(257) “Tempo dos assassinos”
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Somente então, à beira do precipício, nos é dado compreender que “tudo o que nos ensinam é falso”, Henry Miller.
A crise moral do século XIX apenas cedeu lugar à bancarrota espiritual do século XX. É o ‘tempo dos assassinos’, e não há possibilidade de engano. A política tornou-se negócio de bandidos, Henry Miller.
A morte de um líder político cuja carreira seja considerada como representando um perigo para a causa da liberdade, pode ser considerada como necessária […] Nenhumas instruções para assassinatos devem ser escritas ou gravadas, in A Study of Assassination, Manual da C.I.A.
“Eles têm aproximadamente um minuto para viver. Trinta segundos. Dez, nove, oito”. Ouviu-se uma explosão. E o oficial disse, “Desapareceram”, a morte de Suleimani, contada por Trump.
Um dos melhores escritos de Henry Miller talvez seja o seu pequeno estudo sobre Rimbaud, “consequência do fracasso de traduzir, da maneira desejada, Uma Estação no Inferno”. Nele, Miller exorta a América a “conhecer melhor essa figura lendária”, agora mais do que nunca, porquanto a “existência do poeta (tanto no sentido amplo quanto no específico) nunca esteve tão ameaçada”.
E justifica esta opinião sobre o destino que a sociedade americana reserva aos poetas, remetendo-nos para o necrológio que Kenneth Rexroth escreveu, “Não Matarás”, (Thou Shalt Not Kill) (2), quando soube da morte de Dylan Thomas, autor do Portrait of the Artist as a Young Dog. Segundo Miller, a categoria e a condição do poeta revelam o verdadeiro estado de vitalidade de um povo.
Segundo Miller, tratam-se sem dúvida de assassinatos, porque “quando se sufoca a voz do poeta, a história perde todo o seu sentido e a promessa escatológica surge como uma nova e apavorante aurora na consciência do homem. Somente então, à beira do precipício, nos é dado compreender que ‘tudo o que nos ensinam é falso’”.
Vivemos inteiramente no passado, alimentados de ideias mortas, crenças mortas, ciências mortas. E é o passado que nos está engolindo, não o futuro. “O futuro sempre pertenceu e sempre pertencerá ao – poeta […] O futuro é todo seu, mesmo que não haja futuro.”
Quando o poeta não pode mais falar em nome da sociedade, mas apenas em seu próprio nome, é sinal de que nós estamos nas últimas. Como ele, ou renunciamos a tudo que a nossa civilização representou até agora, e tentamos construir tudo de novo, ou iremos destruir tudo com as nossas próprias mãos.
Temos andado a fugir desde o início dos tempos. O destino alcança-nos facilmente. Vamos ter a nossa Estação no Inferno, todo homem, mulher e criança identificados com esta civilização […] O homem, renegado, perdeu a fé no seu semelhante. A falta de fé é universal. E nisto até o próprio Deus é impotente. Pusemos a nossa fé na bomba e é a bomba que atenderá as nossas preces.
[…] Chegámos ao fundo? Ainda não. A crise moral do século XIX apenas cedeu lugar à bancarrota espiritual do século XX. É o ‘tempo dos assassinos’, e não há possibilidade de engano. A política tornou-se negócio de bandidos.”
Tudo o acima exposto, e muito mais, consta dessa pequena obra de Miller, Tempo de Assassinos (The Times of the Assassins).
Em 1953, para ajudar a melhor cumprir a missão de retirar do poder o presidente da Guatemala, a C.I.A. elaborou um manual intitulado “Um Estudo do Assassinato” (A Study of Assassination) (1).
Como bom manual, começa pela definição de assassinato:
“a morte planeada de uma pessoa que não está sob a jurisdição legal do executante, que não está à mercê do executante, que foi selecionado por uma organização de resistência para ser morto, e cuja morte seja vantajosa para essa organização”.
E quando deve ser utilizado?
“Deve-se assumir que tal medida nunca será ordenada ou autorizada por qualquer Comando Central dos EUA, muito embora em circunstâncias excecionais possam concordar com a execução desde que feitas por membros de um serviço estrangeiro associado […] Nenhumas instruções para assassinatos devem ser escritas ou gravadas.”
