(256) Lutas, controvérsias e horrores no século IV.
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O século IV, por ser uma época de grande transição e de definição, é propício para se observar o ser humano, no seu melhor e pior. Podemos considera-lo ainda como o século da Evangelização que continua a condicionar-nos.
É no Concílio de Niceia, em 325, que se condena a heresia ariana e que se redige uma profissão de fé, o Credo, contendo as verdades dogmáticas da Igreja, numa espécie de manifesto anti arianista.
Como prova de vitalidade e da expansão do cristianismo na Península, nos inícios do século IV, mais de trinta sés episcopais reuniram-se em Elvira (onde participaram três bispos da Lusitânia).
Na De Isaia, Potâmio de Lisboa, descreve o martírio do profeta Isaías, condenado a ser serrado vivo com uma serra de madeira, começando pela cabeça e prosseguindo pelo resto de corpo, separando-o ao meio.
Os homens, as instituições e os tempos, têm mantido ao longo dos tempos relações estreitas e estranhas, umas vezes sendo os homens a influenciarem as instituições e outras as instituições a influenciarem os homens, ao mesmo tempo que iam fazendo os seus tempos ou sendo por eles influenciados.
Daí, que em alguns períodos que se vêm a revelar como mais críticos, na medida em que quem neles viva não se apercebe muito bem sobre o que está em jogo, seja propício para o aparecimento de figuras de relevo, que tiveram ou a capacidade de resistir, ou a de entender a flutuação do tempo, ou simplesmente a de se deixarem flutuar ao sabor da corrente.
O século IV, por ser uma época de grande transição e de definição, é propício para se observar o ser humano, no seu melhor e pior. Podemos considera-lo ainda como o século da Evangelização que continua a condicionar-nos.
Sem o saber, o Império Romano preparava-se para o seu fim: desde a instabilidade e permeabilidade das suas fronteiras, às sucessivas hordas de “bárbaros” sempre à espreita de qualquer possibilidade de infiltração, as sucessivas guerras sem fim à vista, a grande heterogeneidade de populações que só a custo a romanização dava sentido, as sucessivas chefias militares cada vez mais mercenárias, em resumo: o enfraquecimento da “auctoritas”, da tradição, e uma religião de estado desmembrada e cada vez mais afastada dos povos, a quem não dava qualquer esperança.
É neste ambiente, que o Cristianismo inicia o processo de Evangelização: território imenso, ausência inicial de estruturas próprias, poder do estado não só desfavorável como contrário (as perseguições sucediam-se, os martírios atingiram o seu auge em todo o Império, entre 303 e 311, por ordem do Imperador Diocleciano), diversos povos, as diversas religiões, a rudeza da época, as peregrinações aos lugares santos greco-orientais com a sua religiosidade, cultura e literatura próprias.
Inicialmente, a Igreja não estava organizada territorialmente, estava apenas hierarquizada, sendo dirigida localmente a partir de certas cidades que se revelavam centros importantes da vida cristã, na medida em que contavam com grande número de fiéis; os poderes disciplinares e administrativos pertenciam às pessoas a quem a instituição fizera depositário das regras estabelecidas.
Rapidamente estas jurisdições foram limitadas, passando em simultâneo a utilizarem-se as circunscrições do império Romano para fixar as da Igreja. Aparece assim em cada civitas uma igreja, dirigida por um bispo, que tinha jurisdição dentro dos limites da civitas, na diocese.
Como forma para resolverem questões relacionadas com a pureza da religião e com a fé, para conhecerem outros problemas de vivência e relacionamento das suas comunidades, para debaterem dogmas religiosos e correntes heterodoxas que punham em causa a ortodoxia, para o combate às heresias e julgamento de bispos e clero, criaram-se reuniões, os Concílios, onde regularmente, ou sempre que necessário, os dignatários da Igreja se reuniam.
Como prova de vitalidade e da expansão do cristianismo na Península, nos inícios do século IV, mais de trinta sés episcopais reuniram-se em Elvira (onde participaram três bispos da Lusitânia): nesse Concílio não estiveram particularmente em foco casos maiores de heterodoxia, debruçando-se os 81 cânones resultantes sobre a imposição do celibato a todos os clérigos, sob pena de degradação (note-se que ainda hoje faz parte da vida canónica), e outras proibições relativas à vida cristã.
O Imperador Constantino vai conceder liberdade de culto aos cristãos, em 313, quando publica o Édito de Milão, cujas consequências foram enormes para a expansão e enraizamento do cristianismo.
