essencial dos humanos, bem como o primeiro motor imaterial e imóvel do cosmos, fossem eternos, muito embora Deus, esse primeiro motor, fosse ontologicamente e causalmente anterior a todas as outras substâncias.

 

Mais tarde, na Idade Média, começou-se a questionar sobre a diferença entre o corpo de uma pessoa morta e o corpo da mesma pessoa viva. Como a alma tinha partido, a forma do corpo com a alma imortal não poderia ser idêntica ao do corpo sem essa alma. E, mesmo não tendo uma alma imortal, o corpo de um papagaio morto também não seria igual ao de um papagaio vivo: porque não seria já um papagaio.

Começa-se também a tentar equacionar o problema da identidade:

 

Eu não sou o mesmo que era ontem, porquanto algo que era parte da minha integridade ontem, já foi usada, e outra parte que não fazia parte da minha integridade, já me foi hoje adicionado pela alimentação”.

 

 

É nas Meditações sobre a filosofia primeira (1641), que Descartes vai considerar o Homem como uma substância pensante (res cogitans), estabelecendo uma nítida distinção entre ela e a substância corporal (res extensa). Mais tarde, em 1644, nos Princípios da Filosofia, vai voltar a escrever sobre os princípios fundamentais da metafísica, substância, atributos e modos.

Começa por definir substância como “aquilo que pode ser pensado como necessitando apenas de si mesmo para existir”.

Por esta definição, só Deus poderia existir. Quaisquer outras criaturas só poderiam existir se sustentadas e conservadas por Deus, o que implica a teoria de “criação continuada” (o ato criador de Deus continua em todos os instantes do tempo e ao longo de todo o tempo, e só por isso, e graças a Ele, é que as substâncias conservam o seu ser).

E especifica que as coisas para existirem necessitam do concurso de Deus, que poderá ser extraordinário (pela Sua intervenção no mundo por ele criado, como por exemplo através de milagres), ou ordinário (pela Sua criação e conservação, encontrando-se neste caso as substâncias, nomeadamente o pensamento e a extensão)

Até aqui temos como substâncias Deus e algumas criaturas (apenas as que necessitam do concurso ordinário de Deus) e que são o cogito e o mundo.

 

Como se distinguem as substâncias umas das outras? Pelo atributo principal (atributo) e pela maneira como se podem diversificar (modo).

É por terem atributos que conseguimos distinguir as substâncias; o nosso conhecimento opera estas distinções, porque elas são realmente distintas entre si pelo atributo principal, a substância dá-se, pois, a conhecer pelos seus atributos (preocupação ontológica e gnosiológica, na medida em que os atributos não só expressam a substância, como tornam também possível o seu conhecimento por nós).

Assim, o atributo principal de Deus é a infinitude, o atributo principal do Cogito é o pensamento e o atributo principal do Mundo é a extensão.

 É por isto que a definição de substância para Descartes é analógica (o termo substância não se aplica de igual forma a Deus e às criaturas, sendo a distinção entre elas real: Deus é uma substância infinita, e as criaturas são substâncias finitas).

 

 As substâncias são distintas, quando podemos pensar numa sem pensar na outra. A distinção é dita real, como a que existe entre coisas que possuam o mesmo atributo principal (Ex.: O meu pensamento distingue-se do pensamento de outra pessoa); a distinção é dita de razão, porque embora não exista na realidade, pode ser feita pelo pensamento (Ex.: Não posso conhecer Deus por ser infinito, mas posso pensar em infinito embora não seja aquele outro); a distinção é dita modal (de modos, as várias maneiras como a substância pode existir) podendo ser entendida de duas formas: ou como uma distinção entre um modo e a substância da qual é um modo (Ex.: O corpo pode ser distinguido da sua figura ou movimento), ou como a distinção entre dois modos de uma mesma substância (Ex.: A figura de um corpo distingue-se do movimento do corpo).

Assim, para Descartes a distinção entre dois corpos ou pensamentos é uma distinção real ou substancial, que tem como corolário o facto de existirem várias substâncias que se limitam reciprocamente.

 

 

Já para Espinosa, a substância é “aquilo que é em si, e é concebido por si”.

Ser concebido por si, significa que se cria si próprio, e que se compreende por si mesmo sem o recurso a outra coisa de que dependa, ou seja, uma substância deve ser absolutamente a única causa para a sua existência.

Daqui se conclui que há apenas uma substância que é a “causa sui”, Deus. Daí que o que é em si e por si (substância), e o que não o é (não é substância, é o modo da substância), não podem gozar do mesmo tipo de substancialidade.

A substância vai exprimir-se nos seus atributos (preocupação ontológica), dependendo os modos quer dos atributos da substância, quer de outros modos. Como a substância é infinita, os seus atributos serão também em número infinito, cada um exprimindo uma essência eterna e imutável da substância.