Quais as justificações?
“O assassínio de pessoas responsáveis por atrocidades ou atos reprováveis podem ser vistos como uma punição justa. A morte de um líder político cuja carreira seja considerada como representando um perigo para a causa da liberdade, pode ser considerada como necessária. Mas o assassinato pode ser encarado com consciência tranquila. Contudo, pessoas que forem moralmente impressionáveis não o devem tentar.”
Depois, passa para as normas mais práticas, tais como a classificação das técnicas e seus executantes, o planeamento a seguir, os tipos de acidentes, as drogas, a escolha das armas, explosivos, finalizando com a descrição de alguns exemplos célebres de assassinatos ou tentativas falhadas (de Marat, a Ghandi, passando por Lincoln, Rasputine, Trotsky, Hitler, Truman, Mussolini e outros).
O assassinato como ferramenta a utilizar pelo Estado, pelos governos e governantes, teve sempre os seus apoiantes e os seus adversários. O teólogo do século XVI, Thomas More, recentemente canonizado como santo pela Igreja Católica, defendia que o assassinato de “um príncipe inimigo” só deveria ser equacionado se daí se obtivessem “grandes vantagens” pela salvação de muitas vítimas inocentes.
No século XVII, o diplomata e jurista holandês, Hugo Grotius, publica em 1625 a afamada obra De Jure Belli ac Pacis (Sobre a Lei da Guerra e da Paz) em que lançava as bases para a moderna legislação internacional, considerava que “era permitido matar um inimigo seja em que lugar fosse”.
A partir daí, por razões que desconhecemos, talvez pelo eclodir das revoluções americana e francesa, a luz do Iluminismo, tenha conduzi a uma descompressão das sociedades, a um tempo de progresso bom para a economia, ou por razões mais comezinhas como o dos executantes dos serviços secretos não se quererem matar uns aos outros, foi também crescendo entre os líderes políticos a rejeição à legitimação do assassinato mútuo. Thomas Jefferson, descrevia em 1789, o “assassinato, o veneno e o perjúrio” como abusos incivilizados que não deviam ter lugar no século XVIII.
Contudo, o século XX veio pôr fim a essa “trégua civilizacional”. É assim que durante a Segunda Guerra, espiões britânicos treinaram agentes checoslovacos para matarem o general nazi Reinhard Heydrich (um dos arquitetos da “Solução Final”), e muitos governos (entre eles o soviético, o britânico, o americano) tentaram, em vão, assassinar Adolfo Hitler.
Após a guerra, os futuros dirigentes de Israel fizeram da perseguição dos nazis uma estratégia de sobrevivência para a sua Nação, para que não lhes voltasse a acontecer outro Holocausto. Isto apesar de David Ben-Gurion, o primeiro primeiro-ministro de Israel, se mostrar contra o terrorismo pessoal, contra o assassinato de nazis alemães, por entender que seria bastante mais útil recruta-los para a Mossad.
Em 1975, o Comité Church do congresso americano, começou a investigar as alegações da utilização abusiva do assassinato individual por parte das agências de inteligência e informação. No ano seguinte, são reveladas as tentativas feitas entre 1960 e 1965 para eliminar Fidel Castro (oito tentativas, incluindo o método da caixa de charutos envenenados), bem como de outros políticos.
O presidente Gerald Ford decide então emitir uma ordem executiva segundo a qual nenhum funcionário ou empregado do governo dos EUA “poderia envolver-se, ou conspirar para se envolver, em assassinatos políticos”. Em 1981, Ronald Reagan, alarga o alcance da ordem, retirando o “político”. “Assassinatos”, ponto.
Contudo, cinco anos depois, como retaliação à morte de cinco militares americanos numa discoteca em Berlim, a administração Reagan ordena o bombardeamento do local em que Muammar al-Gaddafi vivia.
Mas, a partir de julho de 2001, aparentemente devido a novos interesses económico-políticos, os EUA começam a condenar Israel pelo que disseram ser “assassinados dirigidos” contra palestinianos, “mortes extrajudiciais, que nós não apoiamos”!