Em 325, para fazer face às heresias que poderiam provocar cismas no interior na Igreja, reuniu-se aquele que foi o Primeiro Concílio Ecuménico (assembleia de bispos de toda a igreja universal), o Concílio de Niceia, presidido pelo Imperador Constantino (na altura já convertido ao cristianismo e, como Imperador que restabelecera a paz no Império, desejava também a paz religiosa), sendo Papa, Silvestre I.
É neste Concílio que se condena a heresia ariana e que se redige uma profissão de fé, o Credo, contendo as verdades dogmáticas da Igreja, numa espécie de manifesto anti arianista.
O arianismo, é a doutrina pregada por Ário, nascido em Alexandria, falecido em 336. Embora a teologia de Ário seja também trinitária, o arianismo nega a consubstancialidade das três Pessoas, afirmando que são apenas semelhantes (homoiousion), ao passo que para o niceísmo as três Pessoas são da mesma substância (homoousion).
Para o arianismo, o Filho e o Espírito Santo têm substâncias diferentes do Pai, sendo o Filho criado por ato de vontade de Deus (estando-lhe assim, subordinado – subordinacionismo- como que Filho adotivo- adocionismo), sendo o Espírito Santo criado a partir do nada. Para o niceísmo, o Filho é gerado, consubstancial ao Pai, nascido do Pai antes de todos os séculos, e, o Espírito Santo é gerado, consubstancial ao Pai (procede do Pai).
No plano soteriológico, para o arianismo, Cristo é apenas uma criatura, só exemplo moral (ficando assim comprometida a salvação, um dos fundamentos do niceísmo), encarnando diretamente num corpo, sem o intermediário da alma, o que faz com que Cristo só tenha natureza divina (monofisismo). Para o niceísmo, Cristo encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e tem dupla natureza, divina e humana, e veio para nos salvar. No plano de valor mariano, o niceísmo, contrariamente ao arianismo, afirma a virgindade de Maria e a linhagem divina de Cristo.
O arianismo era mesmo a grande ameaça que poderia cindir a Igreja, e, mesmo após o Concílio de Niceia e apesar de contar com a conversão do Imperador, vai assistir a este mesmo Imperador, apenas três anos depois, fazer regressar do exílio alguns chefes arianos, que vão conduzir uma grande ofensiva contra o niceísmo, através do ataque pessoal a figuras importantes do Cristianismo: é assim que Santo Atanásio é exilado em 335.
Em 337, após a morte de Constantino, o Império é dividido pelos seus três filhos, Constantino II, Constante e Constâncio. Com a morte dos seus dois irmãos em 353, Constâncio fica como imperador único.
Quanto a Santo Atanásio, que regressara do exílio em337, volta a ser exilado em 339. Esta nova arremetida do arianismo fazia-se sentir mesmo dentro da Igreja, de tal forma, que para fugirem à acusação de arianismo, os bispos, reunidos no sínodo da Dedicação, em 341 intentam uma via intermédia, de forma a contornarem o conceito da consubstancialidade.
Em 342, continuando a não aceitarem o conceito da consubstancialidade, concedem, contudo, que o Filho não é criado a partir do nada. De novo em 344 é reeditada a fórmula de 342 com uma nova edição.
Em 352, volta a abrir-se o processo contra Atanásio. O Papa Libério, por tomar partido a favor de Atanásio, é chamado a Milão, em 353, à presença do Imperador Constâncio, para assinar a condenação de Atanásio. Como não o fez, é exilado; em 357, acaba por redigir duas epístolas que envia a todos os bispos, explicando numa, a sua separação de Atanásio, e na outra, a sua profissão de fé agora marcadamente antiniceísta.
Nos finais de 357, no concílio de Sírmio, é finalmente redigida uma nova fórmula em que a via intermédia desaparece, em favor de uma via totalmente antiniceísta.
É neste contexto conturbado da luta entre niceístas e arianistas que vive Potâmio (Potamius), com data e local de nascimento desconhecidos, e que foi o primeiro bispo de Lisboa, daí ficar conhecido como Potâmio de Lisboa, tendo falecido por volta de 383.
Começa por ser niceísta, passando depois para o arianismo; no final da vida, regressou ao niceísmo. Como se sabe da sua passagem para o arianismo? Porque está documentada a estadia que teve com Epicteto, um bispo ariano, para intercederem junto do Papa Libério, em 357, a fim de que este, para além da epístola que enviara sobre a sua separação de Atanásio, fosse mais longe nas concessões ao nível da dogmática, o que, como vimos, veio a acontecer.
Provavelmente, participou também no concílio de Sírmio, no final de 357. Ainda em 357, escreveu uma obra pró arianista, o Líber contra Arianos de Foebade d’Agen.