 

Espinosa menciona só dois atributos, a extensão e o pensamento, por serem os únicos que possuímos em nós. O conceito de “atributo” para Espinosa é muito semelhante ao de “atributo principal” para Descartes, contudo ele nega que os corpos e os espíritos humanos sejam substâncias, e nega também a necessidade de uma substância ser limitada por um só atributo: pelo contrário, quanto mais realidade ou perfeição uma substância tiver, mais atributos terá; Deus, o mais real e perfeito ser, poderá ser assim definido como a substância que tem uma infinidade de atributos, cada um deles sendo infinito.

 Assim, para Espinosa, a sua conceção de substância é unívoca (o termo tem apenas um só significado para uma só coisa) pois a distinção que faz entre o infinito e o finito não é substancial e sim modal: cada corpo é um modo finito do atributo extensão, cada ideia é um modo finito do atributo pensamento.

 O facto de existir apenas uma única substância ou Deus, sendo os atributos a própria substância exprimindo-se, levou a considerar-se que esta teoria da unidade da substância fosse chamada de “o panteísmo de Espinosa”, como se Espinosa quisesse dizer que todas as coisas são Deus, ou que Deus é idêntico a cada uma das coisas.

Do que se trata é considerar que tudo é uma modificação ocasional ou acidente de uma única substância (Deus), sem o qual não teriam base para existir. Ou seja, os corpos e as mentes, são modos finitos de Deus, expressões locais ou temporárias, de uma natureza divina.

 

 

O problema que Leibniz enfrentou, foi o de tentar explicar exatamente como é que coisas finitas podem ao mesmo tempo ser dependentes de Deus e levarem uma existência separada.

A sua solução residiu numa clarificação da natureza da substância, forma básica de existência criada por Deus. Para que as substâncias criadas conseguissem gozar de uma existência separada de Deus, teriam de conter dentro delas próprias uma força permanente que conseguisse sustentá-las ao longo dos vários estados por que passariam.

 Vem, assim, dizer que as substâncias criadas por Deus são seres ativos com a capacidade de suportarem alterações das quais elas próprias são a causa. E isto está de acordo com a doutrina da conservação divina, pois segundo Leibniz, o que Deus mantém em existência é uma força permanente com um certo grau de perfeição.

Para Leibniz, Descartes tinha um conhecimento deficiente da natureza da substância, ao pensar que os corpos eram uma coleção de pequenas partículas materiais, ligadas palas leis do movimento; ora estas relações meramente mecânicas não permitiam constituir uma verdadeira unidade, mas apenas agregados divisíveis, “entes por acidente” e não “entes existentes por si mesmo”.

 Para isso, seria necessário que cada substância possuísse o que ele chamou de “força ativa” e que era a tendência para agir, contendo já uma realidade (intermédio entre a possibilidade e a própria ação).

Ou seja, para Leibniz a matéria não era só extensão (numa crítica a Descartes dizia que a extensão era apenas a repetição da substância, e, por isso mesmo não a podia explicar), era necessário que as substâncias que a compunham tivessem atividade interna (força ativa), para se poderem compreender fenómenos físicos como a inércia.

Os corpos devem ser vistos agindo de modo idêntico às almas, a partir de princípios internos e não apenas de forças externas. Substância é aquilo que age, que possui força ativa.

Sem a força, as coisas não passariam de modificações ocasionais de uma única substância divina, e é essa capacidade para agir que lhes dá individualidade e singularidade, o que significa que não existe só uma única substância universal, mas um conjunto de substâncias.

 Outra das divergências com Descartes, vinha do facto de este considerar a dualidade das substâncias (res extensa e res cogitans), dado que Leibniz considera antes a existência de uma pluralidade de substâncias (as mónadas).

A mónada seria uma substância simples, una, indivisível e inextensa, ocupando todo o universo (não existem lugares vazios) e dotada de perceção.

Há tantas substâncias quantas as mónadas. Todas as substâncias são mónadas, e todos os indivíduos são substâncias.

 As mónadas são substâncias individuais dotadas de perceção. Deus é a mónada mais perfeita, a que tem uma visão clara e distinta do estado do universo em cada instante. Ao contrário de Deus, cada mónada tem uma visão com um grau de clareza e distinção que não é absoluto.

No limite, há mónadas desprovidas de consciência, o que não significa que não tenham também uma perspetiva da totalidade do universo. Tudo o que acontece a uma substância tem de estar na sua própria natureza. Nada acontece a uma substância, se isso contrariar a sua essência.

 

Do século XVIII até agora, várias teorias e explicações tendencialmente unitárias e racionais sobre a substância e o universo, seja ele qual for e como for, têm sido tentadas, apresentadas, desenvolvidas.

O meu conhecido continua com a mesma mulher, Descartes, Espinosa e Leibniz já faleceram, embora tenham deixado descendência, e “substância” continua a ser entendida como sendo aquilo de que uma coisa é feita.

 

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