Dois meses depois, aconteceram os ataques de 11 de setembro, e a partir daí, acabaram-se as restrições. De imediato, o presidente Bush autorizou o uso de drones, operações de comandos, ataques com mísseis de cruzeiro, fora das zonas de guerra. Qualquer resistência que pudesse haver a ataques de precisão dirigidos contra indivíduos desapareceu, e os limites da condução da guerra deixaram de ter qualquer ligação com o campo de batalha.
Aumentou também a cooperação entre a C.I.A. e a Mossad israelita, discutindo-se a efetivação de operações conjuntas.
Com o aparecimento das armas de precisão e a utilização de telemóveis, aumentaram-se as possibilidades para o planeamento e execução das missões para matar. Para se ter uma ordem de grandeza, entre 1948 e 2000, Israel conduziu aproximadamente 500 missões para matar. Entre 2000 e 2018, Israel conduziu pelo menos 1800 dessas operações. (3)
Nos EUA, a administração Bush lançou, desde 2001, pelo menos 59 operações deste tipo no Paquistão, Iémen e Somália. Nos oito anos seguintes da administração Obama, o número subiu para 572, a que se deve acrescentar em 2011 o raid que matou Osama bin Laden no Paquistão.
Para ultrapassar os problemas legais e morais que tal tipo de operações lhes punha, a administração Obama vai socorrer-se de dois conceitos. Para ultrapassar a interdição da ordem executiva sobre assassinatos, passa a chamar a tais operações, “mortes dirigidas” (targeted killings), o que mais tarde lhes vai pôr o problema da existência de uma lista prévia (o que evidentemente seria ilegal) com nomes de pessoas a serem mortas.
Para ultrapassar os escrúpulos morais, vai socorrer-se do conceito cristão de “guerra justa” (4):
“Se o alvo a abater for um alvo legitimamente militar e se tudo que puder ser feito para atingir o alvo for feito de forma a evitar que se matem pessoas inocentes, então -e lamento dizê-lo – está O.K.”
Na prática, a guerra com drones torna indistinguíveis as mortes dirigidas dos assassinatos. Numa tentativa para melhor disfarçar, introduzem-se considerações sobre “ataque iminente”, mas, mais uma vez, na prática tal significará:
“Este é um terrorista, e, em determinada altura deve ter, de uma maneira ou outra, participado ou planeado um ataque terrorista. Não somos agora capazes de o parar, portanto o melhor é matá-lo”.
Contudo, e resumindo: no final da presidência de Obama, após quinze anos de ataques com drones, os americanos já não lhes prestavam muita atenção. Segundo as várias previsões, a grande maioria dos americanos era favorável a esses ataques dirigidos. Trump segue-lhe o exemplo: nos últimos três anos, foram feitos pelo menos 262 ataques, o que representa um acréscimo de 20%.
Na determinação dos alvos, é grande a troca de informações entre os serviços americanos e israelitas. Os suspeitos são seguidos dias, meses e anos, tendo sempre em vista o seu possível abate, decidido sempre a nível superior. Lembremos, entre outros, a destruição do reator nuclear da Síria, o assassinato dos principais cientistas nucleares iranianos e de outros dirigentes do Hamas.
Figuras como o líbanês Imad Mughniyed (técnico especialista no uso de bombardeamento sincronizado por forma a maximizar vítimas, arquiteto da estratégia militar do Hezbollah), o general brigadeiro sírio Muhammad Suleiman (supervisor nuclear que construiu o arsenal de armas químicas da Síria) e o major general Qassem Suleimani (comandante chefe do Corpo Revolucionário do Irão, Quds, força de elite que conduzia operações fora do Irão com o intuito de fazer avançar a revolução iraniana), eram alvos permanentes e preferenciais.
Assassinados os dois primeiros, em fevereiro (à bomba, pela Mossad) e agosto (snipers de uma unidade de fuzileiros israelita) de 2008, restava Suleimani. No dia 3 de janeiro de 2020, um ataque americano a partir de um drone, MQ-9 Reaper, acabou com a vida do importante chefe iraniano.