A sua provável reconversão ao niceísmo é documentada pelo aparecimento, em 359, da Epistula ad Athanasium, onde faz uma defesa do niceísmo. A ser correta a data, e deve ser, pela cronologia dos acontecimentos históricos (após o terceiro desterro da Atanásio), então Potâmio regressou à ortodoxia do seu início: o niceísmo.
Obras de Potâmio que nos chegaram:
- Epistula ad Athanasium (Epístola para Atanásio);
-Epistula de Substantia Patris et Filli et Spiritus Sancti (Epístola sobre a substância do Pai e Filho e Espírito Santo);
-De Lazaro (Sobre Lázaro);
-De Isaia (Sobre Isaías).
Na Epistula ad Athanasium, Potâmio ataca o arianismo socorrendo-se da mesma fonte em que ele se apoia, neste caso o Evangelho de S. João. Vai dirigir a sua atenção sobre dois pontos cruciais: o problema do subordinacionismo e o da substância.
Sobre o primeiro, contrapõe à citação ariana dita por Jesus “ alegrar-vos-ei de que vá para o Pai, porque o Pai é maior do que eu” as seguintes:” Eu e o Pai somos uma só coisa “, “Quem me vê, vê também o Pai” e “Há tanto tempo que estou convosco ( para os apóstolos) e não conheceis ao Pai”.
Sobre o segundo, rebatendo o que os arianos diziam por nas Escrituras não aparecer qualquer referência à substância, cita passagens onde esse vocábulo está inscrito, umas vezes falsamente, outras em que o significado é diferente, não querendo significar substância. Neste caso, Potâmio segue um procedimento vulgarmente adotado pelos apologistas, que era o de demonstrar o carácter bíblico do termo. Termina, com uma invocação à Virgem, mãe de Deus.
Na Epistula de Substantia Patris et Filli et Spiritus Sancti, Potâmio vai abordar o tema da consubstancialidade divina, socorrendo-se quer dos profetas, Isaías e Jeremias, e ainda de João (“E os três são uma só coisa”), quer de metáforas como a da túnica de Cristo por ter sido talhada de uma só peça, ou do corpo humano, onde apesar de ter vários membros e sentidos ser tudo a mesma substância.
Indica ainda o facto de os milagres de Cristo só poderem significar que Ele e o Pai serem só um e o mesmo.
Em De Isaia, Potâmio faz uma descrição horrífica, como se estivéssemos no local mais privilegiado, a assistir ao martírio do profeta Isaías, condenado a ser serrado vivo com uma serra de madeira, começando pela cabeça e prosseguindo pelo resto de corpo, separando-o ao meio. Mais não diz, daí que seja difícil integrar este De Isaia numa homilia.
Na homilia De Lazaro, Potâmio narra com um realismo inacreditável a decomposição do corpo de Lázaro durante os quatro dias que esteve morto, de acordo com a degradação que sofrem os quatro humores presentes no corpo humano (o sangue, a bílis amarela, o muco e a bílis negra, segundo a fisiologia grega) quando a alma o abandona. Depois é a ressurreição feita por Cristo, perante a alegria e espanto de familiares e assistentes.
Nesta homilia, Potâmio expõe a tese do homem como ser com corpo, alma e espírito. Embora não elabore sobre a relação alma-espírito, esta porta acabou por ser aproveitada por Santo Agostinho (que cita esta homilia) para conotar o espírito com a razão, sendo esta uma faculdade da alma. Mais tarde, Santo António de Lisboa, prosseguirá também, esta linha de pensamento.
AUXILIARES
Gomes, Pinharanda, História da Filosofia Portuguesa: A Patrologia Lusitana, Porto, Lello & Irmão, 1983, pp. 121-131.
Martins, Mário, Correntes da Filosofia Religiosa em Braga dos sécs. IV a VII, Porto, Livraria Tavares Martins, 1950
Menéndez y Pelayo, Marcelino, Historia de los heterodoxos españoles, Alicante, Biblioteca Virtual Miguel Cervantes, 2003 (Edición digital basada en la de Madrid, la Editorial Católica, 1978.
Moreira, António Montes, Potamius de Lisbonne et la Controverse Arienne, Louvain, Bibliothèque de l’Université, 1969, pp. 217-300.
Pacaut, Marcel, Les Instituitions Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1951, pp. 33-34.
Pimentel, Manuel Cândido, “História da Filosofia em Portugal”, UCL, 2011.
Silva, Paula Oliveira e, “Potâmio de Lisboa e a controvérsia ariana”, in AA. VV., História do Pensamento Filosófico Português, vol. I, lisboa, Editorial Caminho, 1999, pp. 43-65.
Yarza Urkiola, Valeriano, Potâmio de Lisboa: Estudio, edición crítica y traducción de sus obras, Vitoria, Sevicio Editorial Universidad del País Vasco, 1999.