Instantes depois do Pentágono ter confirmado a morte, Trump colocou num seu tweet a imagem de uma bandeira americana. Mais tarde, num discurso para os convidados pagantes de Mar-a-Lago, contou a operação, recordando o que lhe ia dizendo um oficial militar:
“Eles têm aproximadamente um minuto para viver. Trinta segundos. Dez, nove, oito”. Ouviu-se uma explosão. E o oficial disse, “Desapareceram.”
Segundo a Convenção de Haia de 1907, o assassinato de um membro oficial de um governo estrangeiro não era permitido, a não ser em tempo de guerra. Daí que inicialmente se pensasse que a morte de Suleimani pudesse vir a provocar retaliações eminentes sobre os americanos.
Perante as perguntas e as críticas, a administração americana alterou a posição assumida, invocando que Suleimani se preparava para fazer uma “série de ataques”. Só que depois, Trump vem claramente dizer que isso não interessava, porquanto Suleimani era “um homem terrível, com um passado horrível de mortes americanas”.
Ou seja, a procura da cobertura pela legalidade deixava de ser importante. E é nisto que este caso é diferente. É que Suleimani, não era o chefe de uma rebelião sem estado (ex. Bin Laden), mas um alto representante de uma das nações mais populosas do Médio-Oriente, que, apesar de todo o seu envolvimento com o terrorismo, não estava em estado de guerra convencional com os EUA.
Ao adotar um procedimento de ataque a um inimigo só previsto para ações em tempo de guerra, a administração americana só podia utilizar a cobertura legal se tivesse atuado no convencimento de que estava em guerra com o Irão. O que parece ser a sua desculpa legal. “Estamos em conflito com o Irão desde 1979.” É deficiente.
Outro aspeto em que este caso se diferencia dos anteriores, foi no assumir público e publicitado da ação, pelo governo americano. Contrariamente a todos os outros relatados, em que ninguém se chegou à frente para reclamar a autoria, desta vez o próprio Presidente o confirmou.
Isto é uma novidade que vai alterar até o relacionamento entre os EUA e Israel. Se até aqui as administrações americanas tinham preocupações sobre o que as ações de Israel, unilateralmente, poderiam provocar na região, podendo acabar por arrastarem os EUA para um conflito, agora, são os israelitas que se passam a preocupar sobre as consequências de uma escalada americana na região.
Uma coisa parece ser certa: provavelmente pelo narcisismo de Trump, finalmente retirou-se a máscara sobre estas operações de assassinatos individuais a coberto do anonimato. A partir de agora, todos sabem (apoiando ou não) que o Estado pode utilizar os seus meios para assassinar qualquer pessoa, desde que o mesmo Estado a considere como inimiga. Estrangeiros ou nacionais, governantes ou não. A democracia na sua expressão mais lata. Morte como possibilidade igual para (quase) todos. Nada que já não soubéssemos.
Mas, atenção: não encaremos este desvelar, este estilhaçar da cobertura de proteção utilizada para não vermos o que está por baixo dela, como um produto do narcisismo de Trump. Acima de tudo, trata-se da forma da classe dominante (de que ele é o mais habilidoso representante) nos mostrar, mais uma vez, quem manda, de nos dizer que não temos minimamente de nos pronunciar sobre nada porque não entendemos nada.
Também o narcisismo de Henry Miller lhe obscurece a sua visão sobre o geral. Não que este não seja um tempo de assassinos, mas porque quase desde o início, os tempos foram sempre de assassinos. Lembremos Caim e Abel, e outros iguais pares de outras regiões que deram origem a civilizações.
- (https://archive.org/stream/CIAAStudyOfAssassination1953/CIA%20-%20A%20Study%20of%20Assassination%20%281953%29#mode/2up).
- Início do poema: They are murdering all the young men. For half a century now, every day, they have hunted them down and killed them […] (https://genius.com/Kenneth-rexroth-thou-shalt-not-kill-annotated).
- Ronen Bergman, Rise and Kill First: The Secret History of Israel’s Targeted Assassinations, Random House, New York, 2018.
- Ver o blog de 19 de abril de 2017, “Matar, com ética”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/no107-matar-mas-com-etica-28952).
e o de 16 de novembro de 2016, “Fronteiras indefinidas da guerra”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/as-fronteiras-indefinidas-da-guerra-23353).